segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

FELIZ ANO NOVO!


Que em 2008 possas alcançar o que mais desejas e consigas cumprir todos os teus sonhos...

domingo, 30 de dezembro de 2007

Palavras velhas


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo,
eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade, Receita de Ano Novo

sábado, 29 de dezembro de 2007

POST SECRET


A new year is coming... So close your eyes, find deeply in your heart and make a wish, a secret wish...Who knows? Maybe one of these days it will come true...

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

E se...


E se eu te dissesse
que vejo o vento,
o sal do mar,
o som do silêncio
e a cor da tua alma?

Acreditavas?

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Palavras desviadas


não é sobre a solidão,
pouco me importa quem me
desviou palavra, é sobre
a tua ausência no lugar
íngreme da minha pele (...)

walter hugo mãe, o resto da minha alegria

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

OFF

Na semana entre o Natal e o Ano Novo, tenho esta estranha mania de desatar furiosamente a fazer limpezas e arrumações a torto e a direito. É como se um botão, cuidadosamente programado, se ligasse e accionasse um processo que uma vez iniciado, se torna imparável. Ataco primeiro os roupeiros e as cómodas e passo depois, sem dó nem piedade, para tudo o que é gaveta e armário. Não há um único centímetro da minha casa que não seja passado a pente fino. Rasgo, queimo, destruo, arquivo, catalogo tudo até ao mais ínfimo pormenor. É como se não quisesse entrar no novo ano com lixo, preciso de arranjar espaço para aquilo que me trarão 365 dias novinhos em folha, a estrear. Depois, mais calma já, sento-me e faço listas. Dou-lhes o sonoro nome de Listas de Intenções, de coisas que quero mesmo mudar em mim e na minha vida. Devo dizer que estas listas são coleccionáveis e cada vez que um ano termina, dedico uns minutos a reflectir sobre o que não fiz, o que não mudei, o que não aconteceu.
Mas este ano não. Este ano o meu lixo vai ficar exactamente onde está, entrará comigo em 2008 e não haverá Lista de Intenções para acrescentar à colecção. Este ano não quero rasgar, queimar ou destruir nada e tudo o que surgir em 2008 encontrará um cantinho na minha casa onde ficará deliciosamente desarrumado até que me surja de novo um ímpeto, mais forte do que eu, para espantar fantasmas, arejar baús ou sacudir poeiras que o tempo fez repousar.
Este ano entrarei em 2008 com todos os pedaços de mim, para os quais haverá sempre espaço no caos da minha memória e do meu coração.
Este ano estou off.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Palavras agitadas

A única coisa que quero do Natal é que acabe depressa, acabem depressa as avenidas iluminadas, as lâmpadas nas árvores, a agitação das lojas, toda esta gente nas ruas, os embrulhos, os laçarotes, as fitas, os vizinhos que me deixam bocados de pinheiro nas escadas, o filho da porteira empregado num armazém de roupa a sair de casa vestido com um casaco encarnado, soprando a barba de algodão (...) e eu a desligar o telefone para que não me macem, a esquecer a caixa do correio a fim de não aturar as boas-festas de ninguém, eu de televisão apagada porque detesto filmes bíblicos, sinos que badalam, mensagens de primeiros-ministros e programas de circo (...)

António Lobo Antunes, Livro de Crónicas

domingo, 23 de dezembro de 2007

Palavras natalícias


Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.

Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.


