quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Fotografia


Pousa esse gesto devagar
não rasgues ainda o silêncio...
Prende a palavra que escorrega
por entre os teus lábios abertos
e deixa que apenas o sorriso
eternize o detalhe
com que te guardarei
neste instante perfeito.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Do vazio


Um homem sem sonhos é como uma ave sem ninho que se perde em voos sem rumo, até cair exausta, com o coração vazio.

Um pouco mais de mim


Quase a entrar num novo ano, é altura de arrumar o coração, como eu gosto de lhe chamar. Responder a e-mails, limpar a caixa do correio, eliminar contactos que não sabemos muito bem porque mantemos, arrumar os papéis, os livros e a vida, cá dentro. Um ano novinho em folha vai começar e há muita coisa que quero fazer antes de me despedir de 2009. Tenho a estranha teoria de que não é bom começar algo com pedras no sapato. Elas impedir-me-ão a caminhada, os fardos que carregamos nos pés ferem-nos os passos e não nos deixam disfrutar do percurso. Começo o novo ano sem dores, sem mágoas, sem assuntos pendentes... Por isso, resolvi finalmente responder ao desafio da Lídia, que me deixou numa posição de desconforto porque as perguntas eram difíceis... É sempre difícil fazer escolhas e não foi pacífico completar as frases que o desafio implicava. Mas eu também gosto de desafios e olhei para dentro, para o avesso de mim, até que as respostas surgiram. São sinceras... são um pouco mais de mim.

Eu já tive... que dizer não quando queria dizer sim.
Eu nunca... feri alguém propositadamente.
Eu sei... que é possível tocar as estrelas.
Eu quero... dizer amo-te todos os dias.
Eu sonho... que um dia a saudade deixe de doer.

Obrigada


O mundo dos blogs tem isto de bom. Inesperadamente, esbarramos com textos, imagens, palavras que alguém desenhou e que parecem escritas para nós, escritas por nós. E voltamos. Porque o autor daquele blog nos fez parar para pensar, nos apresentou as coisas num outro espelho, fez com que descobríssemos uma outra face da mesma vida, a vida que todos respiramos, afinal de contas. Uma música. E algo se agita dentro do peito, uma recordação qualquer que se julgava perdida escapa do olhar, escorrega na lágrima imprudente... Um poema. E ali está, sob o nosso olhar desprevenido, a emoção que nos fazia falta, a palavra que aquieta, que apazigua as inquietudes solitárias, que queríamos dizer e não sabíamos bem como... Voltamos. Voltamos sempre àquele blog que nos faz companhia, cujo autor nos parece até conhecermos, como um amigo distante que nos faz falta e do qual queremos saber os passos no rumo que já descobrimos...
Há alguns blogs que eu visito diariamente. Só porque sim. Porque gosto dos autores. Apesar de não os conhecer, adivinho-lhes os gostos, as sensibilidades, as emoções. Pressinto-lhes a tristeza ou a alegria, sorrio com eles, entristeço se o momento é doído... E volto. Gosto das palavras usadas. Gosto muito. E gosto sobretudo da sensação de andar na rede e tropeçar em coisas bonitas, em pessoas bonitas, no verdadeiro sentido da palavra.
Uma das pessoas que encontrei, foi a Márcia. Num delicado gesto de simpatia, a Márcia mandou-me um selo e encheu-me de orgulho com as palavras que me dedicou. Aqui fica o presente. Obrigada Márcia. Também te visito todos os dias.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Sentir... apenas


Não questiones as tuas emoções.
Por acaso te interrogas sobre as fases da lua, o ritmo das marés, o vento, a chuva ou as tempestades?

sábado, 26 de dezembro de 2009

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

NATAL


Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.

Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.

Miguel Torga, Natal

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Palavras únicas


Cada pessoa que passa na nossa vida, passa sozinha. É porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra.
Cada pessoa que passa na nossa vida, passa sozinha e não nos deixa sós porque deixa um pouco de si e leva um pouco de nós.
Essa é a mais bela responsabilidade da vida e a prova de que as pessoas não se encontram por acaso.

