quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Feliz Ano Novo!


O Homem é do tamanho do seu sonho.

Fernando Pessoa

Em 2015, seja gigante nos sonhos que sonha... Reinvente-se e permaneça indestrutível nas batalhas para os alcançar...
Feliz Ano Novo!

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Aguarela de Natal


Tento escrever o brilho deste dia. A calma. O céu baixo, naufragado em tons de cinza, o esvoaçar tranquilo das pombas e das rolas, a dança em contraluz dos melros no gramado entristecido do meu jardim. Tento escrever o velho azevinho que se ergue majestoso como um navio, os braços verdes apontando as nuvens, riscando um fio de sol... As flores tímidas pontilhando de roxo a terra negra dos canteiros... O musgo que amacia os muros. 
Tento escrever o Natal, o que existe dentro do meu peito, no coração preso às árvores derrubadas pelo tempo, tombadas de saudade... Mel e canela, na chama da minha memória. Risos e colo. Caramelos de nata com rótulo espanhol. Fotografias desfocadas em papel brilhante que nunca ninguém rasgou. Beijos, muitos beijos.
É Natal e eu não escrevo, nada digo. Prendo-te no silêncio dum abraço infinito, deixo que o meu coração de pássaro se ilumine nas linhas suaves dos versos que nunca serão e que encontre a força do fogo que me corre ainda, algures, dentro das veias...


A si que me visita, desejo um Natal cheio de paz.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Esboços


Como um barco, a cidade afunda-se na noite, vai escorregando lentamente para a escuridão que a engole no meio do silêncio.  Conduzo devagar na noite fria, deixo-me ir na estrada deserta... Há luzes incendiando as janelas dos prédios e espreito pedaços de vidas que moram dentro das casas - fugidias - nos escombros da noite. Imagino histórias. Banais e simples. Uma parede amarela, um quadro da Guernica, a cauda de um piano, uma gaiola redonda com um periquito encolhido... Os móveis brancos de uma cozinha, o rosto da apresentadora da noite numa tv ultramoderna, uma menina que dança com uma toalha na cabeça, um homem que fuma com os cotovelos apoiados no peitoril da janela escancarada, uma mulher lavando roupa na marquise de um prédio triste... Esqueço-me para onde vou. Não tenho pressa, demoro-me nesta ocupação de roubar imagens que contam histórias, de riscar versos tímidos que talvez venham a ser poema... Conduzo devagar, mais devagar. Por detrás dos prédios, a lua corre diante do meu carro, enorme, líquida de luz... Tão bela...! Tão cheia de silêncio e de gelo... Digo o teu nome dentro de mim e há uma montanha que se ergue no meu peito. Apago o poema... Ponho a música mais alto, canto baixinho a canção que adoro e deixo-me ir. Devagar.  Rasgando o ventre da cidade. 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Enquanto os deuses dormem...



eu gostava de poder dizer
que entrei no teu corpo como um pássaro
espreitando de invisíveis ruínas
e que o som da tua voz bastava
para me salvar

mas de nada serve inventar palavras
quando as palavras que inventamos
não passam de frágeis lugares de exílio
dos gestos inventados fora de horas
delimitando o espaço de tantas mortes prematuras
de que jurámos ressuscitar um dia

- quando os deuses se lembrassem
de acordar ao nosso lado

Alice Vieira, "Amor e Outros Crimes Em Vias De Perdão" (excerto) in Dois Corpos Tombando Na Água

terça-feira, 11 de novembro de 2014

domingo, 9 de novembro de 2014

(...)


Something in me was born before the stars
And saw the sun begin from far away

Fernando Pessoa, "XXIV" in  35 Sonnets

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Crónicas do Vento Salgado


Ela chega sempre primeiro. Senta-se à mesma mesa, na mesma cadeira, repete com lentidão os mesmos gestos: despir o casaco, dobrá-lo cuidadosamente, pendurá-lo nas costas da cadeira, arranjar o cabelo com gestos indiferentes, abrir a carteira e tirar óculos e telemóvel... Depois liga-lhe e lê-lhe a ementa. Faz o pedido para os dois. E espera. Tem um olhar triste e envelhecido, a pele baça, as raízes do cabelo a precisar de retoque há muito tempo, o verniz das unhas estalado, em tons de ruína. 
Ele chega dez minutos depois. Apressado, não a beija, não a olha, senta-se em silêncio e destapa a tigela da sopa que ela cobriu amorosamente com um prato para que não arrefecesse. Come com os olhos colados na televisão sem som, responde com monossílabos às perguntas que ela lhe faz. Engole a comida como se cumprisse uma obrigação e no fim, levanta-se e repete sempre a mesma pergunta: Pagas isto? Ela, a meio de uma garfada, confirma - Sim, vai lá à tua vida - e sente-se o estalar da indiferença com que ele lhe vira as costas e sai...
Ela não sabe quem eu sou, eu nunca a esquecerei. Eu era uma adolescente sentada na mesa de um café que já não existe, entre um grupo ruidoso de amigos... Na parte do restaurante, ela era a noiva mais bela que já vi. Tinha os negros cabelos soltos, caindo pelos ombros, enfeitados com flores naturais e um maravilhoso vestido branco bordado a pérolas... A saia era voluptuosa, vaporosa, como se ela caminhasse dentro de uma nuvem... Estava feliz e ria, ria muito... Dançou nos braços do marido e juro que flutuava, os olhos brilhando mais do que as pérolas do vestido... Foi a primeira noiva que vi tão de perto e desejei muito poder vir a ser uma noiva assim tão feliz, assim tão bela...
Quando ele sai, a noiva outrora feliz fica sozinha a terminar vagarosamente a refeição. Enquanto espera pelo café, não tira os olhos dos dedos que, em gestos repetitivos e ritmados, enrolam e desenrolam o guardanapo de papel onde se nota o borrão do batom cor de cereja que faz parecer mais pálido o seu tom de pele.
Eu saio antes dela. Deito-lhe um último olhar discretamente e percebo que se mantém cosida consigo própria, refém da solitária dança dos dedos e parece-me mais do que nunca, uma ilha perdida no meio do mar, uma flor murcha, tombada no vidro estilhaçado dos dias... 
Às terças é mais triste o meu almoço no restaurante de sempre... Não sei bem se por causa da limpidez das minhas memórias, se por culpa da aspereza do presente...  