Miguel Torga, Natal


sábado, 22 de dezembro de 2007

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Todas as Cartas de Amor são ridículas


Barcelona, 21 de Dezembro de 1990

Querida Dani:
É quase...quase Natal. Arranjei finalmente forças e coragem para te escrever.Tu sabes que eu me atrapalho todo com as palavras, não tenho muito jeito para a escrita e parece-me sempre que as coisas não me saem como eu gostaria exactamente de as dizer ou que tu não as entenderás como eu as sinto.
Talvez estejas a pensar o que quererei eu a esta hora, com esta carta tão a despropósito.Bem, na verdade só quero desejar-te um feliz Natal. Nada mais. É que sabes, para mim não seria Natal se não te escrevesse, se não pudesse estar aqui contigo a sós, só mais uma vez. Queria explicar-te (porque parece-me que nunca entendeste) o que significas para mim. Apesar do longe, da distância, nem um só pedacinho de mim deixou de amar-te desesperadamente. Sinto saudade...muita saudade. Não é aquela saudade negra, que dói, que rasga, que faz chorar, não, não é essa. É uma saudade doce que me acompanha todo o dia, enquanto trabalho, como, descanso ou respiro, simplesmente. É a saudade de quem sabe que os ponteiros do relógio não andam para trás e se há coisas que o tempo nos rouba, também nos dá. E a mim deu-me a sabedoria para poder viver esta nossa ruptura. No princípio era horrível, sabes? Vivia desassossegado, inquieto, a todo o passo perguntava à secretária se me tinham ligado, se havia recados, espreitava a caixa do correio todos os dias, na esperança de que te tivesses lembrado de mim, de que me sentisses a falta. Agora não. Agora vivo apaziguado a nossa separação apesar de me acompanhares para todo o lado, todos os segundos do meu dia. E desde que te conheci, nunca mais me senti só. Quando as coisas ficam insuportáveis, penso na claridade do teu riso, na luz dos teus olhos ou no calor das tuas mãos. É tudo quanto me basta para repor a tranquilidade que tento alcançar. Mas hoje, pensar que não passarei contigo o Natal, deixa-me sufocado e aqui estou eu a escrever-te, a tentar construir a ponte que te traga até ao abrigo do meu peito.
O teu silêncio, eu entendo-o. Dói-me, mas entendo-o. E respeito-o. Imagino muitas vezes o que teria acontecido se eu tivesse ido ao teu encontro naquela noite há tanto tempo, se o avião tivesse partido a horas, se tu tivesses podido esperar por mim...Talvez tudo tivesse sido diferente. Talvez. Algures, em algum tempo, eu aprenderei a viver sem ti, apesar de morares no meu peito, donde nunca te arrancarei porque tu és a música dos meus silêncios... E é uma deliciosa sentença, essa de seres tu, tudo em mim.
E isto é tudo o que eu te queria dizer. Desejo-te, do fundo do coração, um feliz Natal. Imagino-te já rodeada dos teus, num ambiente quente e alegre e sei que nessa noite a minha memória não te assaltará os pensamentos, não te ensombrará o olhar, não terás um nó na garganta que te sufoque as gargalhadas felizes ou te tolha os gestos ternurentos. Nessa noite não haverá espaço para mim dentro de ti. Quanto ao meu Natal, será passado, como podes imaginar, a sós contigo.

Deixo-te aquele beijo...

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Palavras sibilinas


Ladaínha dos Póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Não me perguntes...


Não me perguntes.
Não o faças, porque
de todas as vezes que te atreveres,
mentir-te-ei.
De todas as vezes, ouvirás
o que não quero dizer.
Por isso, peço-te:
não me perguntes.
Deixa-me com o meu silêncio,
com as asas do coração
fechadas à volta dos lábios.
Não me perguntes.
...mentir-te-ei...
Não o faças.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Palavras equilibradas


Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio de asas.

-Como quereis o equilíbrio?

