domingo, 31 de maio de 2009

Entre nós...


Eu sei. Vais calçar as pontas nos teus pés feridos e enlaçar as fitas de cetim rosa com a serenidade que sempre manténs, com os nervos de aço que caracterizam as bailarinas. Depois, com a confiança do teu sorriso, vais respirar fundo e deixar que o corpo se solte e eleve nessa coreografia solitária que conheces de cor, que durante um ano trabalhaste vezes sem conta, até à exaustão, até à perfeição... E em noventa minutos, vais travar essa batalha com o corpo e com o coração, porque só lá estarás tu, a música soltando-se das teclas do piano e a dança... Estás calma e preparada... Eu sei. Por isso, fico à tua espera para te abraçar e festejar contigo. Vai correr bem...
Eu sei. E nas minhas mãos entre as tuas, deixo-te um sorriso... para que o leves contigo.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

O meu colo... para ti


É uma espiral de dor que começa por apertar lentamente e depois vai abraçando aos poucos o coração, até o sufocar. É uma dor mortífera, infinitamente insuportável... Devem senti-la todas as mães que vêem um filho sofrer, tombado no chão da vida, socado pelos dias. Este amor incondicional traz dores assim, que nos fazem dobrar o corpo em ondas de sofrimento, nos fazem desesperar perante a evidência de que nada pode ser feito... porque a vida já se encarregou de fazer tudo. Custa muito. E dói. Dói ver um filho guerrear os dias sem medo, sem um queixume, voar nos horizontes mais austeros, atravessar com um sorriso oceanos de dificuldades, para depois cair derrubado na praia... Uma mãe, qualquer mãe, trocaria de lugar com o filho ferido, sem hesitar. Mas a vida não é assim... No entanto, ela transforma as mães em leoas vigilantes que nunca abandonam as crias, lhes lambem as lágrimas e as feridas, ficam em silêncio ao seu lado, não tendo nada mais para oferecer do que o ninho de um colo e um coração como um abrigo secreto, mesmo que despedaçado às vezes por uma dor em espiral.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Palavras sofridas


Versos
escrevem-se
depois de ter sofrido.
O coração
dita-os apressadamente.
E a mão tremente
quer fixar no papel os sons dispersos...

É só com sangue que se escrevem versos.

Saúl Dias, Sangue

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Ó Stora...


Hoje, a normalidade de uma das aulas foi bruscamente interrompida pelo esvoaçar aflito de um pássaro que entrou na sala por uma das janelas abertas. Imediatamente se gerou um enorme alvoroço enquanto em coro a turma dizia: Ó Stora... um passarinho...! A ave sobrevoava as cabeças a uma velocidade inimaginável e pouco depois, sentindo-se talvez aprisionada, começou a embater violentamente contra os vidros, procurando o sol, o vento, a liberdade perdida que avistava através da enganadora transparência da janela. Foi o caos. Os alunos levantavam-se, tentavam conduzi-la para a saída, levantavam os braços erguendo livros e cadernos, formavam fileiras enquanto se abriam todas as outras janelas da sala. Missão impossível: a avezinha, num esvoaçar aflito, cega no seu pânico, projectava-se contra as paredes, a porta, as janelas, sem encontrar o rumo certo. Impressionados, os miúdos imaginavam já a morte certa do passarinho, esmagado contra a parede, tombado de exaustão na aula de Língua Portuguesa... Ó Stora... e agora?...
Não sei quantos minutos durou esta epopeia mas finalmente o pássaro, tão veloz como entrara, atinou com a saída, arrastando para a janela meia turma que teimava em descobrir se ele chegaria são e salvo ao seu ninho. Suspirei. Dei-lhes uns minutos para se acalmarem e depois, claro está, foi o cabo das tormentas para regressar à matéria. Eles queriam conversar... E conversámos. Falámos de emoções... do medo, do pânico, do desespero, que tomam conta do nosso olhar e não nos permitem encontrar uma janela aberta quando vivemos um problema de difícil resolução; falámos de como é fácil perder o rumo e o norte quando nos sentimos desesperados... E eles gostaram... Gostaram muito... Eu também. E por causa do passarinho que nos invadiu a sala, esquecemos apenas por hoje Os Lusíadas e a análise do episódio lindíssimo do amor de D.Pedro e de D.Inês de Castro, esse amor único na história de Portugal, mil vezes cantado pelos poetas ao longo dos séculos, um amor tão forte e maravilhoso, que só a morte foi capaz de separar.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Uma gota de sal


Quando nascemos, a primeira coisa que fazemos é chorar. Sozinhos ou com ajuda, quanto mais alto e mais forte chorarmos, mais rapidamente estamos aptos para iniciar a caminhada. E depois crescemos, e depois vivemos, e tantas vezes as lágrimas que choramos têm a mesma função do choro inicial: manter-nos vivos e com forças, para podermos prosseguir a viagem. Ou, quem sabe, a água salgada das nossas lágrimas sirva apenas para navegarmos para longe da loucura, numa maré triste e profunda que ninguém vê. E deste modo, numa solitária gota de sal, a dor acalma, a alma apazigua-se e recupera-se, às vezes, a lucidez...

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Palavras gravadas


Eu amo o teu gravador de chamadas.
Ele não me abandona
e repete vezes sem conta
a tua voz.

