sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Segue a estrada de tijolos amarelos


Não sei porque me lembrei hoje da história do Feiticeiro de Oz. Li o livro há muitos anos, quando era miúda e fascinou-me tanto que durante esse Verão reli-o várias vezes até que nenhuma frase me surpreendesse, nenhum pormenor me escapasse. Depois devolvi-o à Biblioteca Municipal e abandonei-o, esquecido num qualquer corredor da mente. Pelo menos julgava eu, porque hoje, inesperadamente, dei comigo a recordar a Dorothy, uma menina que tem como único amigo um cãozinho que desaparece durante uma tempestade e agora, como num filme, as imagens sucedem-se dentro de mim... Sem hesitar, Dorothy parte em busca do cão e quando o encontra e pretende regressar, verifica que também ela está perdida. Porque me lembrei disto hoje? Porque surgem com uma nitidez arrepiante as personagens insólitas deste conto magnífico? Recordo: havia um homem de lata que procurava um coração, um leão que desejava encontrar coragem, um espantalho que queria ter um cérebro e Dorothy, que desejava regressar a casa. Sem dúvida um estranho grupo de personagens que reúne os valores mais nobres do ser humano e simboliza a busca incansável de cada caminhante na viagem da vida. Só o Feiticeiro de Oz, que vive na Cidade das Esmeraldas, conseguirá ajudar Dorothy e os amigos a alcançarem os seus sonhos. A menina calça os sapatos de rubi da bruxa má morta e repete como um estribilho, ou uma canção, o aviso que lhe tinha sido feito: Basta seguir a estrada de tijolos amarelos.
Tendo em conta que Dorothy encontrou o seu lar e que as outras personagens descobriram que afinal o que elas procuravam estava dentro delas próprias, este parece-me um bom lema para o novo ano que daqui a poucas horas se inicia. Começar 2011 sem esquecer que muitas vezes o que procuramos desesperadamente aninha-se dentro de nós e que a solução está sempre nos nossos pés, nos passos que damos. Só temos que seguir a estrada de tijolos amarelos.
Talvez por isso, daqui a pouco calçarei os meus sapatos de rubi, os mágicos, que não me cansam os pés e darei o primeiro passo na longa estrada de tijolos amarelos. No peito tenho um rumo e guardo uma certeza: a felicidade mora em nós, difícil é não nos afastarmos da estrada que nos conduz ao coração. Ao nosso. E ao coração de quem amamos.

A todos os visitantes deste espaço, em 2011 desejo uma caminhada cheia de dias felizes. E se alguém se sentir cansado da viagem ou tiver o rumo perdido, fica o conselho que li há tantos anos num livro maravilhoso que hoje me assaltou a memória: Basta seguir a estrada de tijolos amarelos.

Um Feliz Ano Novo!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Falemos de facas


Falemos de facas, então. De lâminas afiadas, de punhais, de sílabas enterradas com azedume no corpo das palavras. Falemos de dor, se preferires. Da dor das frases aguçadas com a tristeza de não se ter mais nada, a não ser isso mesmo, palavras que atiramos como lanças a peito alheio.
Falemos de palavras que magoam, que fazem sangue debaixo da pele, no invisível de nós. Ou falemos de silêncio, o maior de todos os gumes.
Se queres, falemos de facas, então. Ou escutemos o machado do silêncio cortar-nos as bocas e as vozes em feridas infinitas.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Um erro de expressão


O arco-íris cai não interferindo
Nas cores do quadro. O pintor
Agradece. O peixe lento
Que o pintor trouxe ao mundo tem
Cores despropositadas, porém não há nenhuma razão
Para apontar aos peixes a responsabilidade
De um erro, afinal,
Estético.
Quanto à literatura: não falha na cor,
Mas jamais acerta nas palavras.

Gonçalo M. Tavares, I

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

FELIZ NATAL


Que os homens possam unir-se nas suas diferenças, mesmo que por apenas algum tempo, e que esta seja uma noite de paz sobre a terra.