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Palavras roubadas


As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias
as minhas últimas palavras.

Manuel António Pina, "Todas as Palavras" in Poesia reunida

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Confissões


No dia da apresentação do livro, a vida lançou os dados ao contrário e, estrangulada por compromissos de trabalho inadiáveis, não pude estar presente. Talvez por isso, não tinha ainda sentido este projeto como sendo também meu nem tinha sorrido com a alegria de ter um trabalho publicado, eternizado na estante dos meus filhos, quem sabe, na biblioteca pessoal dos filhos dos meus filhos... É o lado maravilhoso da palavra escrita, o poder imenso de nos transportar através dos tempos, de nos eternizar como guardiões de instantes fugazes mas indeléveis... Através dos livros, ficamos sempre, mesmo após a nossa morte, como as árvores... E mesmo que ninguém nos compre, nos escolha ou requisite numa biblioteca de bairro, nós estaremos ali, numa solitária estante onde o pó do tempo se acumula, na sombria cave de um alfarrabista falido, vendidos ao desbarato numa qualquer feira de rua ou no porão de um navio que já não cruza os mares. Ficamos. Para sempre, somos um ISBN único, um código de barras que é como uma impressão digital, nos arquivos internacionais... E há um sabor especial e maravilhoso em tudo isto...
Os dois exemplares que tinha encomendado chegaram hoje pelo correio. Depois, foi o prazer lento e demorado de abrir o embrulho, de os ver pela primeira vez, de passar a mão pelo macio da capa, de cheirar o papel... Só então me procurei. Desta vez, a vida lançou os dados certos: encontrei-me na página 27, o primeiro número mágico da minha vida, um número que escolho sempre que posso. Com a página aberta, recuei até ao dia 27 de junho dos meus vinte anos, a um entardecer de calor sufocante que determinou a minha vida... Sim, o meu texto só podia estar na página 27...! Reli-o e encontrei-me outra vez... Este conto foi escrito de um único fôlego, mal tive conhecimento do tema... Corrigi muito pouco, mudei quase nada, era assim que o queria... Gosto tanto dele...!
É uma honra ter sido escolhida pelo júri da Lua de Marfim e ser co-autora da coletânea Confissões. E quando o editor elogiou a minha escrita e me perguntou quando publico uma obra só minha, não tive coragem de lhe confessar as minhas esperanças: talvez 2015 me traga um novo ISBN, a impressão digital que gravará a minha voz eternamente, que guardará para sempre as minhas palavras escritas, ainda que envoltas em silêncio.  


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Palavras roubadas


tenho saudades da terra
do estar. apenas estar. da pele que repousa, sem mais, sobre a mesma pele.
do regresso. do fechar os olhos.
o mar não deveria ser recusado a ninguém porque abre os olhos por dentro.
a terra não deveria ser recusada a ninguém porque deixa que o coração descanse....
finalmente.


Possidónio Cachapa in Facebook - Página Pessoal

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Crónicas do Vento Salgado


A luz enorme desta tarde quente escorria da clarabóia do bonito centro comercial, pousava-lhes meiga nos ombros levemente curvados, nos corpos inclinados sobre a mesa. As duas mulheres conversavam baixinho, o mundo dava voltas devagar e a água que uma delas bebia ia aquecendo lentamente no calor das horas. Bonitas, as duas. Ainda jovens. Visuais cuidados mas discretos. Numa cadeira entre ambas, dois sacos da Fnac donde espreitavam as capas da Antologia Poética do Miguel Torga e d'Os poemas possíveis do Saramago. Não ouvi o que partilhavam... Talvez conversassem sobre Poesia. Talvez fosse só sobre a vida. Uma delas tinha lágrimas nos olhos, as da outra não se viam, mas traíam-na mesmo assim, atravessadas na garganta. Não sei o que unia as duas, eram provavelmente amigas, envoltas no consolo que vem de um reencontro há muito esperado... Indiferentes ao ruído, à música, à multidão e às montras apetecíveis, as duas mulheres eram uma ilha rodeada de mundo por todos os lados e, no entanto, estranhamente sós. E eram uma muralha contra a solidão dos dias, a nota dissonante neste quotidiano indiferente às fragilidades do outro, onde cada um de nós desfila máscaras e afivela sorrisos instantâneos... Naquela mesa do canto, percebia-se o mágico intimismo que só conseguem ter as pessoas que se reconhecem como iguais, que se escolhem para sempre entre as centenas com que nos cruzamos diariamente. 
As duas mulheres eram irmãs - concluí. Percebi-o só quando se levantaram e saíram, quando se estreitaram num abraço sentido antes de tomarem rumos diferentes. E eu, que não tenho irmãs, percebi a força de um elo assim: indiferente ao tipo de sangue, à herança genética, aos laços familiares, a amizade límpida é um antídoto contra o medo, contra a asfixia, contra o silêncio e a solidão. E talvez não houvesse compatibilidade sanguínea entre as duas mulheres, mas ambas eram dadoras e recetoras universais na amizade honesta que lhes adivinhei. 
Sim... Agora que penso nisso, definitivamente, elas eram irmãs.    