Charlie Chaplin

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O sabor da saudade


É quase Natal e tu não estás. Só me ocorre isto, vezes sem conta ao longo dos dias. É Natal e tu não estás. Nunca mais estarás. E não me habituo, sabes? Talvez porque tu eras o Natal e eu não sabia. Juro-te, não tinha percebido até tu te ires, que tu fazias as coisas terem sentido. Listavas e compravas tudo atempadamente, demolhavas o bacalhau vigiando as águas com uma ternura desconcertante, cortavas as couves e os grelos, descascavas as batatas, as cebolas, os alhos, as cenouras, cozias e descascavas os ovos caseiros com gestos de porcelana, fervias o molho, sempre com um sorriso só teu, com um carinho infinito e uma serenidade que me enchia de paz. Querias que corresse tudo bem. E sempre corria. Os doces fazíamos juntas, lembras-te? Fritavas as rabanadas velando o óleo para que não queimasse e entregavas-mas para que eu terminasse. Rias muito porque eu queimava as pontas dos dedos ao pegar nas rabanadas quentes e soprava as mãos enquanto as envolvia na mistura de açucar mascavado e canela. A casa perfumava-se de Natal naquele momento só nosso... Eu gostava sobretudo de segurar o grande tacho de aletria que tu rapavas para a travessa decorada com azevinho, em nuvens de vapor doce que escaldava um cheiro intenso a limão. E depois sentávamo-nos uma em frente à outra a partir nozes e a desfiar o pão, numa conversa singela e adocicada, que terminava quando tudo estava pronto.
Este ano, mais uma vez, farei a ceia sozinha. E eu tento, sabes? Tento fazer tudo como tu me ensinaste, mas as coisas não têm o sabor das feitas por ti, sabem a saudade, uma saudade infinita que me denuncia e se deixa trair na lágrima fugitiva que me acontece quando me sento à mesa e o olhar se me esbarra no teu lugar vazio. E nunca mais me habituo a este sabor. Ao sabor da saudade.

sábado, 19 de dezembro de 2009

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Vox populi, vox Dei


Não é mérito o facto de nunca termos caído, mas sim o de nos termos levantado de todas as vezes que caímos.

Provérbio árabe

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

É quase Natal


A rapariga do casaco amarelo chegou primeiro. Sentou-se, pediu um café e esperava. Notava-se que esperava ansiosamente alguém, traindo-se no olhar que fugidio voava até à porta ou regressava aos ponteiros do relógio vezes sem conta. Ele chegou por fim, sentou-se sem sorrir e não a olhou. Começaram a conversar num diálogo de nervosismo onde as palavras se atropelavam e se interrompiam, numa daquelas conversas que às vezes acontecem onde cada um tenta falar sozinho... A rapariga do casaco amarelo torcia os dedos nervosamente e mordia os lábios tentando desaguar a inquietude. Ele tinha o rosto impenetrável. De vez em quando abanava a cabeça negativamente ou passava nervosamente os dedos pelo cabelo cortado curto. Discutiam num tom baixo e discreto, alheados do mundo, sem ver ninguém, completamente absortos nas palavras um do outro e até o mundo parecia girar mais devagar, suspenso no desenlace daquele desencontro. Pelo canto do olho, disfarçadamente, as pessoas olhavam-nos mas eles não notavam. E foi então que ela abriu o fecho da mala que trazia a tiracolo e fez aparecer um embrulho que pousou com um sorriso em cima da mesa, ao alcance dos gestos dele. Era um papel vermelho, brilhante como fogo, abraçado por uma fina fita dourada, um embrulho tão pequeno como a chávena de café que jazia já fria e suja entre os dois. O embrulho vermelho ficou ali, sorrindo em cima da mesa como uma flor aberta, soltando uma nota de alegria discordante daquele par em desarmonia... Curiosas, as pessoas não disfarçavam já, queriam saber o final da cena que se desenrolava à vista de todos e fazia prever um final feliz. Mas o jovem do cabelo curto não fez um gesto, apenas cravou os olhos no embrulho, demoradamente, parecendo incomodado com a cor gritante do presente que lhe era oferecido... depois, finalmente, debruçou-se sobre a mesa, sussurrou qualquer coisa ao ouvido da rapariga do casaco amarelo, passou-lhe a mão com ternura pelo cabelo de caracóis escuros, levantou-se precipitadamente, e saiu sem olhar para trás. Ela tinha os olhos cheios de lágrimas. Escondeu o rosto nas mãos, a segurar as emoções, e repentinamente, alguns instantes depois, levantou-se e saiu também, sem agarrar o embrulho vermelho em cima da mesa.
É quase Natal. Não consigo deixar de tentar imaginar se no momento de abrir os presentes, o rapaz do cabelo curto demorará por algum tempo o seu pensamento no embrulho que não abriu e deixou desprezado na mesa de um café, ou se a rapariga do casaco amarelo ultrapassará a dor que se sente inevitavelmente quando alguém nos rejeita sem equívocos e se corporizou no bonito presente vermelho, deixado ao abandono ao lado da chávena do café que se esqueceu de pagar...
É quase Natal. É quase Natal, mas não acredito que algum dos dois sinta isso no coração...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Post secret


