domingo, 30 de março de 2014

Partir...

 
Parto daqui a umas horas para Barcelona. Tento ignorar o esvoaçar das borboletas dentro do peito e verifico, mais uma vez, se levo tudo o que me fará falta antes de fechar definitivamente a mala. Queria saltar a parte do aeroporto, do check-in, da espera infinita antes do voo, a viagem em si (a que nunca me habituarei), o transbordo... Queria fechar os olhos e acordar em Barcelona. Nunca lá estive e as expectativas são imensas e têm muitos anos... Comecei a sonhar com Barcelona quando li um romance fantástico cuja ação se desenrolava nesta cidade com dois mil anos de história, velha e moderna ao mesmo tempo, como uma música a dois andamentos. A protagonista era uma mulher  solitária que depois de ter viajado por todo o mundo encontra o amor no bairro gótico. Não me recordo do nome do autor e já não tenho a certeza quanto ao título do romance... E isso importará...? Tenho a cor do bairro gótico nos olhos, o cheiro, o som característico das ruelas escusas... Tem que ser como eu o imagino... E se acho que serei capaz de gostar de tudo - a Sagrada Família, o Museu Picasso, o Parque Guëll, as Ramblas, La Pedrera, a Catedral de Santa Eulália e todas as rotas, a verde, a violeta, a turquesa, a laranja e a azul... - é o mar de Barcelona que me interessa desvendar... Tão diferente, eu sei, do meu atlântico frio, irado e de um azul profundo, mas um mar que eu quero ver, talvez sentir...
Depois da Turquia, espero amar Barcelona e aproveitar os alunos, os professores, as escolas que me receberão... Quero ver, experimentar, sentir, provar, fotografar tudo - na máquina e do lado de dentro do olhar, onde as memórias não se desvanecem e ficam connosco para sempre... Espero calcorrear a cidade com um sorriso nos lábios, com o assombro natural de qualquer visitante, e não faz mal que chova como dizem as previsões, não faz mal se estiver frio... Há momentos da nossa vida em que as condições atmosféricas não conseguem roubar-nos o brilho ao olhar.  
Será, sem dúvida, muito bom voltar... Mas por agora, apetece-me mesmo é partir.
Eu volto já. Volte você também...  

sábado, 22 de março de 2014

A escuridão dos dias


Dia 170.
Por mais que os meus sentidos procurem um sentido, o dia de hoje é um grande etcetera. Não quero saber do que o médico diz. Respiro, respiro, respiro, e não me sinto confortável....
Poderia ser complicado, mas não é. Poderia ser divertido, mas não é. Gostaria de entender o que não está bem, mas não sei o quê. Sinto apenas que alguma coisa não está bem. Talvez seja do cansaço, desta mania de fazer, pelo menos, duas coisas ao mesmo tempo.
Não me apeteceu continuar a ler as Odes de Horácio, e recusei o convite para beber com Jean-Arthur Rimbaud uma cerveja no inferno. Sinto até a minha sombra fatigada e, ao contrário do que é costume, não é com olhos ardentes nem com um novo fogo que dispo a manhã ou pronuncio o meu nome.Veio à lembrança uma fotografia que me tiraram em miúdo com várias pombas poisadas sobre os meus braços. Eu adorava essa fotografia, que se perdeu, que voou no tempo como as pombas. E a verdade é que me sinto apenas um menino de dez anos com os braços vazios, a quem ninguém quer tirar uma fotografia.
Hoje preciso mesmo de ti.

Joaquim Pessoa, in ANO COMUM

Agora é tarde


Não é difícil um homem apaixonar-se.
Ferir a sua paisagem,
cinzas de um passado caído, fluente.
Ao fim de vidas partilhadas pode ser que
diga “estremeci durante anos sem te abraçar.” 
Agora é tarde.
Agora é tarde sobre a terra cercada.
Por planícies ficou o desespero,
a dor lilás dos homens soçobrados
na paciência nocturna.
Só depois do terror os cães ladram fielmente
aos portais da manhã, só
após o gume das vidas partilhadas.
“Passei a vida a fugir para a tua boca,” e
confundo já o teu rosto
com um qualquer.