A todos os visitantes deste espaço, do fundo do coração desejo um Feliz Natal.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Palavras de água


Para atrasar a morte vamos abrir a noite
com música de jazz Percorrê-la depois

num barco de borracha Celebrar o segredo
Enforcar a memória Descobrir de repente

uma ilha que nasce dentro do teu vestido

Chamar-lhe Madrugada Adormecer contigo

David Mourão-Ferreira, Baptismo

No parapeito da insónia


Debruço-me no parapeito da insónia e deixo que o olhar se derrame sobre os meus medos. Trago-os guardados cá dentro do peito, numa gaveta de fundo falso que fecho à chave com os gestos incendiados de mil revoltas... É uma luta desigual, esta que travo com o coração. Ele ganha sempre, abre sem pejo as portas da memória e espalha-me pela pele o arrepio... Faz-me sorrir, o doido do coração, pega-me pela mão e leva-me por caminhos de água e de sol... Troça de mim, que eu bem o ouço, e solta os medos em mim que voam às cegas, algures pelos corredores do meu sangue... Ri-se de mim, o meu coração... Ri-se da memória da carne... e da insónia povoada de medos fugidios.

sábado, 18 de dezembro de 2010

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Da solidão


Cortaram os trigos. Agora
a minha solidão vê-se melhor.

Sophia de Mello Breyner Andresen, O nome das coisas

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Arranja-me um coração


Arranja-me um coração. Pode ter sido já usado e sem serventia para ninguém, eu não me importo, arranja-me um coração por queimar, um que não tenha ido à guerra e não esteja ferido. Arranja-me um coração a estourar de sonhos, um coração leal que não me fuja do peito, pode ter asas de ouro, tão pesadas que não o deixem voar... Arranja-me um coração inteiro, que só saiba bombear o sangue e que não tenha aprendido a doer. Arranja-me um coração sem labirintos, sem poços profundos onde caiam e se afoguem os sonhos... Um músculo forte e robusto, cor de sangue, cor de vida, arranja-me um coração que não queira ser onda do mar, que não se desfaça na espuma dos dias, no veloz escorrer do tempo...
Preciso de um coração...
Ou dá-me então o teu... Quando sinto o teu coração bater nas minhas mãos, percebo que caberia inteiro no vazio do meu peito.

sábado, 4 de dezembro de 2010

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

É quase Natal...


Na cidade varrida de chuva e de vento, a mulher caminhava, os cabelos em desalinho colados ao rosto, os passos perdidos num vendaval interior que só ela sabia. Procurava o ponto exacto onde se perdera. Insensível ao frio que lhe roía os ossos, nem percebia que tinha fome. Nem percebia que tinha frio. O casaco de fazenda grossa tornara-se pesado, pingando toda a água da tarde de chuva que caía sobre a cidade. Mas a mulher, à procura do seu rumo, nada sentia, não via ninguém... Procurava-se. Era isso que ela fazia, no meio do frio deste Dezembro tão triste.
De repente, a cidade acendeu todas as suas luzes e a mulher piscou com uma surpresa assustada os olhos molhados... Afastou os cabelos do rosto com as mãos duras de frio e apertou contra o peito o casaco pesado de chuva com ambos os braços. Lentamente, começou a caminhar, os olhos vazios cravados num ponto qualquer, que mais ninguém via... Depois, arrastando os passos, desapareceu debaixo da chuva.
Na mesa ao lado, dois jovens de mãos dadas sorriam e fumavam o mesmo cigarro. E lá do fundo, junto ao balcão, alguém em voz alta disse que é quase Natal.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Pessoa vale a pena