- Porquê?
- ... Porque às vezes escorrego para dentro de mim, deixo-me cair num daqueles desfiladeiros que existem no meu peito... e a queda arranha-me os sonhos, rasga-me as emoções em pequenos pedaços de uma dor escura... E às vezes perco-me, sabes? Engano-me na rota traçada, perco-me no meu marear em dias de oceanos revoltos que me obrigam a naufragar algures, cá dentro, nos lugares do coração... Porque às vezes só há silêncio, ecoando assustador como uma infinita noite de insónia... e a névoa salgada nos meus olhos cega-me, impede-me de descobrir a saída... uma saída. Porque às vezes tropeço nos meus próprios passos e tombo como ave ferida num voo audaz, embrulhada num cansaço frio que não te sei contar, presa a um desânimo sem fim... Porque sou humana. E imperfeita. E às vezes caio.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Até ao fim


Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

Nuno Júdice, in Pedro, Lembrando Inês

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Palavras sábias


Você nasce sem pedir e morre sem querer.
Aproveite o intervalo!

Autor desconhecido

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Dezembro


E vai envelhecendo o ano,
friamente embalado na chuva que cai
como um lamento áspero, melancólico...
Persiste um arrepio triste e húmido
no ponteiro dos dias que correm velozes.
Saudades do sol, neste mês em que será Natal.

domingo, 29 de novembro de 2009

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Da solidão


(...) Meu Deus, a pouco e pouco vamo-nos tornando sotãos onde o passado amarelece, a pouco e pouco os sotãos invadem a casa que somos, principiamos a mover-nos entre sombras truncadas de gente, emoções, memórias. Lentamente tiram-nos tudo, o presente afunila-se, o futuro uma parede. E nós, apesar de adultos, tão crianças, assustados, perdidos, juntando pedaços dispersos para nos reconstruirmos de novo, continuarmos. Na direcção de quê? Para onde? Quem nos espera ainda? (...)

António Lobo Antunes, in Livro de Crónicas

pessoas que gostam de escrever.
Há pessoas que sabem escrever.
Há escritores.
Há bons escritores.
E há o Lobo Antunes.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Dias assim


Que dias há que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.

Luiz Vaz de Camões

Ó Stora...


- Ó Stora... Porque é que tudo junto se escreve separado e separado escreve-se tudo junto?
- ... :(

Do sorriso


E percebi que os sorrisos servem para uma data de coisas, como por exemplo para tapar buracos que aparecem quando o mar das palavras se transforma em deserto.

Maria Teresa Maia Gonzalez, A Lua de Joana

Vox populi, vox Dei


A mais alta das torres começa no solo.

Provérbio chinês

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Quietude


Apagaram-se os pirilampos
no campo, meu amor
E as cigarras calaram a voz
numa mordaça triste.
Tudo se aquieta... meu amor
Até o bonito tronco rugoso
do castanheiro velho não geme já
na dança vadia com o vento norte.


Ficou apenas um silêncio escuro
o abraço invisível do vento
na chuva que se enterra...
E o eco ensurdecedor
dos teus passos no vazio.
Os teus passos, meu amor...
Como uma maldição
que se cumpre devagar.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

No sangue do tempo


Foste o meu passado
e serás o meu futuro
mesmo quando o futuro
já tiver acabado.