Rui Cóias

sexta-feira, 21 de março de 2014

Dia Mundial da Poesia


Hoje, no barco da Poesia, sair das salas de aula e andar por aí, na minha cidade...
Hoje, mostrar-lhes que a chuva que cai, pode afinal, ter o brilho dos poemas. Pode ter o sal dos versos.
Hoje vamos ser poetas à chuva, sob um céu de primavera.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Primavera


Quem me compra um jardim com flores?
Borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?

Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera,
uma estátua da Primavera?

Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?

(Este é o meu leilão.)

Cecília Meireles

quarta-feira, 19 de março de 2014

Um Segredo


Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.

Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul (...)

Meu pai era um homem com as nostalgias
do que nunca acontecera e isso minava-o (...)

E então sei-o agora calçava as ágeis sandálias
indo de acaso em acaso de astro em astro
eram de vento as suas sandálias fabulosas
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.

Os outros não o sabiam nem eu o sabia.

Um segredo simples:
o que sentiste pai
sinto-o eu agora por ambos
sinto-o por ti
sinto-o por mim.

Fernando Namora, in Nome Para Uma Casa (Texto com supressões)

terça-feira, 18 de março de 2014

Ó Stora...


A aula era no piso de cima e como já tinha tocado, apressei o passo, subi quase a correr a velha escadaria de mármore branco, polida pelos passos de tantas gerações, e desemboquei cansada no corredor onde fica a sala daquela turma. O largo corredor estava vazio. Inexplicavelmente vazio. Imediatamente percebi que me tinha enganado - mais uma vez - na sala e maldisse a minha memória de pintainho, rais' parta esta deambulação de um lado para o outro, nunca mais aprendo, uma pessoa nunca sabe onde vai trabalhar, porcaria de memória a minha, e agora onde é que eu os encontro...? E enquanto resmungava sozinha, ia abrindo a pasta, tirando os cadernos, os livros, - onde se meteu a droga do horário? - os óculos, - malditos números tão pequenininhos -, e finalmente abrandei a correria, o espanto crescendo perante a confirmação... - Era ali, estava certo na minha memória. A sala era aquela. Talvez estivessem atrasados, pensei. Meti a chave na porta e entrei, o segundo toque a soar estridente na sala deserta, a fazer vibrar as vidraças das janelas escancaradas. Esperei mais um pouco. E mais ainda. Estranhando, saí para o corredor e procurei o funcionário do piso que me disse que sim, que tinha visto a turma no intervalo anterior. - Mas então onde estão? - perguntei, já verdadeiramente enervada. - Saíram, sôtora. Saíram todos. Se calhar, como o dia está tão lindo, foram para a praia... - e o funcionário encolhia os ombros resignado - Sabe como é a juventude, a primavera deixa-os loucos... - Sim, eu sabia. Agradeci a informação e regressei à sala, a ira a crescer assustadoramente - Como é que eles se atreviam??? E ia pensando nas consequências daquela falta intercalada, daquela falta coletiva que daria direito a um procedimento disciplinar, e continuava sem acreditar que tinham tido a coragem de me fazer uma brincadeira tão grave... Liguei o computador, comecei a marcar as faltas de presença, escrevi o sumário e preparei-me para ficar ali a corrigir testes, no silêncio daquela sala banhada de sol, tentando ignorar o desdém de trinta mesas vazias que me enfrentavam geladas... Mas de súbito, passos apressados fizeram-se ouvir no corredor, muitas vozes abafadas e uma agitação estranha de risos que parou à porta da minha sala. Levantei os olhos dos trabalhos que corrigia, olhei o relógio e depois vi-os do lado de fora, através do vidro, acenando-me e sorrindo-me. Senti um alívio enorme ao vê-los, afinal tinha sido só um atraso, claro que eles nunca me dariam uma falta coletiva... Abri a porta e regressei à secretária, sentei-me e observei-os a entrarem em silêncio e em fila indiana, com as mãos atrás das costas, mas em vez de se sentarem nos seus lugares, iam-se dispondo em círculo, formaram um anel à minha volta... - Muito bem, quem vai explicar o que aconteceu? - perguntei. Nenhum falou. Às tantas, talvez a um sinal secreto, um por um, começaram a colocar rosas em cima da secretária... Rosas cor de rosa, com um cartão preso ao pé sem espinhos, singelamente forrado a papel de estanho. - Ó Stora, desculpe o atraso, deu-nos uma trabalheira enorme prender o poema à rosa... mas trouxemos-lhe os seus poetas todos, Stora... O Pessoa, o Eugénio, o David Mourão-Fereira, o Nuno Júdice, a Sophia, a Florbela, o Torga... Vieram todos dar-lhe os parabéns! E sorriam, sorriam muito... E eu, emudecida, de coração apertado, não me preocupei que me vissem com lágrimas nos olhos, que soubessem o quanto o seu gesto me tinha tocado... Enquanto os observava a regressarem calmamente aos lugares, ia pensando na maravilha e no privilégio que é ser professora de uns miúdos assim... E tive que ler-lhes o meu texto, eles mereciam-no... Li-o devagar, tão devagar quanto a minha emoção me permitia... No fim bateram muitas palmas, disseram - Tão lindo, Stora! - e nos olhos deles, no sorriso deles, na admiração sincera, a minha Menção Honrosa teve, realmente, o sabor de um 1º Prémio.