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Ó Stora...

Viram-me chegar e notaram-me logo diferente. São só catorze alunos e temos uma relação muito especial, uma partilha que ultrapassa a mera transmissão de saberes, o estatuto de professor-aluno imposto pela hierarquia pedagógica. Enquanto abria a porta da sala e eles entravam, as perguntas choviam, como sempre. Queriam saber de mim, o que tinha de estranho... Lá lhes confessei que tinha estado embrenhada nas minhas coisas, que me distraíra, que quando olhara para o relógio era tardíssimo, que tinha voado na estrada e quase perdera a hora da aula... Desabafei com eles que me tinha esquecido de almoçar e bombardearam-me com protestos, com conselhos, com pedidos (Ó Stora, nós esperamos aqui caladinhos, vá lá comer qualquer coisa...!). Tranquilizei-os, eu estava bem, aguentava até ao intervalo, e depois, eles sabiam que o professor não pode abandonar a sala... Calaram-se. Comecei a aula e a dada altura, tive que escrever no quadro. Não sei como o fizeram, como o combinaram, mas quando voltei a encarar a turma, sobre a minha secretária estava uma barrinha de cereais e um iogurte líquido juntamente com o bilhetinho amoroso. Primeiro fiquei sem palavras, depois quis saber quem ficara sem lanche. Unidos na coesão que os caracteriza, não se descoseram. Tinham sido todos e exigiam que eu almoçasse!
Não foi com certeza ético comer dentro da sala mas estes miúdos mereceram que eu tivesse feito a transgressão. São bons meninos, jovens solidários e atentos aos outros, estudantes com sonhos e ambições que, no entanto, não se deixam cegar pela competitividade. Gostam de aprender. Gostam de Literatura. Gostam uns dos outros. E eu adoro trabalhar com eles. 
Obrigada, Turma de Literatura!

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Sete anos...



Foi há sete anos. Não sei bem porquê, dei comigo a escolher o rosto deste blog, o título, o tipo e o tamanho da letra, a cor do fundo... Nada foi precipitado e pouca coisa mudou neste meu cantinho... Pelo contrário, eu mudei muito... Percebi o poder da palavra escrita, percebi que as palavras são flores e facas, que sangram e perfumam, que nos rasgam e nos remendam... Percebi que as palavras magoam e beijam. Tenho cada vez mais medo das palavras, calo-me muitas vezes porque me vejo desfocada nos textos que escrevo, como nas fotografias que hoje propositadamente escolhi. Às vezes não sei onde termino e onde começo, duvido da limpidez da minha escrita, percebo como é difícil ver-me claro... 
E no entanto, há sete anos que o De Profundis é a minha casa, a rua onde moro, o lugar aonde sempre gosto de regressar quando a vida me dói ou quando me magoam muito. Onde fico quando estou feliz. Uma rua cheia de portas e janelas, de degraus e vãos escusos onde me pacifico, onde eternizo os meus poetas, os escritores esquecidos, as palavras maravilhosas que gostaria de ter escrito... O De Profundis é o meu rosto, sem maquilhagem ou saltos altos, despojada de jóias, despida de vaidade. De vez em quando calço os sapatos vermelhos e danço na estrada de tijolos amarelos que termina no castelo dos sonhos, no fim do arco-íris... Outras vezes visto-me de preto  e envolvo-me em sombras... Mas sou sempre eu, a preto e branco ou a cores, com lágrimas ou sorrindo à vida um sorriso feliz.



Esta sou eu. Este é o meu rosto, aqui é o meu lugar. E você, que me visita, hoje fique mais um pouco e brinde comigo: o De Profundis está em festa e há música e flores na minha rua... 
Seja muito bem-vindo a este espaço.

Ana Paula Mateus

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Só por amor


Só ficará de ti o que fizeste
por amor.
O resto não valeu:
foi apenas poeira que se ergueu
em teu redor
e o vento varreu.

Só ficará de ti o que escreveste
com paixão.
O resto não contou:
foi tão-só uma sombra que passou,
pura ilusão,
e nem rasto deixou.

Torquato da Luz, in Por Amor e outros poemas

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Outono... Outra vez


E depois, o tempo. O secular ritmo das estações, umas atrás das outras. As hortênsias apodrecendo caladas, o rosto azul tombado tristemente nos canteiros onde a terra arrefece... Os pirilampos apagados nas noites ventosas, as tardes que se inclinam lentamente na luz cada vez mais breve destes dias já frios e as janelas que se cerram mais cedo ao arrepio do vento norte... A natureza renuncia à superfície, enrola-se para dentro, esconde-se da chuva oblíqua que lhe fere a seiva e as noites chuvosas emudeceram as criaturas da noite. É outono. Ignora-o o meu corpo que recusa o calor de roupas mais pesadas, ignoram-no as minhas mãos, quentes de poesia, não o sabem os meus pés, descalços na madeira arrefecida, esquecidos do gotejar pungente dos cristais de chuva... Esqueci o caminho de regresso aos dias tristes, às manhãs escuras, ao acender das luzes a meio das tardes intranquilas, aos anoiteceres plúmbeos e melancólicos... 
Que merda este desejo de empurrar a porta ao outono,  este eterno andar desajustada com os equinócios... 

domingo, 12 de outubro de 2014

Da dor


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto.

