quarta-feira, 31 de julho de 2013

Do cansaço


Ouve, tu que não existes em nenhum céu:

Estou farto de escavar nos olhos
abismos de ternura
onde cabem todos menos eu.

Estou farto de palavras de perdão
que me ferem a boca
dum frio de lágrimas quentes de punhal.

Estou farto desta dor inútil
de chorar por mim nos outros.

- Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever
os versos que me fazem doer.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 30 de julho de 2013

Um corpo a navegar




Nos teus olhos alguém anda no mar
alguém se afoga e grita por socorro
e és tu que vais ao fundo devagar
enquanto sobre ti eu quase morro.

E de repente voltas do abismo
e nos teus olhos há um choro riso
teu corpo agora é lava e fogo e sismo
de certo modo já não sou preciso.

Na tua pele toda a terra treme
alguém fala com Deus alguém flutua
há um corpo a navegar e um anjo ao leme.

Das tuas coxas pode ver-se a Lua
contigo o mar ondula e o vento geme
e há um espírito a nascer de seres tão nua.
 
Manuel Alegre, in Sete Sonetos e Um Quarto
 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Da Solidão



Tornámo-nos impermeáveis na solidão:
dentro da pele não viaja ninguém;
fora da pele ninguém nos vê passar.

Jesús Jiménez Domínguez

domingo, 28 de julho de 2013

Vox populi, vox Dei

 
O bem é como uma procissão: volta sempre ao local de onde partiu.

Provérbio latino

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Bons propósitos


O pessimismo passou, mas o bom propósito não: farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo, por causa das pessoas. Às vezes o amor que se dá pesa, quase como uma responsabilidade na pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar, e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz...
Também é bom porque em geral se pode ajudar muito mais as pessoas quando não se está cega de amor.

Clarice Lispector

Palavras suaves


De modo suave, você pode sacudir o mundo.

Mahatma Gandhi

terça-feira, 23 de julho de 2013

Das histórias de Amor


É sempre
uma história de amor:
a árvore
que se afeiçoa ao pássaro
o sol
que se liga à água
os olhos
que se prendem ao mar.

gil t. sousa

segunda-feira, 22 de julho de 2013

"De nenhum fruto queiras só metade"


O amor, como acontecia naquele momento, e como acontece quando ele surge em todo o seu vigor, não quer saber de migalhas ou de ser ao meio. Ele quer ser todo. E ela estava sendo toda para ele. Por isso era feliz tal como uma cachoeira que desconhece o tamanho da sua queda e tão mais majestosa é quanto mais do alto cai.

Carlos Eduardo Leal, in O Nó Górdio

domingo, 21 de julho de 2013

O que muda quando mudamos

 
O que é que muda em nós quando mudamos? (...) Uma forma diferente de sermos o mesmo. As vagas do mar. Um céu que se descobre. A pele que se enruga. O ângulo do olhar. (...) É diferente a forma de nos comovermos. E de se estar sereno.

Vergílio Ferreira, in Pensar

sexta-feira, 19 de julho de 2013

ORPHEU

 
Sempre fui apaixonada por aves. Admiro-lhes os corpos frágeis e macios, a elegância das asas abertas em voos serenos, o canto admirável que me oferecem mal o primeiro clarão de luz rasga as trevas da madrugada, os acordes inimitáveis dos concertos ao fim do dia... Compro abrigos e casinhas que deixo no jardim, penduradas nas árvores, com as portas abertas num convite para que venham morar comigo e passo a vida a resgatar pardais da boca dos cães, da chaminé da lareira onde caem e ficam prisioneiras sem atinar com a saída... Gasto tempos infinitos com o olhar suspenso na observação dos melros, das pegas, dos pombos e das rolas, dos rouxinóis e tentilhões, até da velha coruja que me responde quando a desafio no silêncio da noite... Admiro-lhes a liberdade e a timidez e sem desistir, tento seduzi-las com grãos de arroz, restos de fruta, alface, migalhas de pão, banheiras de água, tudo em troca da fidelidade ao meu jardim, numa atitude egoísta que me permite ficar a ganhar com a presença destes animais admiráveis.
Cansados desta minha obsessão por aves, o meu marido e os meus filhos renderam-se por fim e ofereceram-me um canário no dia do meu aniversário. Entristece-me que tenha que estar enjaulado e sem companheira e por isso,  para tentar minimizar a injustiça das grades e da solidão, coloquei-o lá fora, bem alto, a salvo da boca dos cães e das garras e do instinto felino do Sebastião, numa parede abrigada, aquecida pelo sol, sempre debaixo dos meus olhos. Chamei-lhe Orpheu, na esperança de que venha a ter um canto mágico. É uma ave jovem ainda, assustadiça, e estamos a conhecer-nos devagarinho... O Orpheu come o dia todo e espalha para todos os lados  grãos de alpista que imediatamente foram descobertos pelas aves que me visitam. Agora, da janela da cozinha de onde o observo, o Orpheu não está só: em volta da gaiola, no chão, há pardais a catar os restos que ele despeja, num bailado encantador e ao som de trinados belíssimos que me proporcionam um espetáculo maravilhoso e inusitado... E essas aves atraem outras, e cada dia são mais... Não sei se o Orpheu está feliz... Eu estou... Porque sem o saberem, o meu marido e os meus filhos ofereceram-me, no dia dos meus anos, todas as aves do mundo... 


sexta-feira, 5 de julho de 2013

Da espera


Quero de ti o que for simples
um aceno um postal
o teu nome numa concha

Ter apenas isto:
um banco de jardim
onde te esperar
e esperar.

Vasco Gato

quinta-feira, 4 de julho de 2013

E ficou sendo


No aeroporto o menino perguntou:
— E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
— E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes
da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados
de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com
as crianças.
E ficou sendo.

Manoel de Barros, in Exercícios de Ser Criança

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Já não se escrevem Cartas de Amor...


Cartas de amor são escritas não para dar notícias
Não para contar nada
Mas para que mãos separadas se toquem
Ao tocarem a mesma folha de papel.

Rubem Alves

Os dedos quentes de julho

 
Tocam-me de mansinho os dedos quentes de julho, reacendendo fogueiras de memórias que nunca deixaram de arder. Que nunca deixaram de ser sangue em mim. Saem do escuro da noite e entram-me silenciosas no peito enquanto encosto a mão aberta ao tronco morno e rugoso da velha árvore que este ano não floriu... São memórias sem nome, sem rasto, sem rosto, que se debatem pela vida como a mariposa de asas de pó que se vai desfazendo aflita na enorme teia de aranha - seu jazigo brilhante, imponente ao luar, parecendo feito só de água.