sábado, 15 de março de 2014

Parvoíces...

 
Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega. Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo.

António Lobo Antunes, in Livro de Crónicas

sexta-feira, 14 de março de 2014

A música do silêncio


Minha vocação é o silêncio.
Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhando, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.

Mia Couto, in Jesusalém

quinta-feira, 13 de março de 2014

O Sal da Vida

 
Um tema que me apeteceu...
285 participações. 10 trabalhos nomeados para o primeiro prémio.
Mesmo que não ganhe, ando com um sorriso parvo pendurado nos lábios e com o voo de mil borboletas a apertar-me o peito... Destas pequeninas vitórias se faz o sal da vida, a temperar o sangue que pulsa, as emoções que nos arrebatam, e sinto que é verdade que todo o esforço que faço, que todas as horas que roubo ao sono só por amar as palavras, valem muito a pena...
Porque gosto muito do meu conto, e o júri já o distinguiu, estou feliz. Apesar do desconsolo de terem errado o nome da minha cidade, estou feliz.
E no entanto, não quero ficar feliz sozinha. Hoje, fique feliz comigo.


quarta-feira, 12 de março de 2014

Os viajantes da noite


Na quietude escura da noite
um roçagar de asas aflito
rasga o silêncio,
suspende-me a mão tranquila
na rota das palavras...

É talvez um viajante da escuridão
um habitante das trevas
planando no vazio...

Ou uma flor murcha que tomba
nas lages do pátio,
sem um queixume,
para se fazer podridão
ou semente
antes do sol nascer.