Mário de Sá-Carneiro, in Antologia Poética

sábado, 11 de outubro de 2014

Palavras de um deus maior


Observo-te. Como um deus antigo que não sabe
escrever.

Os deuses, meu amor, não sabem escrever

porque não precisam. Para isso criaram os poetas,
os inquietos escribas do amor. 

Os que há milhares de anos

continuam a beber e a fazer canções para acompanhar
a bebida. 


E tratam das palavras como das rosas, e os poemas
como terra perfumada para dar mais vida à vida. E acordam
a água, sussurrando um nome de mulher. Porque o poeta
não é só um poeta, é também um homem, um amante comum,
com um amor comum e uma dor comum.


O poeta acredita, meu amor, que só um deus não é analfabeto:

aquele que sabe escrever até por linhas tortas.

Joaquim Pessoa, "Poema nonagésimo quarto"
 in Guardar o Fogo (Texto com supressões)


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Em murmúrio


entre a saliva e os sonhos há sempre
uma ferida de que não conseguimos
regressar

e uma noite a vida
começa a doer muito
e os espelhos donde as almas partiram
agarram-nos pelos ombros e murmuram
como são terríveis os olhos do amor
quando acordam vazios



Alice Vieira, in Amor e outros crimes em vias de perdão

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Nas tuas mãos


Tento explicar: o desalinho da ternura nas tuas mãos bordando mistérios nas linhas do meu rosto. Nos fios do meu cabelo. O silêncio dos teus dedos infinitamente enrolando e desenrolando os caracóis que me tombam sobre os olhos para esconder o subtil esvoaçar do medo... Tento explicar: as tuas mãos redondas, como ninhos. O colo das tuas mãos, antiquíssimo resgate da minha solidão. Para sempre. 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Crónicas do Vento Salgado


A funcionária 528 olhou em volta, confirmou mais uma vez que tudo estava perfeitamente arrumado e, antes de sair, baixou o estore para que o sol não queimasse os livros antigos, alinhados por ordem alfabética na estante da Poesia. Depois desceu a escadaria arrastando os passos devagar, com pés de pedra que a puxavam toda para baixo, lhe encurvavam os ombros, desenhando-lhe uma silhueta estranha, enrolada para dentro como a dos búzios... No corredor cheio de luz, devolveu o sorriso a um aluno, acenou a outros, cumprimentou os colegas que se cruzavam com ela. Foi pacientemente que tomou o seu lugar na fila do bar, apetecia-lhe um café, o café que daria sentido à espiral de vertigens no seu peito vazio. Através dos imensos janelões, atirou o olhar para o lago do pátio interior, demorou-o no corpo negro de uma gaivota em contraluz, vigilante, preparando o salto que traria a morte a um peixe atrevido, à tona da água esverdeada. A morte de um peixe podia ser motivo para um poema... ou a cadeira derrubada na pressa das horas... ou a espuma das nuvens a galope, como cavalos selvagens tingindo pinturas... Coisas que ninguém via, coisas em que ninguém reparava. A funcionária 528 gostava de poesia. Tinha-se perdido dela há algum tempo, ou talvez lhe tivesse sido arrancada pelas lâminas do relógio, pela lista interminável das tarefas inadiáveis que guardava na pasta... Sentia falta da poesia, da sua pele rasgada, aberta em rabiscos de sangue nas palavras de um verso. Enquanto bebia o café, a funcionária 528 percebeu que há coisas que, não importa os hemisférios, não podem roubar-nos nem nos morrem nunca... E quem a observasse, perceberia o sorriso quase, quase feliz e leria nos seus olhos o poema secreto que como uma flor, nascia do caos quotidiano: um poema há muito esperado onde num céu cheio de nuvens a galope voava uma gaivota... Um poema que chorava a morte de um peixe... Um poema que desenhava uma cadeira tristemente tombada no chão dos dias. A funcionária 528 engoliu o cansaço com o café e respirou fundo. Sentia-se livre: tinha sucumbido à urgência da poesia, a invisível ponte entre o seu coração e a terra. 

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Da semântica


HELIOFILIA - substantivo feminino: amor ao sol; desejo de estar ao sol; necessidade da luz solar.

