domingo, 28 de fevereiro de 2010

Desaparecer na estrada


Na minha terra
há uma estrada tão larga
que vai de uma berma à outra.

Feita tão de terra
que parece que não foi construída.
Simplesmente descoberta.

Estrada tão comprida
que um homem pode caminhar nela.

É uma estrada
por onde não se vai nem se volta.

Uma estrada
feita apenas para desaparecermos.

Mia Couto, Estrada de terra, na minha Terra

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Cansaços


Hoje tropecei num coração. Estava caído, pulsando devagar e brilhava muito como um anjo molhado... Tinha tombado dum peito qualquer, talvez uma dor maior o tivesse arrancado do lugar onde morava. Era um coração magoado, tinha as marcas da tristeza arranhadas nas paredes vermelhas e bombeava cansaços infinitos, muito baixinho, quase sem se fazer ouvir... Virei-lhe as costas, deixei-o lá ficar, rasgado ao meio, desfazendo-se lentamente sob a chuva triste... E fiquei a pensar de quem seria o coração moribundo...
Fiquei a pensar... quem entrará hoje em casa, com o peito vazio?

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O tanto que eu não digo


Brilhando muito no ecrã, a frase ri-se de mim. Atira-me com as consoantes, pisa-me as vogais que desarrumam a pontuação e desalinham o texto... Ri-se, a malvada.
Abandono o computador e deixo-a a rir alto, às gargalhadas, subo as escadas e ouço ainda aquele desdém escarninho...

Regresso.

Tudo está igual. Era uma secreta esperança, a que eu tinha escondida no peito, de que se a deixasse só, ela se organizasse na inquietude que eu quero dizer, a inquietude que anda às voltas no labirinto do pensamento a espalhar ecos que sufocam...
Não a sei dizer. Parecia fácil, tão fácil...! Mas escrever emoções é um exercício arriscado, pintar inquietudes, um gesto impossível. Talvez por isso elas me amordaçam tantas vezes, porque eu sei-as e não as sei dizer...

Tento de novo. Nenhuma tecla se arrisca. Nenhum texto ganha corpo nas palavras que me fogem... Procuro-as na chuva forte que cai. No vento frio deste inverno sem fim. No negro pesado do céu manchado de nuvens. Procuro-as nas minhas mãos vazias. E dentro dos meus olhos.

Desisto. A frase já não se ri, calou-se por fim. No silêncio desta noite sem voz, ronronando no computador, algures, perdidas de mim, estão as minhas palavras à espera que eu as saiba dizer. À espera.
À espera.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

No céu da Poesia


Eu hei-de arrastar com muito orgulho
Pelo pequeno avião da propaganda
E no céu inocente de Lisboa,
Um dos meus versos, um dos meus
Mais sonoros e compridos versos

E será um verso de amor...

Alexandre O'Neill, Propaganda

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Da noite


O meu maior desejo foi sempre o de aumentar a noite para a conseguir encher de sonhos.

Virgínia Woolf

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Do Amor


Ardendo de amor, as cigarras cantam;
mais belos porém são os pirilampos
cujo amor mudo lhes queima o corpo!

Poema japonês, Autor desconhecido (Tradução de Herberto Hélder)

Pensa nisto


Desde sempre, o mar


Foi desde sempre o mar
E multidões passadas me empurravam
Como o barco esquecido

E o rosto de meus avós estava caído
Pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
E pelos mares do Norte, duros de gelo

Então, é comigo que falam,
Sou eu que devo ir.
Porque não há mais ninguém,
Não, não haverá mais ninguém
Tão decidido a amar e a obedecer aos seus mortos.

Cecília Meireles, Mar absoluto

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

As palavras (im)possíveis


Podia fazer um poema para ti esta noite.
Com palavras que só tu lerias,
como azul, ou água, ou lua.
Com a palavra sol e a palavra sorriso.
Podia.
Seria fácil juntar as palavras que tu sabes
e dar-tas embrulhadas num poema...
Acrescentaria esquilo e vento e chuva,
talvez areia e minutos e saudade.
A palavra estrela e a palavra música.
A palavra sonata e a palavra sempre.
A palavra perfume. E beijo.
E a palavra mãos.
Podia.
Podia dar-te um poema esta noite
se soubesse que o lerias,
o poema que não sei fazer...

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A validade dos sonhos


Os sonhos têm prazo de validade. Devíamos sabê-lo quando começamos a construir castelos, a erguer paredes com a pedra da ilusão, incansavelmente, o coração persistente sorrindo feliz dentro de um peito imune à dor. Porque depois, algures pelo caminho, os sonhos começam a tombar da árvore da vida, apodrecidos pelo tempo e pelos vendavais dos dias e desfazem-se na terra que nos suporta os passos. Um por um caem como aves cansadas, aflitas às cegas nos céus da desilusão, exaustas de vôos que não as levam a ninho algum. Devíamos saber. Não que isso mudasse alguma coisa, não deixaríamos de sonhar. Mas deveríamos saber, quando cheios de coragem abraçamos um sonho, que algures, inevitavelmente, uma ampulheta começou a contar os segundos para a queda.
Alguém nos devia contar que os sonhos, como as flores, têm prazo de validade.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Amor em segunda mão


Já tive um carro da cor dos teus olhos. Deixava-o
estacionado à frente de prostíbulos onde alugava
quartos com vista sobre o quintal dos vizinhos.