Fernando Pessoa morreu há 75 anos. Alguns jornais, alguns canais televisivos, algumas estações de rádio terão recordado fugazmente o facto, mas o país passou adormecido ao largo da data de hoje, num sonolento bocejo colectivo que me faz pensar com tristeza no quanto amamos mal os nossos poetas. E Fernando Pessoa teria merecido que o recordássemos hoje. Ele que foi tão grande, teria merecido uma homenagem, ainda que singela, neste país que se desgasta invariavelmente com a crise, o Orçamento de Estado, o FMI, o Emmy da TVI, os blindados e a cimeira da Nato, a contenção de despesas e o limiar da pobreza, o futebol e as telenovelas... Neste país tão triste não se sorri aos poetas, aos seres imortais, que resistem ao tempo porque escrevem palavras de ouro que se gravam a luz no coração humano. Fernando Pessoa não foi só um poeta, foi um grande poeta, daqueles que surgem uma vez em cada século e permanecem espalhados pelo mundo, traduzidos em todas as línguas... O poeta que sonhava o Quinto Império, é afinal de contas, um rei mendigo num reino pobre e ingrato. Teria merecido mais, o homem das mil almas, o ser estilhaçado e triste, o paladino da solidão e do cansaço que escrevia como mais ninguém soube escrever...
Por tudo isto (e porque estou zangada e triste) deixo hoje, aqui, um poema de Pessoa, o poema que os meus alunos escolheram e elegeram unanimemente como o mais belo. Para que não seja nunca esquecido.


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, "Mar Português" in Mensagem

Ó Stora...


Seria o Amor Português (Variações sobre um Fado)

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis da tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.

Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
"Que me importa que batam à porta..."
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem e uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta.

Fernando Assis Pacheco

(Contei-lhes, porque eles não sabiam, que o Fernando Assis Pacheco era jornalista. Que quando era jovem, foi actor de teatro e que desde sempre amou a poesia. Que estudava e conhecia profundamente a cultura galega. Que traduziu para português obras de Pablo Neruda e de Gabriel Garcia Márquez. Contei-lhes, porque eles não sabiam, que o Fernando Assis Pacheco escreveu um poema extraordinariamente belo e que eu sei de cor há muito tempo... Contei-lhes, porque eles também não sabiam, que este grande poeta morreu faz hoje quinze anos e que me apeteceu muito recordá-lo... Depois, devagar, saboreando as palavras, li-lhes o poema. E no fim, fez-se um silêncio sepulcral rasgado apenas pelo pedido insistente - "Ó Stora, leia outra vez..." - E eu sorri-lhes, e li de novo.)

Si tu m'apprivoises...


Si tu m'apprivoises, nous aurons besoin l'un de l'autre. Tu seras pour moi unique au monde.
Je serai pour toi unique au monde.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

domingo, 28 de novembro de 2010

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Quanto aumenta(s) o mundo...


estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela,
e sem que eu nada diga,
sente a trémula, tocada coluna de ar
a sorvo e sopro,
ó
táctil, ininterrupta,
e a tua mão sinta contra mim
quanto aumenta o mundo

Herberto Helder, a faca não corta o fogo

(Para o Herberto Helder, no seu 80º aniversário. Porque os poetas grandes merecem ser lembrados)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Um sentido Adeus