segunda-feira, 10 de março de 2014

O brilho da memória

Lembro-me que foi durante um almoço de domingo. Estavam os avós connosco e era verão, quase o dia dos meus anos. Da cabeceira da mesa, o avô sorrindo perguntou-me o que gostaria de receber no meu aniversário... Eu engoli em seco, o coração batendo muito, parecendo querer voar para fora do peito, as mãos tremendo em pouso incerto, e lá sussurrei: - Uns patins. Primeiro fez-se silêncio, depois todos riram muito da ideia disparatada. A mamã dizia que nunca, nunquinha, era o que faltava, partir uma perna, os dentes, quem sabe a cabeça, esmurrar os joelhos, eu sei lá... Absolutamente fora de questão! E a avó acrescentava ainda que era um presente muito impróprio para uma menina... Os vestidos tão lindos, todos rasgados, as tranças desfeitas, a neta descabelada...! Que não, e nem se falava mais nisso! Com uns olhos enormes rasos de lágrimas, espreitei disfarçadamente o avô, o único que tinha ficado em silêncio, e lembro-me daquela tristeza, numa luz fugitiva, que lhe atravessou o rosto, lhe ficou a pairar no sorriso bondoso... Olhamos um para o outro e encontramos a mesma solidão, reconhecemo-nos na deceção... O assunto morreu ali e não se falou mais nisso.
Nos dias que antecederam o meu aniversário eu andava triste. Não percebia por que razão me tinham perguntado que presente queria, se era para depois me deceparem as ilusões de rajada, num golpe só... E continuei a fugir para o jardim em frente da casa da avó, sentava-me num banco e ficava a olhar os miúdos a andar de patins, fascinada, mergulhada num poço de tristeza que, sem saber muito bem porquê, era fundo e escuro...
O dia do meu aniversário chegou. Os presentes chegaram e eu desembrulhei-os sem emoção, sorri muito e agradeci... Cantaram-me os parabéns. Apaguei as velas. Depois ajudei a levantar a mesa, a arrumar a cozinha e a preparar os lanches para levar para a praia. Já tinha vestido o fato de banho e estava pronta para sair quando a voz do avô me chamou, alegre, do fundo da casa. Pediu-me que me sentasse na poltrona dele, ajoelhou-se aos meus pés e ficou com o rosto à altura do meu... Beijou-me como só os avós sabem beijar, tirou de trás das costas uma caixa que colocou nos meus joelhos a sorrir e disse-me: - Para chegares mais depressa à praia... Rasguei o papel de uma vez só, abri a caixa e dei um grito de alegria... Eram os mais lindos patins que jamais vira...! As rodas cromadas brilhavam como se feitas de prata e as correias de pele que prendiam o patim ao pé eram de um vermelho vivo, quase de sangue...! Apertei-os contra o peito a chorar muito, a rir muito, beijei-os e cheirei-os, senti-os meus, inacreditavelmente meus...! Numa excitação enorme, lá ia ouvindo ao fundo, a voz do avô explicar-me que eram um bocadinho grandes "para durar" e que eu tinha de ajustar muito bem as correias ao peito do pé e prometer andar devagarinho e com muito cuidado...
Nesse dia não fui à praia. Passei a tarde no jardim a aprender a andar de patins e era tal e qual como eu tinha imaginado...! Uma sensação de liberdade, o vento no rosto, as tranças a voar atrás de mim, os braços do avô, primeiro segurando-me com firmeza, apenas uma mão, mais tarde, amparando-me as costas...  Sim, muitas vezes esmurrei os joelhos, rasguei vestidos, cheguei a casa descabelada e com as mãos em sangue, suja de terra e de pó... E já então eu era como sou hoje... Não há sangue, dor ou ferida que me assustem, que me derrubem, que me impeçam de lutar ou me afastem daquilo que amo. Como em menina, quando amo perco o instinto de conservação, atiro-me para o voo de asas abertas, rasgo o coração e não sei desistir. 

sábado, 8 de março de 2014

Ela

 
Ela encosta-se à claridade mal o dia nasce
Invisível e silenciosa como um rasto de perfume
E é ninho e colo e beijo
Que se dá sem pressa na seda da pele.
Guarda inquietudes nas mãos
E é alquimista, feiticeira, fada do tempo
Na solidão, ao vento, secando as suas dores
Penduradas no varal do esquecimento.
Ela é âncora, farol, muralha, pilar,
Guardiã intemporal da torre da ternura.
Ela luta, cai derrubada pelo cansaço dos dias
E reergue-se nas noites pintadas de sombras
Para se dar ao amor sublime
Que faz inteira, com o seu corpo de navio.
Ela esconde a fome atrás de um sorriso
E serve o pão que amassa com as mãos feridas
Sobre a toalha alinhada, na mesa sempre posta.
Ela é labirinto, catacumba, cave, gruta,
Ela é terraço aberto, sótão, águas-furtadas.

Dentro do seu peito, aninha-se
Como um indecifrável segredo
A chave da vida, a clave da música.

terça-feira, 4 de março de 2014

Um lugar guardado


Agora que não nos vemos
e as nossas vidas correm pelos dias
cada vez mais longínquas,
sinto, às vezes, uma vontade enorme
de te ver uma tarde, tomar café
contigo, saber como vais…

Agora que não nos vemos
e nos perdemos aos dois,
não penses que esqueci as tuas coisas.
Guardo boas lembranças, e poemas
que te escrevi (lembras-te?); guardo
cartas e fotografias…
E um lugar
na minha alma, onde, se quiseres,
sempre, sempre podes estar.

Abel Feu, in Poesia Espanhola Anos 90