Esperava por semáforos, sem saber que esperava
apenas por ti. No auto-rádio, a tua voz cantava
fados demasiado velhos até para a minha mãe.

A segunda circular era uma manifestação pacífica
de pára-brisas, as palavras de ordem eram simples
porque ainda não sabia que já me tinhas escolhido.

Quando os outros rapazes folheavam revistas de
carros nas aulas de matemática, eu apenas me
interessava por unicórnios e farmácias abandonadas.

Agora, os meus olhos contam quilómetros nos teus,
procuro papéis entre papéis do guarda-luvas e
tenho tanto medo que me vendas em segunda mão.

José Luís Peixoto, Carta de condução

domingo, 14 de fevereiro de 2010

A melodia do Amor


Sentados no canto mais distante do café, as mãos entrelaçadas por cima da mesa, sorriam. Olhavam-se nos olhos, tocavam o rosto um do outro e sorriam... Ele brincava com a madeixa de cabelos que lhe tombava sobre os olhos, ela beijava-lhe os dedos, vagarosamente, e sorriam. Sorriam sempre, os rostos iluminados pela luz do amor, o brilho da felicidade bailando-lhes nas bocas que sussurravam palavras que só eles sabiam. A certa altura, ele tirou do bolso o MP4, entregou-lhe um auricular, colocou o outro no seu ouvido e ficaram assim, sorrindo sempre ao som da música que mais ninguém ouvia. Felizes.
Levantaram-se muito tempo depois, deslizando devagar num mundo sem gente, envoltos numa doçura de paz e harmonia que só alcança quem se encontra no amor. Saíram abraçados, enlaçando-se pela cintura, as bocas procurando-se... E eu sorri. Pensei que o amor devia ser sempre assim: uma mesma música e uma única sintonia, sem notas dissonantes, sem tons discordantes. Vi-os afastarem-se, jovens e felizes, donos do mundo, deuses de todos os seus sonhos...
E sorri.

Amor é...


Porque hoje se celebra o Amor. E porque não conheço palavras mais belas do que estas.

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence o vencedor;
é ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões, Obra poética

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Além do corpo


Mais que o teu corpo quero o teu pudor
quero o destino e a alma e quero a estrela
e quero o teu prazer e a tua dor
o crepúsculo e a aurora e a caravela
para o amor que fica além do amor.

A alegria e o desastre e o não sei quê
de que fala Camões e é como água
que dos dedos se escapa e só se vê
quando o prazer se torna quase mágoa.

Estar em ti como quem de si se parte
e assim se entrega e dando não se dá
quero perder-me em ti e quero achar-te
como num corpo o corpo que não há.

Manuel Alegre, Mais que o teu corpo

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Bem vindo

Diz-me se incomodo,
disse ao entrar,
porque me vou imediatamente.

Não apenas incomodas,
respondi,
como pões de pés para o ar toda a minha existência.
Bem vindo.

Eeva Kilpi

Palavras sentidas


sentir o que não existe é uma qualquer saudade de nós próprios.

valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Palavras dentro


- Estórias de antigamente é assim que já foram há muito tempo?
- Sim, filho.
- Então antigamente é um tempo, Avó?
- Antigamente é um lugar.
- Um lugar assim longe?
- Um lugar assim dentro.

Ondjaki, Avó Dezanove e o Segredo do Soviético

Palavras azuis


- Gritos azuis? Nunca ouvi falar.
- São palavras gritadas no fundo do mar, as crianças é que sabem. Os pássaros também.
- E os peixes?
- Os peixes ainda não sabem gritar bem. Devem ser de outra cor, as palavras dos peixes.
- Tu já gritaste no fundo do mar?
- Tantas vezes. Queres experimentar?

Ondjaki, Avó Dezanove e o Segredo do Soviético

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Post Secret


Há tanto tempo que não falamos...
Lembrei-me hoje que não sabes que consegui subir aquela montanha e que a desci mais crescida e mais calada... Não te contei que agora já sei ler os ventos e evito navegar quando são adversos, que já não me atrevo se o mar é traiçoeiro. Não me reconhecerias... Mudei muito, ou a vida mudou-me, pouco importa, sou capaz agora de atravessar caminhos desconhecidos mesmo sem a tua mão a segurar a minha. E já não me perco, quase nunca me perco...
Há tanto tempo que não falamos... Fazes-me falta. Quase esqueço o que nos afastou, o que fez cair o silêncio entre nós, como se já não tivesse importância, ou na realidade nunca a tivesse tido... Só existe uma mágoa que a saudade adoçou com uma tristeza suave que nunca foi embora... Quero dizer-te das minhas pequenas vitórias, dos meus risos, e saberás sem eu te contar, o sabor das minhas inquietudes, o nome dos meus silêncios...
E por isso, quando hoje inesperadamente te vi depois de tanto tempo, queria mesmo era ter parado, ter-te sorrido e convidado para um café. Queria que não se tivessem passado tantos anos, queria abraçar-te com alegria e demorar-me contigo. Queria saber de ti. Queria mostrar-te este buraco no peito que ficou quando te foste...
Afinal, há tanto tempo que não falamos...!