Fez hoje uma semana que ela morreu e eu continuo sem conseguir encontrar as palavras. Lido mal com a morte, ela rouba-me a voz e deixa-me num silêncio negro e vazio... E contudo, queria ser capaz de me despedir, de lhe dizer todas as coisas que nunca lhe disse, embora acredite que ela as soubesse. Queria encontrá-la amanhã ou depois, sentada à mesa do café, na mesma cadeira de sempre, na solidão dos seus dias infinitamente iguais, lendo ou bordando, lanchando a torrada e a meia de leite sempre à mesma hora, sempre à mesma temperatura... Queria poder sentar-me junto dela, como tantas vezes fiz, conversando sobre o tempo e os livros, sobre as pernas que não lhe obedeciam, sobre as análises ao sangue e o exame ao coração, enfiando as agulhas com linha preta e vermelha e branca, com que ela pacientemente bordava a ponto de cruz os polvos, os barcos, os peixes, em toalhas e em panos que depois me oferecia, só porque sim. Queria contar-lhe que guardo os livros que ela me deu nas estantes do coração, a segunda edição das obras completas do Camilo Castelo Branco que tem aquele odor maravilhoso dos livros antigos agarrado às páginas amarelecidas pelos anos e os cantos das folhas dobrados pelos dedos de todos os leitores apaixonados... Queria confessar-lhe que guardo na carteira, junto dos cartões de crédito, as pajelas dos santos que me ofereceu com carinho para que me protegessem do cansaço e da doença... Queria abraçá-la, sentir o cheiro a lavanda do perfume que usava, e dizer-lhe que tenho saudades... Do sorriso, muitas... E da alma linda que ela tinha. Queria que ela soubesse que nunca a esquecerei...
Por tudo isto lido tão mal com a morte... Ela rouba-nos os que amamos, definitivamente, e deixa lugares vazios no coração que vão ficando mais frios à medida que percebemos que afinal não tivemos tempo, nem encontrámos nunca as palavras certas, ou as possíveis, para dizer Adeus.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Quietude


Não estranhes a minha quietude... Também os peixes por vezes se mantêm imóveis contra a força da corrente.

sábado, 13 de novembro de 2010

Palavras de sangue


Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu fzeram-no de carne, e sangra todo dia.

José Saramago

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

As portas do coração

Trouxe-te uma música para te oferecer hoje. É um antigo solo de piano que teima em não envelhecer e que gosto de ouvir até à infinitude em madrugadas de silêncio... Deixa-a tocar enquanto me lês, saboreia-a como se fosse um vinho bebido devagar, a página amarelecida de um poema mil vezes relido com ternura, ou uma paisagem azul cheia de sal do vento norte, por onde o teu olhar se derrame... Neste tempo em que aqui te demoras, encontra a minha tristeza nos versos que não fiz, nas frases que não escrevi e nas palavras que não fui capaz de escolher... E depois, quando decidires partir, fecha as portas do meu coração com suavidade e leva contigo a música...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O riso da memória


Pousa a angústia devagar,
deixa que ela te escorra entre os dedos
até ficar assim, sepultada nas palavras...

Depois, respira o riso das memórias felizes
que esculpiste para sempre, sem saberes,
no silêncio suave de tantos vazios...

Prende-o bem, nas tuas mãos mudas,
sente-o pulsar ainda, cheio de vida...
E que isso te baste.

sábado, 6 de novembro de 2010

Crónica de um improvável amor


Encontraram-se por acaso, como por acaso se encontram as pessoas que nada procuram ou que nada esperam. Que nada acreditam poder já mudar o rumo tão certinho dos seus dias. E o inesperado do encontro contrariava as voltas do mundo na sua constante rotação, as forças do universo em eterno equilíbrio, como se os homens de repente audazes, desafiassem os rumos traçados pelos deuses. Encontraram-se, dizia. E viram-se um ao outro. Talvez aqui seja já diferente esta história neste mundo onde encontramos tanta gente e no entanto, não vemos ninguém... Mas eles viram-se. E reconheceram-se. Ela gostou da doçura do sorriso dele, como uma janela aberta sobre um mundo que de imediato lhe apeteceu desvendar; ele ficou fascinado com a luz dos olhos dela, uma luz que subitamente enchia de cor o quotidiano pálido que habitava... Sentiram, quando se viram pela primeira vez, que não queriam voltar a perder-se um do outro e foi aí que se reconheceram: no preciso instante em que perceberam que se tinham encontrado sem jamais se terem procurado.
Sim, esta é uma história de amor. Esta é a história de um improvável amor, de dois seres que um dia por acaso, ao dobrar uma esquina da vida, chocaram de frente um contra o outro e se prenderam na magia desse instante mágico que parou o universo. Nos céus, os deuses fecharam os olhos e sorriram condescentes... Sim, permitiriam o reencontro daqueles humanos que sabiam que o amor não aparece na vida só quando se procura, mas se reconhece no primeiro momento, na doçura de um sorriso ou na luz que brilha intensa no fundo de um olhar...
Mas como os deuses são ciumentos da felicidade dos homens, decidiram em consílio que entre os dois ergueriam montanhas até ao céu, cavariam abismos, inventariam os mais fundos oceanos... porque um amor infinito, quando o é realmente, a tudo sobrevive, a cada luta se renova e fortalece, e torna-se imortal...
E afinal de contas, são as grandes batalhas, aquelas que travamos dentro do peito, que fazem avançar o mundo e a vida valer a pena.