sábado, 2 de agosto de 2014

Crónicas do Vento Salgado


Ouvi a voz dele ao longe, o pregão errante que ecoava debaixo do sol, que se fazia mais forte, porque arrastado no sal do vento. Ouvi-o de olhos fechados, num misto de sono-sonho que deixava o meu corpo preso sobre a areia mas o pensamento livre, voando por cima do mar. Era já a segunda vez que passava e como da primeira, eu lutava entre chamá-lo (e cometer um crime perfeito) e ignorar o pregão (como uma menina razoável que deveria ser)... Sentei-me já desperta, sabendo de antemão que o pecado da gula venceria, fiz-lhe sinal e vi-o aproximar-se sorridente, ajoelhar-se a meu lado, abrir a arca e expor as bolas de berlim polvilhadas de cristais de açucar que refulgiam, prometendo mil doçuras... Uns incríveis e inesperados olhos verdes; um sorriso a transbordar simpatia; uma juventude roubada cedo de mais. Era o fim da tarde e ele ainda não tinha a arca vazia. Chama-se Telmo, um nome parolo que a mãe escolheu por causa da novela brasileira que passava na TV quando ela estava grávida - explicou-me, enquanto colocava a bola de berlim com o creme para cima, dentro de uma saquinha de papel pardo. Tem dezassete anos - quase dezoito - e vai para o 11º ano, contou-me orgulhosamente... O Telmo vive sozinho há quase dois anos, desde que à mãe foi diagnosticado um cancro que a obrigou a viver entre hospitais e a atirou agora definitivamente para os cuidados paleativos no IPO; vende bolas de berlim na praia durante sete dias por semana; poupa dinheiro para poder ir visitar a mãe de metro e almoçar no Porto; limpa e arruma a casa com dois quartos alugados a banhistas e trata das plantas da mãe e da criação de periquitos do pai, que morreu na Suiça no dia em que ele fez quinze anos... Gosto muito de ler - contou-me a sorrir, pegando no meu livro pousado sobre a toalha. - Os livros fazem-nos esquecer as tristezas da vida... Sabe que eu conheço o valter hugo mãe? Mas nunca li nada dele, que o dinheiro não dá cá para livros... E eu ia pensando nos abismos da vida, nos desníveis, na dureza deste mundo que obrigava o Telmo a perder dois anos escolares, a ser fortaleza quando ainda nem crescera até à idade adulta... Falou-me do seu sonho: estudar Hotelaria e Turismo e ter um bar na praia, uma coisa gira, alegre, com música, e um serviço de venda ambulante de sumos de frutas naturais, como no Brasil...
O Telmo vive entregue a si mesmo mas no olhar maravilhoso vi o que vejo raramente no rosto dos meus alunos, aquilo que um professor procura nos olhos dos que o escutam, aquilo que os torna diferentes numa geração desencorajada que vive tempos de desesperança... Estendi a mão para receber o troco e confessei-lhe que o nome dele não é parolo nem brasileiro, que aparece numa das obras literárias que ele estudará este ano - O Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. Resumi-lhe rapidamente o assunto e falei-lhe de Telmo Pais, o fiel escudeiro de D. João de Portugal... Perguntei-lhe se já tinha lido Os Maias - uma sombra atravessou-lhe o olhar - Tenho que ver se arranjo... 
Alguém o chamou e despedimo-nos. Vi-o afastar-se cantando o seu pregão, o corpo inclinado sob o peso da arca e desejei reencontrá-lo amanhã... Vou cometer outro crime... Vou esperar o Telmo, comprar-lhe uma bola de berlim e oferecer-lhe a edição de Os Maias que pertenceu aos meus filhos... E vou procurar o valter para que ele assine o livro que arranjarei... Tenho a certeza que o valter nem sonha que o rapaz que lhe servia o café da manhã no sítio do costume, o admirava e só por timidez e vergonha nunca lhe contou que ambicionava ter um livro seu autografado...
Há crimes assim: perfeitos. Aquela bola de berlim podia ter as calorias de que eu necessito para uma semana inteira... Mas na realidade, é no meu coração que se aninhará toda a sua doçura.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Palavras roubadas


E aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam ouvir a música.

Friedrich Nietzsche

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Noite. Navio.

  
Na noite, a neblina é um muro pesado tombando sobre os meus olhos... Encosto-me à linha do horizonte à espera de estradas iluminadas de luar, de desassossegos e de assombros, de janelas e de respostas para memórias antigas. Tudo está parado e silencioso.
Rente ao sonho, adivinho os contornos imensos de um navio e deixo que o meu coração em fuga viaje escondido no porão infinito...
Fico com o peito vazio. Fico só com o meu corpo. Com esta pele que cheira a mar. 

domingo, 27 de julho de 2014

Metamorfose


Quem tenta ajudar uma borboleta
a sair do casulo mata-a.
Quem tenta ajudar um broto
a sair da semente destrói-o.
Há certas coisas que não podem ser ajudadas.
Têm que acontecer de dentro para fora.

Rubem Alves

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Quero solidão

 
Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.
 
 
Cecília Meireles, in Obra Poética

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Palavras roubadas


Estás linda hoje.
Se falar do céu solto e do mar calmo... não ligues.
Quero dizer-te apenas que és maravilhosa.

Não preciso falar do céu, nem do mar,
nem daquela brisa suave que te desponta sempre um sorriso.
Não preciso falar de nada disso.
Estás linda hoje, e basta-me.

Entre os campos sulcados dos meus dedos está o teu retrato.
A imagem de ti quando te vi hoje. Linda!

E depois,
claro que sinto a relva fresca a brincar com os meus pés.
E também o Sol, o Sol aquece-me quase tanto como o teu olhar.
Sei tudo sobre os salpicos salgados,
e sobre os trilhos direitos da areia.
Sobre os pássaros alvoroçados, que persigo porque me apetece,
e sobre o riso das crianças.
E conheço ventos fortes e outros mais quietos
e os tímidos bichinhos escapulindo-se pelas rochas batidas.

Estás linda hoje.

Caída ao acaso no lençol húmido da areia,
os teus cabelos irrequietos, o teu rosto a escurecer aos poucos,
as tuas mãos e os teus pés, e aquela curva escondida por trás do teu pescoço.
Podia dizer-te mais, mas, que mais há para dizer...
Estás linda hoje,
e isso basta-me.