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Agarrar a vida


"Já não consigo agarrar a vida" - e mostraste-me as mãos vazias de sonhos, sulcadas fundo pelo cansaço dos gestos repetidos mil vezes no escorrer dos dias silenciosos. E eu levei-te à varanda e mostrei-te as aves que partiam antes do anoitecer, escutámos o vento a rasar as copas das árvores, estendemos os braços para sentir a chuva escorregar por entre os dedos... Falei-te do mar. Do cheiro do mar que se nos agarra à pele, que salga os cabelos em ondas revoltas de maresia... Recordei-te o morno da areia debaixo dos pés, a pele marcada pelos grãos dourados, o grito das gaivotas em vôos de liberdade... E o pôr-do-sol, em avermelhados de infinita magia...
Agarra a vida. Agarra-a, peço-te. Agora já podes. Sabes...? Atrás da porta da entrada, penduradas no velho bengaleiro, ao lado do teu casaco verde, deixei-te as minhas asas...

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

...


De todos os animais da criação, o Homem é o único que bebe sem ter sede, come sem ter fome e fala sem ter nada que dizer.

John Steinbeck

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Palavras perfumadas


Quero que me leves ao rio
disseste
Quero que me leves ao rio
e faças remos dos meus braços
para te navegar de madrugada

Quero que me leves ao mar
disseste
Quero que me leves ao mar
e me faças de espuma e de vento
e me ofereças um peixe de prata

Quero que me leves à fonte
disseste
Quero que me leves à fonte
e de mim faças cântaros brancos
abraçado por tuas mãos d'água

Quero que me leves para casa
disseste
Quero que me leves para casa
e me deites em rendas de lua
trans-bordado na tua almofada

Rosa Lobato de Faria, A Gaveta de Baixo

O perfume da Rosa


As pessoas morrem. As pessoas vão embora. E deixam-nos mais vazios, mais pobres, porque levam com elas aquilo que tinham lá dentro e generosamente nos ofereciam. Quando um poeta morre, cai uma espécie de silêncio no mundo e em mim. Hoje foi com uma dor escura que passei a Rosinha, como ela gostava de ser chamada, da minha lista dos Inimitáveis para a dos Inesquecíveis, aqui, mesmo ao lado das minhas palavras. Conheci-a pessoalmente no lançamento do último livro, As Esquinas do Tempo. Chegou atrasada e molhada, porque chovia muito nessa noite... Depois sentou-se e conversou connosco. Havia nela algo de especial, uma luz rara como só possuem as pessoas que sabem espelhar o mundo das emoções... No momento das perguntas do público, ela olhou-me fixamente, sentada na primeira fila mesmo em frente a ela, e perguntou-me se eu queria colocar alguma questão. E eu queria. Queria saber como se faz para escolher as palavras certas, como se consegue abraçar as frases até elas fazerem sentido, como se perfuma um texto... Ela respondeu. E quando me autografava o livro, disse-me: "Você compreende-me... Gosto dos seus olhos, são olhos de quem ama e entende. Gostei de si".
Eu também gostei de si, Rosinha. Das suas palavras, das suas emoções, da sua alegria, da sensibilidade. Gostei do seu inesquecível perfume.
Até sempre, Rosinha.

Palavras intemporais


Mais vale uma palavra a tempo do que cem fora de tempo.

Miguel de Cervantes

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

E continuar


Finalmente parar. E mergulhar. Num livro inquietante, no vôo de um poema, numa música inesquecível ou numa frase que não sabemos terminar. Mergulhar. Dar um título ao livro da vida. Fechar um capítulo. E colocar o ponto final. Mergulhar. Fundo. Na solidão de um silêncio que tudo abraça e apaga a contagem das horas. Esquecer num mergulho que às vezes a vida nos rói nas esquinas afiadas, que rasga os sorrisos sem sequer perguntar se pode. Esquecer. Procurar a calma no fim do mergulho, lá onde o frio é mais intenso e não se ouvem as aves. Escorregar. Para dentro. Parar a vida, deixá-la em suspenso, no vazio, para nos encontrarmos no outro lado do espelho, e deixar o coração correr como um louco, de memória em memória, esperando que ele se canse. E desista.
Deslizar sem luta para dentro do mergulho que nos fará regressar.
E depois vir à tona e respirar. Fundo. Sorrir.
E continuar.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Palavras de água


Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Paul Celan, Papoila e Memória