(Para a B., porque me pediu que contasse a sua história e para todos aqueles que como eu, acreditam em histórias de amor. Mesmo nas mais improváveis.)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Da solidão

- Solidão não é falta de gente para conversar, namorar, passear ou fazer sexo... Isto é carência.
- Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar... Isto é saudade.
- Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe, às vezes, para alinhar os pensamentos... Isto é equilíbrio.
- Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado... Isto é circunstância.

Solidão é muito mais do que isto.

Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma...

Francisco Buarque de Holanda

Vox populi, vox Dei


Se caíres sete vezes, levanta-te oito.

Provérbio chinês

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Hoje, um pouco mais


Hoje chorei mais os meus mortos. Hoje havia um pouco mais de frio, um negro mais pesado... E as minhas mãos estiveram hoje mais vazias... Hoje a memória fugia mais veloz, apertou-me o peito doendo mais, e as lágrimas rasgaram os silêncios mais fundos. E nos sorrisos que perdi e que hoje recordei, a vida custou mais...
Hoje a voz da saudade falou mais alto e doeu mais, muito mais.

domingo, 31 de outubro de 2010

Dos deuses e dos bichos


E de novo armadilha dos abraços
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada das carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e de silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.

Rosa Lobato de Faria

Lágrimas


O dom das lágrimas é a característica mais nobre da espécie humana, imediatamente depois da palavra e antes do riso.

Bulos Salama

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Agarrar o vento


Na rua mais sombria da minha cidade, o sol não entra para iluminar os passeios e aquecer os rostos de cal das casas... Fica perdido entre os telhados alinhados, sem forças para rasgar a barreira do casario, e perde-se timidamente na nesga azul de céu, estendida ao comprido como um farrapo triste. E no entanto, é a rua mais bonita da minha cidade, cheia de vento salgado que me bate no rosto e acorda coisas boas que dormem nos cofres da memória... A rua mais bonita da minha cidade cheira a pão e a nostalgia... Gosto de caminhar contra o vento norte que me empurra o peito e traz as vozes das gaivotas, me limpa a tristeza do rosto e seca todas as lágrimas... Gosto de deixar entrar o vento em mim, na casa do meu coração, batendo portas e janelas num vendaval que tudo revolve e me faz ver com mais nitidez o que repousa cá no fundo... E gosto de regressar com o rosto gelado, todos os fantasmas adormecidos na alma tranquila e as mãos fechadas em punho para não deixar fugir os pedaços de vento ainda presos entre os meus dedos...

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Da infinitude da alma humana


Conhece alguém as fronteiras à sua alma para que possa dizer - Eu sou eu?

Fernando Pessoa

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Palavras impossíveis


Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A palavra que nunca se profere.

Adolfo Casais Monteiro, A Palavra Impossível

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Eu, pecadora me confesso...