David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Cá dentro


Sacode o pó da roupa,
limpa essa dor que te escorre em fio,
lambe as tuas feridas
e levanta-te.
Caíste, sim, e depois?
Podes ainda levantar-te,
respirar fundo,
encher o peito do ar da esperança
e continuar a caminhada.
Tu não vês?
Se continuares tombado,
outros, que caminham no teu encalço,
te calcarão sem te ver,
te esmagarão com o eco dos passos,
te aniquilarão ao primeiro dormitar...
Se não limpares essas lágrimas,
não poderás ver o céu tão azul,
o sol que arde e as estrelas que fulgem gigantescas.
Dói-te o peito e isso que importa?
Ainda podes andar em frente...
Não deixes que os abutres
se debrucem sobre ti,
façam cerco à volta do teu corpo desmaiado
e te cravem as garras na carne desistente.
Não deixes, levanta-te.
E nem sequer precisas de alguém,
não precisas de cajados podres,
de muletas corroídas
que te farão derrubar novamente.
Dói-te, eu sei, e então?
Agarra as dores que são tuas
e limpa a névoa do olhar.
Estás profundamente só. E depois?
Renasce mais uma vez,
expulsa a piedade, a comiseração,
o sorriso dos lábios
dos que te veêm caído
e levanta-te.
Por ti. Verás que consegues.
E quando de pé olhares em volta,
verás outros feridos,
outros resistentes expondo cicatrizes
e caminhando a teu lado.
Porque até terminar a estrada,
ainda existe caminho,
ainda és caminhante.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Pequenina

Eu queria serenar no teu peito
com as tuas mãos tão meigas
a afastar-me o cabelo do rosto.
Sentir-te aqui, no coração doído,
Roubar o teu cheiro, colá-lo a mim,
e ser outra vez pequenina...

sábado, 15 de dezembro de 2007

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Palavras fundas

Tu eras uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi:
não soube que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda, Obra poética

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

A hora do Lobo

António Lobo Antunes esteve há dias na Biblioteca Municipal da minha cidade a promover o seu último livro, "O meu nome é Legião".
O evento estava marcado para as 21.30 mas teve início quase uma hora mais tarde. Alguém da comitiva ter-se-á sentido mal - foi-nos dito. Quando finalmente chegou, António Lobo Antunes não sorriu, dirigiu-se ao local que lhe estava destinado e depois de se ter sentado, foi logo informando que falava muito baixo porque não gostava de gritos. E eu, sentada na primeira fila, pertíssimo dele, olhei-o de soslaio e tentei encontrar empatia com aquele escritor afamado de irónico, cínico, altivo, arrogante, enfim, intratável... E depois, ele começou a falar. Falou de tudo um pouco, num discurso claro que escorria límpido e sereno, intimista e confessional, reconfortante... Falou das palavras, dos livros, dos escritores e dos leitores; da sua adolescência e da experiência inesquecível como jogador de hóquei em patins ao serviço do Benfica; da sua actividade como médico psiquiatra, dos doentes depressivos e dos esquizofrénicos; falou da difícil relação com o pai e com uma das filhas que não viu nascer e que foi obrigado a conquistar; da guerra em África para onde foi atirado e das cicatrizes que com ele trouxe; dos amigos que perdeu e que eu também amo, o José Cardoso Pires e o Eugénio de Andrade; da música de Schubert e da poesia de Byron e de Conrad; da beleza feminina como musa inspiradora das suas obras; de travestis, prostitutas e homosexualidade... Falava realmente em tom baixo, quase de solilóquio, e com uma nota melancólica a atravessar-lhe o brilho e a claridade dos profundos olhos azuis... e eu ia-lhe bebendo as palavras, tentando reter na memória as frases que faziam todo o sentido: " Os grandes livros estão cheios de silêncios...; o escritor não procura a palavra, espera-a...; vivemos todos profundamente sós, carregando feridas, dores e cicatrizes da infância que nunca curamos...; as palavras têm música e o escritor escolhe a que tem mais luz...". Sobre o livro que se lançava pouco foi dito, porque Lobo Antunes quando acaba um livro, abandona-o, esquece-o de imediato, oferece-o aos leitores.E são os leitores que fazem os livros, que os descobrem, que os sentem. Explicou apenas que a palavra Legião significa muitos e nós somos muitos... Disse-o com esta simplicidade desconcertante, como foi simples tudo o que disse.
Poderia ter ficado ali horas a ouvi-lo, sem o interromper, apreciando o natural bordar do pensamento de um Senhor Escritor que assume o que sente e o que diz, sem papas na língua, sem medo do que possam pensar a seu respeito, sem qualquer laivo de hipocrisia ou dissimulação. E eu pensei com os meus botões, como somos às vezes injustos e levianos no julgamento precipitado e básico que fazemos dos outros, como este escritor tem sido tão superficialmente apelidado com atributos pouco meigos e até ofensivos... ele está-se nas tintas para isso, tenho hoje essa certeza... e ainda bem que saí de casa numa noite gelada para conhecer Lobo Antunes, porque regressei com o pensamento cheio, com a alma confortada e com a certeza de que quando crescer, gostava de saber exprimir-me assim, acariciar assim as palavras...


quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Palavras queimadas


Tu lhes dirás, meu amor, que nós não existimos.
Que nascemos da noite, das árvores, das nuvens.
Que viemos, amámos, pecámos e partimos
como a água das chuvas.

Tu lhes dirás, meu amor, que ambos nos sorrimos
Do que dizem e pensam
E que a nossa aventura,
É no vento que a ouvimos,
É no nosso silêncio que perdura.

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não falaremos
E que enterrámos vivo o fogo que nos queima.
Tu lhes dirás, meu amor, se for preciso,
que nos espreguiçaremos na fogueira.

José Carlos Ary dos Santos, Na Mesa do Santo Ofício

sábado, 1 de dezembro de 2007

Dezembro!

Amo o Natal... amo mesmo. Há uma espécie de magia e encantamento nesta quadra onde os corações humanos se transmutam e as pessoas parecem ficar subitamente mais atentas aos outros e à própria vida. Não serei talvez a excepção... e no entanto, é no Natal que como alarmes, se acendem dores atenuadas em todas as outras alturas do ano. É no Natal que sem cessar, num exercício doloroso e ao mesmo tempo gratificante, desato a evocar continuamente os que já partiram. É no Natal, nem sei bem porquê, que as recordações teimam em persistir, que não se apagam nunca, como as luzinhas coloridas que enchem as ruas, as casas, o mundo... Simplesmente ficam ali, a pairar-me na memória como a neve nos beirais... e cada passo que dou, cada gesto que faço, é na luta de evitar que a neve derreta, escorra líquida e se suma por uma qualquer fenda do passado.
Há uma tradição, usança de algumas regiões, que acarinho com conforto: manter à mesa, na noite da ceia, um lugar posto, um lugar a mais, que ninguém ocupará e que simboliza tão só todos os que amamos e que já partiram, mas que nessa noite sagrada, nessa noite de amor e de paz, retomam o seu espaço físico nas nossas vidas e nos nossos corações. Eu tenho algumas perdas, como toda a gente... e é no Natal que me dedico a evocá-las com mais tranquilidade, com outra serenidade, tentando aceitar o inelutável mas recusando-me a enterrar os meus mortos dentro de mim. É por isso que no Natal além dos risos e da alegria, há saudade infinita na solidão dos vivos, há lágrimas no corredor do meu peito e há uma dor doce e suave que me acompanha. Apesar de ser Natal.

P.S.- Hoje, para além de se iniciar a quadra natalícia, é o Dia Mundial da SIDA. Com imenso carinho, aqui fica o meu abraço.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

O Amor é uma maçada...