O princípio e o termo
a luz e o escuro

quando o fim do presente
já tiver terminado.

Maria Teresa Horta, Obra Poética

domingo, 22 de novembro de 2009

Arranja-me uma mentira...


Olha, fazemos assim: da próxima vez que eu perguntar tu mentes-me, arranjas uma mentira qualquer, uma mentira singela daquelas que não trazem mal ao mundo e atiras-me com ela sem hesitar, pendurada na curva do teu sorriso, como uma onda salgada... E eu finjo que acredito... Podes falar-me da alergia sazonal que nunca tiveste e eu até duvidarei das lágrimas que te vi enterrar na manga do casaco enquanto te prendia o cabelo com os ganchos e te perfumava os pulsos como tu gostas. Não foi impressão minha, havia uma angústia áspera que te embaciava o olhar, notei o tremor gelado preso à sombra dos teus gestos, por isso, inventa qualquer coisa, o que quiseres, conta-me do tempo frio, do vento e da chuva, da roupa que não seca e te enerva, amontoada na velha bacia castanha com rasgões tristes, que te custa tanto carregar... culpa o leite derramado num mar de espuma quente, agarrado às paredes do micro-ondas esquecido, o aspirador avariado, a chave partida ou uma lâmpada fundida num estouro imprevisto que te deixou o coração em sobressalto... Mas desencanta uma mentira, diz-me das catástrofes que vergam o mundo, as notícias negras e tão injustas dos telejornais, a morte inesperada do protagonista do livro que andas a ler, a noite mal dormida, a vizinha barulhenta que te sacode o silêncio, a torneira que pinga num lamento eterno... sei lá, qualquer coisa... Mas mente-me, inventa-me uma mentira que arrombe as portas do teu peito e deixa-me entrar por aí adentro... Deixa-me fazer ninho num lugar pequenino do teu coração onde eu possa ficar a contar-te histórias ou a cantarolar baixinho a tua canção preferida como tu me fazias quando eu era criança, até que o amanhecer exorcize essa dor que julgas conseguir esconder de mim.
Da próxima vez que eu perguntar, arranja-me uma mentira... Pode ser?

sábado, 21 de novembro de 2009

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Quando menos se espera


Quando menos se espera, o corpo branco de um veleiro silencioso rasga ao fundo o azul, vai ganhando o mar, deixando que a viagem apeteça. E de repente, quando já nada se espera, um brando vento que tudo clareia, empurra as paredes de rocha e desenha rotas líquidas nas estradas do mar da vida. Rotas que nos chamam de novo, caminhos luminosos sob o rosto redondo de uma lua cheia, onde apetece navegar... Inesperadamente, quando já não se acreditava, impertinente e teimoso, num riso trocista, o sonho desafiando-nos alto... outra vez. Quando menos se espera.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Silêncio


Não... não digas nada.
Eu sei ler o avesso do teu silêncio.
Conheço-o quando se faz ave presa ao chão, as asas rasgadas, ferida na impossibilidade do voo... ou quando é só uma mão fechada estrangulando a boca das palavras.
Por isso... não digas nada.
(Abraça-me apenas).