O meu blog faz hoje três anos. Nesta data, como em qualquer aniversário, inevitavelmente fazem-se balanços, pensam-se e pesam-se as emoções. Naquele dia, era domingo e chovia. Sentia um estranho desassossego... e comecei aqui, devagar e a medo, a dar corpo e voz às minhas inquietudes. A ideia vinha-se agigantando há já uns tempos, dominava-me os pensamentos e fazia-se ouvir. Queria ter um espaço onde pudesse deixar gravado o canto dos meus poetas preferidos, onde se eternizassem os textos que acendem fogos ou luzes, algures, no avesso de mim... Mas depois, dei comigo a arriscar o voo da escrita, o precipício do lirismo, e a sentir-me bem neste lugar onde todas as portas se abrem, onde sob as asas do coração, da memória ou da imaginação, como por magia, os textos que nascem são água pura na aridez do cansaço dos dias. Por razões que ficam só comigo, por duas vezes o encerrei e duas vezes o reabri... porque me faz falta, porque preciso de vir aqui...
Três anos depois, não sou já a mesma pessoa que deu vida a este espaço. É agora mais íntima a minha relação com as palavras mas persisto no olhar interior, introspectivo, que me leve a desvendar o fundo dos oceanos que moram no meu peito e onde tantas vezes me sinto naufragar... Foi talvez essa e sempre a única razão que me fez voltar: o poder regressar a mim, único cais de partida possível para a viagem rumo ao coração dos outros.
Este blog nasceu anónimo, talvez porque pensasse na altura que a ninguém interessaria esta página perdida na imensa rede da blogosfera, que para quem me lesse, por acaso ou acidente, não seria relevante o meu nome, a minha idade, os traços do meu rosto ou a raça a que pertenço... Eu pretendia ser apenas uma voz, falando a sós comigo. Mas depois, pessoas foram passando e voltando, outras permanecem aqui comigo, como amigos que na posse da chave da minha casa, se instalam e se deixam ficar à minha espera, só para me ouvir... Honram-me muito todos os viajantes que aqui se demoram, nesta estrada pequenina no meio da imensa rede de todos os caminhos virtuais. Alguns, silenciosos, partem sem deixar rasto; outros, escrevem palavras deixando pegadas da sua passagem... São já amigos cujas vozes reconheço, passageiros como eu, andarilhos de estradas diferentes que se cruzam com a minha. Por isso, três anos depois, este blog deixa cair o véu do anonimato e assume publicamente uma identidade. Faço-o por todos os leitores que me visitam, pelos que nunca me julgaram ou condenaram, pelos que mostraram sempre respeito pelas minhas inquietudes. Faço-o também por mim, porque me parece uma maneira simples de assumir a minha escrita, os meus textos, que não são o diário da minha vida, mas reflectem a estranha do outro lado do espelho e são também, sem sombra de dúvidas, um prolongamento dos meus dias.
O rosto deste espaço é um coração. Há três anos, quando o escolhi, achei-o perfeito brilhando muito no fundo negro... O coração: a mais bela das metáforas para traduzir as emoções humanas. Porque é disso que aqui se fala, reais ou fingidas, roubadas à memória ou ao coração, foram sempre as minhas emoções a brilhar no fundo das palavras. Nunca este espaço foi usado para ferir os outros, para atacar, condenar ou criticar alguém que não eu própria. Nunca aqui se destilou ódio ou rancor. Sim, eu pecadora me confesso: é um espaço egoísta, onde às voltas dentro de mim me reencontro com os outros e onde a matéria da escrita é afinal, tão só e apenas, o que guardo cá dentro.
Esta sou eu. Chamo-me Ana Paula. Três anos depois, com um sorriso e de olhos nos olhos, brindo com os meus leitores.
Seja muito bem-vindo a este espaço.

Palavras sublimes


Mas, na praia, gaivotas desenhavam,
com mil pegadas, a palavra Outono.