Pedro Mexia, Eu amo

domingo, 17 de maio de 2009

Palavras de Amor


Há vários motivos para não se amar uma pessoa e apenas um para amá-la; é este que prevalece.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Da Morte


E, finalmente, falaste de morte. Como se o assunto, adiado há tanto tempo entre nós, despisse por fim o véu proibido e se soltasse livre, suspenso no ar à nossa volta. Falaste sem angústia, sem pudores a amordaçarem-te o fluir das palavras, num tom de voz muito baixo e muito calmo. Pousaste o assunto entre nós e deixaste-o ficar, deixaste-o ganhar corpo e forma até se tornar muralha alta, impossível de contornar. Contaste-me do medo. Esse medo frio que sentes por seres tu a próxima a abrir a porta à morte... Olhas em volta e já não há ninguém mais velho do que tu, quando as pancadas soarem, és tu que vais abrir a porta por onde há-de entrar a morte, essa ceifeira implacável que te levará para longe de mim, para sempre para longe de mim... Não havia revolta na tua voz, nem pena. Só havia medo. Repito, havia medo. Um negro medo de morte. Um medo gelado da morte.
Depois fugi. De ti, de mim, da dor dessa morte que anunciaste... Saí sem olhar para trás e pude, só então, chorar.
Mas muitos pedaços de mim ficaram lá, contigo, encostados ao teu medo.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Todas as Palavras


Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

David Mourão-Ferreira, Presídio

segunda-feira, 11 de maio de 2009

domingo, 10 de maio de 2009

Uma manhã de domingo


Gosto muito das manhãs de domingo. Há um silêncio visível, que se pendura na janela escancarada enquanto a casa invadida de sol se aquieta nas arrumações preguiçosas. Quase se pode tocar, este silêncio dominical. E eu, que gosto tanto de silêncio, conduzo sem pressas até à cidade e vou tomar um café, no mesmo sítio de sempre, deserto àquela hora. Aos domingos de manhã não há trânsito, não há gente, não há ruídos na cidade pacatamente ensonada. Parece que por algum tempo a vida pára e o mundo inteiro respira paz. Até o ar que me enche o peito é diferente... Não sei explicar muito bem esta espécie de serenidade sagrada que me carrega as baterias do corpo e da mente, que me deixa espaço para me escutar a mim própria. E também pouco importa... o domingo de manhã é saboreado devagar, para não destoar o coração do corpo finalmente sem pressa e nenhum outro momento da semana tem o mesmo sabor. Por isso, as coisas boas da minha vida, os meus afectos e os meus sorrisos, as minhas memórias mais gratas e as saudades mais eternas, fazem-me lembrar um domingo de manhã... porque efectivamente têm a doçura única de uma manhã de domingo.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Palavras soltas


o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

José Luís Peixoto, o tempo, subitamente solto

terça-feira, 5 de maio de 2009

Dias perdidos


Há dias rasgados por silêncios pesados, buracos negros onde os minutos escorrem devagar.
Há dias perdidos no ânimo e na vontade, pequenas montanhas de solidão, quieta como um bicho.
Há dias sem sal, sem açúcar, sem sabor, que engolimos a custo para matar a fome da vida.
Há dias sem água, que nos secam e rasgam a boca, calada de palavras.
Há dias incolores, baços no riso que desatamos com dor.
Há dias gelados de desencontros, labirintos de melancolia nos corredores da memória.
Há dias sem perfume.
Há dias vazios.
Há dias que não valem a pena.
Há dias que a noite engole...
Por fim.
Ainda bem.

domingo, 3 de maio de 2009

Post Secret


Está decidido. Amanhã não vou trabalhar. Bem cedinho, ligo para a escola e invento uma desculpa qualquer: Ai e tal, não vou, não posso ir, estou paralisada, o corpo não me obedece... Estou sem voz... (onde já se viu um professor trabalhar sem voz?), sinto-me tonta, é a vesícula a queixar-se do número escandaloso de bombons que devorei no fim de semana... Tenho uns livros para ler que os meus filhos me ofereceram... Uma consulta médica marcada há meses... uma viagem urgente... uma audiência no tribunal... Talvez acreditem. Além disso, ninguém dará pela minha falta. Um professor é substituível, as fichas de trabalho estão prontinhas e ao dispor do colega que dará as aulas aos miúdos, ninguém terá trabalho em excesso, a minha preguiça não fará mossa no mundo. Está decidido, não vou. Nunca faltei, fui sempre trabalhar, doente, triste, desmotivada, arrastando o cansaço de noites mal dormidas... Vão acreditar. E assim posso ficar em casa a dormir, ir passear à beira-mar, ler o meu livro numa esplanada batida pelo sol, beber um refresco colorido, daqueles que têm uma rodelinha de uma qualquer fruta ácida presa na borda do copo gelado... Ou talvez fique a ouvir música dançando descalça na sala, a ver filmes sentada com as pernas à chinês, agarrada às pipocas doces, sujando o sofá e as almofadas... Agarro nos patins, (vão gostar de sair da escuridão do armário) e vou patinar ao lado do vento... Tiro a bicicleta da garagem e exercito as pernas nas estradas de terra batida, o coração acelerado e a pele coberta pelo pó dos caminhos... Não vou. Prefiro caminhar pela cidade, ao sol da manhã, encontrar conhecidos e parar a conversar, ver montras, ir às compras... Ainda por cima, tenho assuntos inadiáveis a tratar... o banco, a frutaria, os sapatos há tanto tempo esquecidos no sapateiro, a roupa na lavandaria, as contas para pagar, a farmácia... a vida normal, igualzinha à de toda a gente... e esta vontade louca de não ir trabalhar amanhã.
Não vou. Está decidido. Amanhã não vou trabalhar.

MÃE...


mãe, tenho pena.
esperei sempre que entendesses as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.
pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.
às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.
lê isto: mãe, amo-te.
eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.

José Luís Peixoto

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O elogio do amor puro


Adoro este belíssimo texto do Miguel Esteves Cardoso... Eu calo-me. As palavras são todas dele:

Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição.Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado do que quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um minuto de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
(Texto com supressões)