Lembro-me sempre do Rui, quando tenho que viajar. Era o rapaz mais feio da escola, alto e magrinho, o cabelo sempre revolto e frequentemente gorduroso, um rosto triangular cheio de espinhas infectadas e amarelas... Nunca sorria e andava sempre só, arrastando o corpo desengonçado pelos jardins da escola, sentava-se à chuva e falava sozinho, num solilóquio que só ele sabia e onde não deixava entrar ninguém. O Rui gostava de mim, não és peneirenta como as outras, dizia-me sem saber que me atordoava aquele isolamento, aquela estranha loucura que os colegas olhavam de soslaio e respeitavam muito pouco...
O Rui adorava aviões. Atirava os olhos para o céu e ali ficava, a ver as estradas de fumo riscando o azul, desenhando rotas e setas, por vezes o brilho incandescente de algum avião incendiado pelo sol, e dizia-me como se me confiasse um segredo: Vou morrer no ar. A primeira vez aquilo assustou-me mas depois, aos poucos, habituei-me e brincava com ele, ouvia-o falar de explosões de motores, de falhas de combustível, de asas destruídas por raios, de tempestades e ventos que atiravam os aviões para o fundo dos oceanos, de piratas do ar e pilotos que sofriam ataques cardíacos... Ria-me da loucura dele e ele ria-se do meu terror de voar. Era uma estranha partilha que hoje reacordo após tantos anos... Nunca mais vi o Rui, nem sei se ele é piloto de aviões como sempre sonhou... Não sei se ainda acredita que vai morrer no ar... Se o encontrasse hoje, contava-lhe do medo que ainda não venci... Contava-lhe que amanhã, quando subir as escadas do avião, vou ter o coração descompassado e as mãos frias... Contava-lhe que não me conformo que não haja no céu áreas de serviço onde se possa parar para caminhar um pouco e respirar fundo, que as janelas dos aviões sejam hermeticamente fechadas e seja impossível baixar o vidro e respirar ar puro, sentir o vento... O Rui entenderia, porque sabia que eu gosto de vento a bater-me na cara, que não gosto de me sentir prisioneira num espaço fechado, que morro de medo de andar no ar...
Olho a mala fechada junto à porta de entrada e respiro fundo... Lá dentro, muito pouco do que tenho viajará comigo... mas dentro do peito, todos os medos, todos os terrores que (ainda) não consegui vencer... E quando pisar o chão e olhar em volta a cidade, sei que vou respirar por fim e esquecer de novo o Rui e os seus estranhos disparates...