David Mourão-Ferreira, Os Quatro Cantos do Tempo, C.III

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

No fundo da memória


Recordo. Os olhos, sobretudo. E as mãos. Talvez fosse por isso que toda a gente o odiava. Talvez fosse pelo olhar endurecido e cruel, ou quem sabe, pelas mãos enormes e calejadas, como garras ou tenazes. Vivia como um bicho uma vida de solidão e de silêncio, longe dos homens e das vozes e apedrejava por maldade os cães vadios. Uma vez, por acaso, ouvi-o cantar e abrandei o passo disfarçadamente roubando-lhe a medo a música suave. Era velho e chorava. Nunca esqueci o seu ar escorraçado e de vez em quando julgo encontrá-lo ainda, nos rostos que na rua se cruzam comigo e me olham sem me ver. Fascinavam-me os seus pés descalços e entristecia-me profundamente o semblante perdido de quem por acidente ou por engano, vivia uma vida trocada no mundo errado...
Recordo. Talvez só eu tivesse razão...
Sim, a vida mostrou-me que é verdade. Todo o deserto possui um poço em algum lado.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Num abraço


Ponho o meu dedo sobre os teus lábios
para que não fales.
Hoje doem-me as palavras...
E só o silêncio se ajusta
à tristeza de ter as asas molhadas
e ser ave ferida agarrada ao chão...

Ponho os teus braços à volta do meu corpo
para que me abraces sem nada dizer,
com todas as tristezas presas na garganta
onde tantos gritos se calam...

Encosto o meu corpo ao teu,
sinto os mudos abismos da tua pele
e tomo as tuas mãos entre as minhas
para que dances comigo... neste silêncio.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ó Stora...



Falávamos de sonhos materiais, de coisas que o dinheiro pode comprar e que nos fariam felizes. E de repente, um deles disparou a pergunta:

- Ó stora, o que comprava se lhe saísse o euromilhões?

Calei-me. A turma olhava-me suspensa na curiosidade da resposta. Vinte e oito pares de olhos vigilantes trespassavam-me a mente, tentando adivinhar as preferências que lhes pareciam mais evidentes. Alguns, baixinho, faziam apostas. Percebi então que não poderia contar-lhes. Nunca conseguiria explicar-lhes que à saída de uma curva da pitoresca estrada de paralelos, ele se ergue imponente, majestoso na sua velha altivez de pedra, oferecendo aos passantes uma imagem de inesperada beleza. Altivo, abraçando o mar até ao horizonte... E solitário. Como um rochedo. Não conseguiria dizer-lhes da serenidade que o envolve, o corpo sólido sobre a escarpa, enterrado nas dunas brancas de areia muito fina e macia... ou das janelinhas de madeira escura que se abrem mais perto do céu. Lá dentro há uma escada tosca que conduz ao piso de cima onde junto às vidraças eu encostaria uma mesa larga com os meus livros espalhados em desalinho e onde me sentaria a escrever... Como contar-lhes? Como descrever o cheiro a maresia do vento salgado, o entardecer do sol que morre devagar avermelhando os céus a ocidente, e os gritos das gaivotas rasgando as águas do meu sonho? Não... Não saberiam que eu forraria as paredes com estantes carregadas de livros e haveria uma cadeira de baloiço, daquelas que já não existem, onde me sentaria a ler na urgência da solidão e do silêncio... Ficariam sem saber do meu moinho, do meu refúgio sonhado num sonho tão longínquo, do minúsculo pedaço de paraíso encostado ao mar, tão próximo das estrelas...

Sorri-lhes. Falei-lhes na típica viagem à volta do mundo... E a aula prosseguiu calmamente até que o toque da campainha os libertou para os jardins da escola, na alegria ruidosa de todas as manhãs.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Os dedos da noite


Há dedos na noite, dedos longos
que me roçam o rosto
e me pedem o poema...

E são dedos de silêncio
os que me tocam a boca,
exigindo as palavras por nascer...

Há este mistério sagrado
que se desfaz em textos perdidos,
ditados pela vigília...

Há em mim esta vontade eterna
de ser só poesia,
numa noite infinita.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Se partires


Se partires, não me abraces - a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces -

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém - longe de ti o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar) e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.