Casimiro Teixeira, "A tua beleza de sempre" in Que Alguém Saiba que és um Homem

quarta-feira, 16 de julho de 2014

De Profundis


Saborear a paz com o mundo. A paz com os homens.
E no entanto, travar guerras comigo na espuma dos dias, tantas vezes, na ronda das noites... Armadilhar os instantes, mesmo os mais improváveis, no desejo impossível de roubar as asas às aves, de mergulhar fundo nos abismos, de ver de olhos fechados aquilo que não pode perder o brilho... Lançar mísseis terra-ar, rebentar bombas e espoletar granadas, cavar trincheiras para encurralar as emoções. Sabotar a desesperança. Armadilhar a memória - sou guerrilheira de mim, sniper de elite na precisão dos tiros, nos disparos que implodem as sombras, que despedaçam os fantasmas... Queimar-me. Ferir-me. Sangrar. Convocar todas as forças em ataques aéreos às janelas do olhar; atear fogo de chão no rasto dos meus passos. Incendiar cheiros e cores e músicas e palavras... Fazer puro terrorismo à infinita saudade... É uma guerra sem aliados nem alianças, sem tratados de paz nem acordos de cessar-fogo.
E depois, afinal, refugiar-me no bunker do coração, lamber feridas, curar as chagas no sal das marés. Trair o tempo. Iludir as sentinelas da razão. Depor todas as armas, rir das ironias do destino, continuar a querer os impossíveis, abrir as asas para voar mais longe... Tropeçar de ternura... Quem sabe, ir morrendo aos poucos, de excesso de paixão...
Render-me sem mágoa aos efeitos colaterais: a lágrima traidora, vigia teimosa e transparente aos outros, a encher de brilho a lonjura do olhar; talvez um bater mais forte do coração.
Em paz com o mundo. Em paz com os homens.
Debaixo da pele, todas as guerras são só minhas.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Palavras roubadas

(...)
Eu estou sempre a querer que deus exista. Devia existir nem que apenas para isto. Um deus com uma missão precisa. Uma só missão, já seria grandioso. A de nos permitir levar um carinho a quem amamos. Porque o amor sem anúncio de retorno torna-se o mais difícil dos amores. Mas é amor. Vale sempre a pena e é, em último caso, o que justifica tudo. Mesmo que o outro não nos possa responder, sabendo bem que nos ama também, enquanto o lembrarmos valeu a pena.
 
valter hugo mãe, "Judite" in Jornal "Público" (13 de julho 2014)

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sem que seja assim


vou buscar-te ao fim da tarde,
porque a noite só escurece contigo ao
meu lado, porque a noite aprende por ti
o caminho aberto das estrelas
 
vou buscar-te ao fim da tarde,
e verás como preparei a casa, como
escolhi a música, como, enfim, espalhei
os objectos mais impressionados contigo,
os que ganharam vida por se interporem
na espessura estreita que vai do meu
ao teu coração

e não mais devolvo, correndo todos os
riscos de não amanhecer nunca
numa loucura propositada por ti

não mais te devolvo,
ocuparás o mundo debaixo e sobre mim,
e não haverá mais mundo sem que seja assim


valter hugo mãe, in pornografia erudita

Dúplice


E eu não sei
Se é tempo de pousar os pés no chão
Ou enterrar a cabeça nas nuvens

terça-feira, 1 de julho de 2014

Julho

 
Nasci em julho, o meu mês preferido até à data em que fiz trinta anos. Nessa altura, a minha avó estava gravemente doente e sabendo que nada podia ser feito a não ser esperar, eu rezava para que ela ficasse durante todo o mês, para que não partisse durante o mês de julho... No dia mais triste de todos os meus aniversários, mais pálida do que nunca, ela abraçou-me e despediu-se de mim. Chorámos muito, sabíamos ambas que era a última festa onde ela estaria...
Julho era o mês dos meus anos, o mês da praia e das férias grandes, das noites quentes e dos jantares tardios, dos gelados, dos pés descalços e do corpo solto debaixo de vestidos leves... Era o mês da alegria e da serenidade, do respirar tranquilo, dos passos lentos pelas manhãs preguiçosas e do pulso liberto da tirania do relógio. Julho era o mês mais bonito do ano...
Agora, o mês de julho é apenas o mês em que a avó perdeu as forças e não conseguiu lutar mais. O mês em que a avó Ana me deixou e levou com ela um pedaço de mim. Um pedaço do meu coração, que anda por aí perdido numa mágoa infinita, embrulhado num luto eterno...

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Palavras por dizer

 
Se não há nada para dizer
Onde se acumulam as palavras
Que não foram ditas?

Casimiro de Brito, in Labyrinthus

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Porque partem as aves?