domingo, 15 de novembro de 2009

O piano


A minha vizinha comprou um piano. Quando hoje ouvi as notas tímidas pela primeira vez, parei o que fazia e escutei surpresa e encantada, a cabeça inclinada atrás da claridade do som que atravessava as paredes e se insurgia na quietude matinal, como um sorriso de sol ou um roçagar de asas de pássaro... Era mesmo um piano. E a pedra da memória soltou-se com suavidade, transportou-me a tantos anos atrás, quando era criança e fazia a pé o caminho até à praia, por uma ruazinha apertada e ventosa, sombria, onde quase ninguém passava. Eu gostava daquela rua, do empedrado que fazia soar alto os meus passos de criança e brincava com o som que ecoava do meu caminhar. A meio da rua morava uma pianista idosa que dava aulas de piano a crianças e o som daquele piano enchia o percurso de sol e alegria, de espanto e magia... Às vezes ouvia-a ralhar... mas mesmo assim, desejava poder ser uma das suas alunas e sentar-me ao piano daquela casa, arrancar melodias encantadoras, como por magia, das teclas que me chamavam. Ao cair da noite, quando regressava da praia, era já a própria pianista quem tocava, finalmente liberta da obrigação das aulas e entregue à fluidez do seu próprio sentir, a janela escancarada sobre a rua, como se quisesse generosamente oferecer a música aos passantes... A rua brilhava de luz com aquele som fantástico, tornava-se subitamente mais bonita e quente, o meu coração de criança sorrindo num turbilhão de encantamento... E então parava em frente à janela e sentava-me no passeio de pedra fingindo apertar as sandálias, os meus dedos simulando os gestos da pianista, os olhos parados nessa viagem que me acontecia dentro do peito...
Ouço-o agora, o piano da velha pianista que me encantava... ou será o da vizinha, gemendo sob os dedinhos inseguros da filha mais velha? Pouco importa... Páro de novo e escuto... Abandono o que fazia e escuto apenas... e as memórias que trazia guardadas, como se me beijassem a pele num arrepio, voltam em melodias de sorrisos e enchem-me de uma alegria calma e inesperada...

sábado, 14 de novembro de 2009

Um dia de cada vez


Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro e depois perdem o dinheiro para a recuperar. Por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por nem viver no presente nem no futuro. Vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se não tivessem vivido.

Confúcio

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Da claridade dos teus passos


Falta a luz dos teus olhos na paisagem:
O oiro dos restolhos não fulgura.
Os caminhos tropeçam, à procura
Da recta claridade dos teus passos.
Os horizontes, baços,
Muram a tua transparência.
Sem transparência.
O mesmo rio que te reflectiu
Afoga, agora, o teu perfil perdido.
Por não te ver, a vida anoiteceu
À hora em que teria amanhecido...

Miguel Torga, Obra Poética

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Muros


Há pessoas que erguem muros. Pacientemente, pedra sobre pedra, sobem-nos até ao céu e sentem-se finalmente emparedadas... falsamente protegidas. Depois, dedicam-se a fechar todas as frestas por onde entre uma réstia de luz doirada, uma brisa matinal, o sal de uma onda fugitiva, o brilho prateado do luar... E ficam sozinhas. Os construtores de muros são seres solitários, magoados. Voltados para dentro de si, lambem as próprias feridas e empurram o vento com as mãos, o vento teimoso que lhes invade as fissuras e penetra por todos os poros... Isolam-se. Para que nunca mais ninguém os magoe, estes arquitectos da solidão refugiam-se no escuro de um poço que os arrasta para o vazio, para o buraco negro da velhice e da tristeza infinita. Apodrecem sozinhos, numa escolha consciente e determinada, porque perderam a fé nos homens e no amor, no riso e no pranto, no perder e ganhar quotidiano que nos engrandece na estrada da vida...
Mas os muros derrubam-se. Os muros caem. O muro de Berlim é prova disso. E no entanto, não é desses muros que falo, esses são frágeis e transformam-se em pó debaixo dos golpes fortes de um qualquer gesto libertador. Os muros mais difíceis de destruir são feitos de pele fria, de bocas que não conhecem sorrisos, de mãos que não se abrem num abraço, de vozes que se calam em mil silêncios, de olhos parados numa quietude baça...
Apesar de tudo... acredito que também esses podem cair. Basta querermos. Basta deixarmos.