Se me abraçares, não partas.

Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 5 de outubro de 2010

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Dia do Animal


Ao estudar as características e a índole dos animais, encontrei um resultado humilhante para mim.

Mark Twain

domingo, 3 de outubro de 2010

Entre a sombra e o corpo


Diante do teu ventre
como não dizer "Sempre"
novamente

David Mourão-Ferreira, Entre a Sombra e o Corpo

sábado, 2 de outubro de 2010

Nos teus olhos


Às vezes, sem tu saberes, entro para dentro dos teus olhos, à procura nem sei bem de quê...
Talvez apenas do silêncio quieto... ou da calma certeza de ter chegado a casa.

domingo, 26 de setembro de 2010

Cai o Outono em mim...


Entrou o Outono devagar
a erguer paredes de frio
e a encher o meu peito
de silêncios profundos...

Os dias recuam mais cedo
cedendo os passos às noites
ventosas e infinitas.
E quando baterem fortes
nas clarabóias da escadaria
ondem dançam
os fantasmas inquietos,
as primeiras chuvas tristes
encontar-me-ão perdida
num canto da casa,
enrolada para dentro de mim,
com os olhos vazios
de música e de palavras.

E ficarei assim,
com a memória dos dedos do sol
entrelaçados nos meus
até que finde este Outono
que cai em mim... devagar.

domingo, 19 de setembro de 2010

OITO


Porque é um número par, com um único dígito, como eu gosto. Porque é bonito, constituído por dois círculos que se fecham e eternamente se repetem, num eterno recomeço. Porque me faz lembrar dois rostos colados, encostando-se, beijando-se na boca. Ou os dois pratos de uma balança, onde pesamos o bem e o mal, os anjos e os demónios... Porque é um número que se repete em si, numa obstinação que me agrada... e sobrepõe dois anéis unidos numa estranha aliança. Porque o oito não tem cimo nem baixo, certo ou errado. O oito é um número fechado, como um casulo, uma concha ou um ninho... e parece o par de algemas que me prende aos sonhos...
O oito foi o primeiro número que os meus dedos de criança aprenderam a desenhar... E é o único algarismo que mesmo tombado, pende para o infinito...
Está decidido.
Serão oito.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Do desânimo


Nada de desgosto nem de desânimo; se acabas de fracassar, recomeça.

Marco Aurélio

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Os portões da saudade


Atravesso os portões da saudade para te encontrar. Não sei porquê. Talvez por ter sonhado contigo esta noite. Há muito que não acontecia e acordei triste e vazia, com um frio estranho encostado à pele... Ouvia ainda a tua voz, ecoando do fundo das encruzilhadas do meu sonho... Ouvi-a toda a manhã... Tu sabias como fico nervosa no primeiro dia de aulas, tu entendias o nó no meu estômago quando eu te contava e nunca rias das minhas pernas que tremiam. Depois fazias-me um chá que eu odiava mas que engolia em silêncio para não te desapontar. E tu não sabias, mas não era o chá que eu bebia, era o teu amor dentro da chávena, um amor que me estendias no peito e ia comigo para a escola, ficava dentro de mim a manhã inteirinha até as minhas pernas pararem de tremer, até o estômago se apaziguar...
Esta noite, no meu sonho, não te vi. Só lá estavam as tuas mãos, com o anel de prata que nunca tiravas, brilhando muito no anelar esquerdo... Só as tuas mãos, do tamanho da minha saudade... As tuas mãos macias e meigas, segurando no escuro que me devorava, uma chávena de chá quente, adoçado com açucar mascavado.

domingo, 12 de setembro de 2010

A posse do mar


Vou tentar explicar-te:
é como se agarrasse nas mãos
a espuma salgada das ondas
quando o meu coração
deseja afinal
possuir o fundo dos oceanos.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Da prudência


Don't make decisions when you're angry. Don't make promises when you're happy.

Autor desconhecido