 
Foi numa aula de Ciências da Natureza de um ano qualquer, talvez o 9º ano, mas já não estou certa... O professor era muito jovem, estudante ainda, e nós éramos a sua primeira turma. Lindíssimo e naturalmente inseguro, deixara crescer um bigodinho na tentativa de conseguir um ar mais velho e experiente, como nos confessou na última aula... Nós achávamo-lo ridículo mas a rigidez do sistema não admitia sequer que possibilitássemos que ele o suspeitasse. Entre nós, ficou "O Bigodinho".
A aula era sobre a migração das aves e nesse dia nasceu o meu fascínio por estes seres misteriosos. Durante algum tempo, "O Bigodinho" expôs a matéria, tentou fazer-nos entender o mais fascinante e incompreendido de todos os fenómenos da natureza... Eu ouvia-o encantada, sem pestanejar. No entanto, o professor não soube prender-me porque não tinha respostas para me dar (Ó Stor, porque partem as aves...?) e percebi que tinha que estudar sozinha. Num mundo sem internet, consultei enciclopédias e dicionários temáticos na biblioteca da cidade, vasculhei os livros do avô e passei a pente fino a estante do meu pai à procura de respostas para as minhas perguntas (Como é que as aves sabem para onde têm de ir? Como sabem que é hora de partir?)
No final do ano entreguei, com a sensação de dever cumprido, o trabalho de pesquisa obrigatório e de tema livre, a que tinha dedicado tantas horas de investigação: o meu estudo sobre a migração das aves. Uma semana depois, na aula de avaliação, "O Bigodinho" entregou e comentou o desempenho de todos os alunos, saltando o meu número. Fiquei aterrada. Gelada. Será que o tinha perdido? Será que estava assim tão mau? O professor fez uma pausa e tirou finalmente as minhas páginas (muitas!) de dentro da pasta. Chamou-me e eu levantei-me a tremer, caminhando até à secretária como se para o calvário, os olhos de todos os colegas cravados em mim como punhais... O Stor sorriu, hesitou, depois deu-me os parabéns e disse-me, humildemente, que tinha aprendido muito comigo... Que não sabia, nunca tinha visto as pinturais murais onde há mais de 4.000 anos os egípcios tinham registado o fenómeno; que desconhecia que Aristóteles defendia que as andorinhas hibernavam na lama e que no outono os Rabirruivos se transformavam em Piscos; que nunca tinha estudado as aves noturnas, viajantes solitários que utilizam a noite para viajar... Tinha aprendido comigo, repetiu-o várias vezes perante uma turma assombrada, que me conhecia apenas a predileção e as excelentes notas à disciplina de Português.
Nesse dia, também eu aprendi muito com o Stor de Ciências. Percebi que seja qual for o lado em que estivermos, só faremos as coisas bem se entregarmos o coração; se amarmos o que fazemos; se formos humildes para reconhecer a nossa ignorância e assumirmos as nossas falhas... Como "O Bigodinho" fez.
Nunca mais o vi, nunca mais ouvi falar dele, nunca me cruzei com ele em lugar ou escola alguma. Talvez hoje ele nem seja professor... De mim não terá, de certeza absoluta, qualquer memória. Mas esteja ele onde estiver, nunca o esquecerei. E é sempre ele quem evoco quando olho o céu e me pergunto (ainda): Porque partem as aves?

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Palavras roubadas



Entre nós e o mundo há
quinhentos metros
de grito.

Vasco Gato, in Cerco voluntário

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Tríplice

 
Aninham-se no teu rosto mutilado
sombras incomuns que Cronos talhou
com a negra faca da dor

sábado, 21 de junho de 2014

Verão


Lembro-me das gargalhadas e das cócegas na planta dos pés quando chegávamos à praia, tirávamos as sandálias e caminhávamos pela primeira vez sobre a areia. Eu levava um saco grande cheio de baldes, pás, forminhas, a toalha e o fato de banho para mudar depois do banho... Tu levavas as sandes de tulicreme e a fruta descascada e cortada aos pedacinhos, no tupperware verde que ainda hoje guardo, apesar de partido... Entrançavas-me o cabelo e fazias-me as recomendações do costume, antes de me deixares partir em loucas correrias que sabiam a pura felicidade (Não tires o chapéu e não vás para o mar, olha as horas da digestão... E não saias da minha vista!). Era um dia diferente de todos os outros, a praia com poucas barracas oferecia ainda silêncios que permitiam, quando fechávamos os olhos, ouvir o marulhar das ondas... Eu procurava beijinhos, construía castelos e cobria as pernas com algas, num desejo secreto e inconfessável de me transmutar em sereia...
Na hora de partir, quando o vento norte se fazia mais frio, embrulhavas-me numa toalha e aquecias-me o corpo que tremia enquanto tentavas domar as tranças desfeitas, enodoadas de sal. Sentávamo-nos abraçadas a comer um gelado e eu perguntava-te se podíamos ficar um pouco mais... Tu sorrias e adiávamos até ao último momento a hora de regressar.
Era o primeiro dia de verão.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Horas de água

 
Gosto de Lisboa. Da luz de Lisboa. Do casario derramado pelas colinas e do corpo majestoso do rio... Gosto da Lisboa antiga, das minúsculas ruas empedradas, inclinadas, com uma nesga de céu azul, esborratado pela roupa desfraldada, como bandeiras, a secar nas sacadas que quase se tocam... Gosto da Lisboa moderna, do seu cosmopolitismo, cidade cais de partida para todas as partes do mundo. Gosto do cheiro. Da cor de Lisboa.
Gosto de voltar a Lisboa, cidade onde fui sempre tão feliz. Domingo é o dia e a Maria João não podia ter escolhido melhor ocasião para apresentar o seu livro. Não podia ter escolhido uma cidade mais bonita. Horas de Água é a sua segunda publicação e eu, que gosto muito dela e gosto muito dos versos que faz, quero abraçá-la no domingo, quero desejar-lhe muita sorte e sorrir-lhe entre os que lá estarão.
Regressar a Lisboa para abraçar uma amiga que apresenta um livro de poemas, é o melhor dos motivos...  
Se estiver por perto, venha ter connosco. A autora merece.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Saramago - Quatro anos de silêncio


Ainda agora é manhã, e já os ventos
Adormecem no céu. Pouco a pouco,
A névoa antiga e baça se levanta.
Ruivamente, o sol abre uma estrada
Na prata nublada destas águas.
É manhã, meu amor, a noite foge,
E no mel dos teus olhos escurece
O amargo das sombras e das mágoas.