domingo, 8 de novembro de 2009

Palavras fundas


Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética

sábado, 7 de novembro de 2009

Cá dentro


Hoje, se ainda estivesses connosco, teria sido um dia feliz. A família estaria reunida em volta de um bolo, tu apagarias as velas e pedirias um desejo com os olhos fechados... depois rasgarias o papel do embrulho dos teus presentes com um brilho no olhar e verias os livros que eu teria escolhido para ti... Brindaríamos com champanhe, as taças tinindo alegres na limpidez do cristal e desejaríamos uns aos outros muitos anos de vida, por entre abraços e sorrisos. Depois, como se tivesse outra vez quatro anos, eu procurava o teu colo e aninhava-me no calor do teu casaco de lã enquanto te contava ao ouvido a minha nova vida... E tu brincarias com as pontas do meu cabelo e ouvirias tudo atentamente, o teu olhar de médico clinicamente pousado no meu, à procura das minhas emoções...
Mas o dia não foi assim. Foi um dia gelado e triste. O coração pesou-me e aquele aperto no peito que sinto às vezes, esteve comigo o tempo todo. Acalmou um pouco quando te deixei uma flor na lápide branca onde o teu nome aparece já esbatido, escorrendo saudade e tristeza por entre as gotas de chuva fria. Acalmou um pouco, agora que te escrevo e conto quantos anos farias se não tivesses partido, agora que tento imaginar os teus cabelos negros salpicados de fios brancos e rugas no teu rosto bonito. Acalmou um pouco, enquanto relembro o teu colo, as mãos acarinhando-me, os braços apertando-me junto a ti...
Hoje seria o teu aniversário. E eu passei-o contigo, papá.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Ela


Às vezes passa-lhe pela cabeça desistir. E é nessas alturas que dobra o medo em pedaços muito pequeninos e o esconde debaixo da pele, para ninguém ver. Mas de nada adianta. O medo agarra-se-lhe aos poros como um perfume intenso e causa-lhe vertigens, fá-la vacilar... É então que vai buscar o sorriso. É um sorriso bonito, nascido da timidez e da humildade de quem não se apercebe da luz que carrega consigo e que, no entanto, ilumina tudo em derredor... Respira fundo. E sorri. Naquele sorriso que lhe veste o rosto como uma máscara, julga esconder finalmente o medo. Sempre o medo. Mas não adianta. Um observador atento lê os gestos inseguros, o brilho inconfundível da lágrima insistente, o silêncio súbito que denuncia a ausência para um qualquer lugar distante onde ninguém a alcance... E ela não sabe. Não sabe que o medo não se mata, não se vence, não se esconde. Aprende-se a viver com ele... e é só. Por isso, quando lhe passa pela cabeça desistir, render-se ao medo, fica ainda mais frágil... o coração batendo no peito à desfilada, desejando poder voar como as aves e cruzar os céus infinitos do desassossego, até a coragem erguer novamente a voz... Os muros de silêncio que ergue à sua volta, são grades feitas do frio aço do medo que lhe amordaçam a vontade e lhe pedem para desistir.
Mas de nada serve.

Vox populi, vox Dei


Se tem remédio, porque te queixas?
Se não tem remédio, porque te queixas?

Provérbio oriental

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

sábado, 31 de outubro de 2009

Halloween


Acho piada ao Halloween. Esta noite negra e roxa, roubou os tons à magia ritualística e às roupagens das bruxas, dos magos e das feiticeiras. É a noite de todas as loucuras, numa fusão entre o sagrado e o pagão, cujas origens indistintas se vão perdendo no tempo... Chamava-se originariamente Festa do Sol e assinalava o fim oficial do Verão, o final da terceira e última colheita e o período de retorno dos rebanhos dos pastos. A partir da Festa do Sol, os cristãos começavam a recolher provisões para o Inverno, como formigas previdentes e cautelosas.
Mas segundo a lenda celta, é nesta noite que os espíritos de todos os que morreram ao longo do ano voltam à procura de corpos vivos para possuir e habitar. Os celtas acreditavam ser a única chance de vida após a morte, na noite em que o mundo dos espíritos se mistura com o dos vivos... E como os vivos não queriam ser possuídos, na noite de 31 de Outubro apagavam as tochas e as fogueiras de suas casas e iluminavam os caminhos para que os espíritos viajantes prosseguissem a sua busca silenciosa sem os verem, sem lhes invadirem as casas, os corpos e as almas... Usavam disfarces e ruidosamente desfilavam em torno do bairro, sendo tão maléficos e destrutivos quanto possível, a fim de assustar os que procuravam corpos para habitar.
A maior parte dos foliões não sabe porque se celebra o Halloween, esta noite é apenas mais um pretexto para dançar pela noite dentro, para reencontrar os amigos, para fazer uma noitada de arromba... Muitos caminharão pelas ruas sem se importarem com os gatos pretos que os celtas acreditavam ser o espírito dos mortos, ou com as aranhas que simbolizam o destino, a ordem e a teia do universo, sequer olharão o céu procurando descobrir uma bruxa gargalhando maleficamente e deslizando veloz em cima de uma vassoura... É uma noite mágica com raízes satânicas, uma noite em que devemos espreitar cautelosamente por cima do ombro, não vá o diabo tecê-las, com tantas forças estranhas e ocultas que se agitam por aí...
E é como se costuma dizer: No creo en brujas, pero que las hay, las hay.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O teu nome


Diz-me o teu nome - agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão

com os teus dedos - como as poeiras
se escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,

como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o

nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.

Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.

Maria do Rosário Pedreira

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Voltar para contar-te


Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como dói

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

Manuel Alegre

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Do fundo do coração


Foi há dois anos. Tanto tempo...! E no entanto... parece ontem ainda... Eu não era a pessoa que sou hoje e não sei bem porque me apeteceu ter um blogue. Comecei a medo, receosa da responsabilidade da palavra escrita, pousada para sempre no texto que muitas vezes só eu entendo... que só eu sei porque escrevi... Muita coisa aconteceu nestes dois anos, por duas vezes encerrei este espaço e por duas vezes o reabri, numa necessidade imperiosa de estar a sós comigo. A verdade é que me faz falta este debruçar-me sob o meu olhar e entrar no meu peito como em casa alheia... Às vezes faço limpezas, levanto as pedras da memória e deixo que as palavras raspem o musgo frio da saudade e da tristeza... Outras vezes, são só palavras que me fazem sonhar, que me obrigam a descer a escadaria do fundo poço das emoções, os degraus em espiral percorridos um a um, até ao centro de mim, aos lugares do coração... É uma viagem solitária, só minha.
O meu blogue faz hoje dois anos e as palavras, minhas ou roubadas aos poetas, são farrapos de um tecido de emoções que nem sempre sei dizer neste meu porto de abrigo.
Esta é uma janela aberta sobre o avesso de mim. Dois anos depois, talvez esteja na hora de a encostar de novo... porque entardeceu e faz frio... porque escureceu de repente... porque preciso da quietude... porque há viagens que só se fazem no silêncio... porque há estradas que só encontramos na solidão.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Palavras perdidas


Mãe! dói-me o peito. Bati com o peito contra a estátua que tem em cima o verbo ganhar. Ainda não sei como foi. Eu ia tão contente! eu ia a pensar em ti e no verbo saber e no verbo ganhar. Estava tudo a ser tão fácil! Já estava a imaginar a tua alegria quando eu voltasse a casa com o verbo saber e o verbo ganhar, um em cada mão!
Dói-me muito o peito, Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro

domingo, 18 de outubro de 2009

Mais um dia que passou


Hoje venho dizer-te que nevou
no rosto familiar que te esperava.
Não é nada, meu amor, foi um pássaro,
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.

Foi apenas mais um dia que passou
entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente na tua mão.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Sem palavras


Hoje não escrevo. Não consigo escolher as palavras que, como aves fugidias, são peças indecifráveis de um puzzle que não consigo montar... Não sei contar deste novelo enrolado no meu peito, embrulhado em emoções que não me apetece ler. Hoje o texto não faz sentido, tem o rosto do cansaço e da solidão, do silêncio e do vazio...
Hoje não escrevo. Não sei dizer esta inquietude com as palavras que conheço. Talvez haja outras, mais rebeldes, que se escondem por detrás do bater do coração e brincam com as minhas mãos atadas, com a voz silenciada por uma mágoa qualquer que hoje o espelho das lágrimas não me devolve. Mas também essas me fogem, se escapam velozes do texto que não nasce...
Hoje não escrevo. Apaguei a luz cá dentro e no escuro, talvez entenda esta música que ecoa baixinho... Esta toada triste e dolente, como um vento frio que anuncia a chegada da chuva... Hoje dentro de mim, não há nada que eu entenda.
Por isso hoje não escrevo.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Quente


Gosto deste calor despropositado e trocista que volta as costas ao Outono... Gosto deste calor que pede a pele nua e o ar puro ao entardecer... Gosto do calor destas noites paradas, líquidas de suor, que trazem insónias agarradas...