José Saramago, in Provavelmente Alegria

 

terça-feira, 17 de junho de 2014

A suave mão da tua ausência


A casa está cheia de ti
Não apenas os retratos os recantos
Os quadros
Não apenas os objectos onde
Roça ao de leve
A suave mão da tua ausência.
Mas aquela luz que trazias dentro
E deixavas de passagem
Nos seres e nas coisas.
Talvez agora mores entre as estrelas
Mas brilhas
Intensamente brilhas dentro de casa.


 
Manuel Alegre, in Dispersos e Inéditos

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Querido Facebook


Olha, não estou a pensar em nada... Ou se calhar as coisas em que penso de nada interessarão aos meus amigos... Não, não quero atualizar o meu estado, nem pesquisar pessoas, coisas, tão pouco lugar algum... Quero só o silêncio de domingo à noite, a agenda aberta, os dias passados a pente fino. Quero acreditar que os meus alunos se vão sair bem na terça-feira, que não esquecerão as coisas que lhes ensinei o ano todo, o Pessoa e os heterónimos, a Mensagem e Os Lusíadas, o Sttau Monteiro e o Saramago... Por isso, não quero gostar de páginas nem ser amiga do Sabão Clarim ou da Bolacha Maria... Quero estar por aqui a ler poemas e a responder às mensagens privadas dos estudiosos de última hora (Ó Stora, a deixis, as orações subordinadas adjetivas relativas restritivas, o modificador apositivo, as funções sintáticas...) Tantas dúvidas a queimar a madrugada desta semana que agora começa...
Um aluno faz uma pausa no estudo, desafia a turma para irem ver jogar Portugal amanhã, no ecrã gigante junto ao mar. Cliquei no "Like", talvez vá ter com eles e aproveite para tomar um café em frente ao porto de pesca, os olhos derramados nos barcos e no farol, nas gaivotas e no corpo dos rochedos... (Ó Stora, o que é a Aurea Mediania...??).
Estou cansada, Facebook. Não posso assistir ao evento que me sugeres na quarta-feira, tenho que ir ao Agrupamento de Exames levantar as sessenta provas para correção... E não, também não vou a nenhum dos outros, há os Conselhos de Turma, os relatórios de autoavaliação, de diretora de turma, dos apoios educativos, a escolha dos Manuais para o próximo ano letivo, a reunião com os Encarregados de Educação e as matrículas...
Desculpa, Facebook. Sinto um peso no peito, é sempre assim antes dos exames nacionais (lembrar-se-ão do Tempo, Aspeto, Modalidade do verbo? Dos atos ilocutórios? Das três fases do Campos...? Terão feito os exercícios de revisão...? Será que os preparei bem...?) Deixa-me tranquila, Facebook. Não me perguntes nada. Diz-me que me entendes, que amigos como dantes, e se quiseres, podes só fazer-me um "Like"... Talvez amacie a minha angústia...  

sábado, 14 de junho de 2014

Cabelos de Chuva

 
Antes de sair de casa, ela guardava as lágrimas no bolso mais fundo. Depois andava o dia todo a desembrulhar sorrisos abertos e quando lhe fugiam as forças, metia discretamente a mão no bolso e empurrava as lágrimas mais para dentro, sentia-as atravessarem-lhe o tecido da roupa, humedecerem-lhe a pele morna do peito. Com os dedos molhados, ajeitava então os cabelos em desalinho, naquele gesto tão dela que todos lhe conhecíamos, e sorria de novo. Chamavamos-lhe cabelos de chuva.
Nunca a vimos chorar. Nunca a veremos chorar porque ela partiu hoje, a mulher que guardava as lágrimas no bolso mais fundo.
Quando me fui despedir dela, fiquei muito tempo a olhar-lhe os dedos entrelaçados, cruzados sobre o peito finalmente seco de lágrimas. No rosto cadáver, um teimoso ponto de luz iluminava-a toda: o mais belo sorriso aberto que jamais lhe conheci.

Ser uma casa


Não abras a porta,
se for o sublime diz que não estou,
já temos palavras de mais, sentimentos de mais

A glicínia não floriu este ano,
antes floria à volta de
tudo o que resta de azul à nossa volta,
envelheceu, anima-a só o desejo de voltar a casa, de ser uma casa.



Manuel António Pina, in Como se Desenha uma Casa

 

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Procuro-te


Porém eu procuro-te.

Antes que a morte se aproxime, procuro-te. Nas ruas, nos barcos, na cama, com amor, com ódio, ao sol, à chuva, de noite, de dia, triste, alegre

Procuro-te. 

Eugénio de Andrade, in Obra Poética

segunda-feira, 9 de junho de 2014

O peito às balas

 
O peito às balas... E é assim que quero, hoje. Cai o sol em estilhaços, desfaz-se em cacos de luz à altura dos meus ombros, tens-me na mira certa, um grande plano, para não falhares. Matar ou morrer, tantas vezes na vida. Eu não sei matar, não farei essa jogada, nunca tive essa carta na penumbra dos meus olhos.
Dispara. Atira-me a palavra que guardas escondida nos gestos, que disfarças, para que eu não a veja na dobra da luz caída. Não temas - não falharás o meu peito iluminado por um sol de vidro.
Dispara. É assim que quero morrer: na ponta da palavra que me lanças neste entardecer áspero.
Só depois poderei sair voando, de asas abertas, pela janela dos teus olhos.