Tou...sim? Ah, olá...! Então...tudo bem?Diz-me...Não! Jura...não posso crer!Enganaste-te com certeza...A Berta, dizes tu?A Berta casou-se? Mas tens a certeza? Mas como...!Logo a Berta, que sempre odiou casamentos, que jurava que nunca se casaria...será possível? Não, realmente já não a vejo há uns tempitos...pois, não te sei dizer quanto...nem isso interessa, pois não? A Berta era tão cómica! Lembras-te, ela queria ser astronauta...para ver o azul de longe, dizia ela e o pessoal ria e não a levava a sério...Ela sempre teve aquela mania de querer ser diferente...estou pasmada, juro-te. A Berta presa, armadilhada numa instituição burguesa e burocrática, castradora da liberdade dos sonhos e dos voos azuis... que novidade me estás a dar! E o Pedro, como está? Claro, imagino que esteja louco, de cabeça perdida, ele era doido por ela... e dizia, coitado, que esperaria pela Berta até ao fim dos dias...que ela acabaria por amá-lo, nem que fosse por habituação...e eu sempre te disse que ela um dia o destruiria...francamente, às vezes até pareço bruxa...Que coisa! No amor sai sempre um destruído, quando não são os dois. Claro que tens de me dar razão, eu estava mesmo a ver que o Pedro um dia ficava um farrapo por causa da Berta. Mas uma coisa destas...nunca imaginei. Eu cá para mim, acho que não devíamos apaixonar-nos nunca... o amor é uma maçada, enrola-nos o pensamento, distrai-nos do essencial... pois é, ainda por cima faz doer que se farta... às vezes é só lágrimas... olha, eu nunca me apaixonarei...casar talvez, mas amar, nunquinha! Os homens são todos iguais, dizem que só querem é divertir-se, passar bons momentos, e depois, quando a gente menos conta e espera, estão a querer casar...pois, e filhos e tudo...mas comigo não, eu cá não vou nessa...filhos é que não! Coitado do Pedro...e coitada da Berta... O amor é mesmo uma maçada...OK, vai lá então, desculpa, eu também tenho muita roupa para passar e o jantar para fazer. Hoje é quarta-feira e às quartas, tu sabes, é aquela confusão... não, está tudo óptimo... e contigo...? Ainda bem... olha, passa por cá no sábado, vamos juntas ao ginásio... pode ser, eu levo o carro e depois, se der, passamos no barzito. Agora desliga, se não a conta é um dinheirão... xau então, um beijinho...

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Palavras simples


Vou dizer-te o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.

Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Lágrimas


E hoje, inesperadamente, vi-te. Tinha saído do trabalho feliz, com vontade de exercer o meu direito à futilidade e fui passear, ver montras, respirar o sol. Caminhava em ziguezague pela rua pedonal, cheia de gente como eu, sem pressa, solitária e distraída. E vi-te. Primeiro sem perceber bem que tu eras tu, algo vagamente familiar no teu rosto me denunciava o alarme da memória e precisei de alguns minutos para te situar no meu passado, em vidas tão longínquas e distantes que não me lembrava já de ter vivido. Até que, como o riscar de um fósforo, tudo se iluminou e as recordações aí estão, intactas. Tentei contar os anos de ausência...talvez vinte. Nem mais, vinte anos sem nos vermos, sem nos falarmos, sem saber de ti. Talvez por isso a tua imagem fosse como um soco, apanhado em cheio em desprevenido rosto. Os ombros curvados, a magreza cadavérica, a palidez de cera, os olhos sumidos num rosto todo ele dor, todo ele sofrimento, nada fazia evocar a menina feliz que então eras. Sentavas-te ao meu lado, éramos parceiras, lembras-te? Tinhas uma fita vermelha a segurar-te os cabelos que ia escorregando ao longo da manhã e que acabavas por abandonar ao lado do estojo. Ali pousada, era uma mancha escarlate gritando a alegria de cada letra, de cada número. Tinhas uma caneta que cheirava a morango e uma enorme borracha branca a que chamávamos sabonete e que o teu pai te tinha trazido de Espanha. E partilhávamos o lanche no recreio depois dos saltos à corda ou do jogo às escondidas. Trocávamos as pratinhas de chocolate que guardávamos entre as páginas dos livros como tesouros raros. Éramos como irmãs e prometemos nunca nos separarmos... Tu querias ser hospedeira... será que és?Ali paralisada, em plena rua, algo em mim desejava secretamente que não me reconhecesses, que nos meus olhos não lesses o terror de te saber tão doente... e a vida fez-me a vontade. Passaste sem me olhar e eu fiquei cosida com as montras, a ver-te afastares-te lentamente, como se carregasses contigo todo o infortúnio desta vida. Senti-me mal, muito mal. E agora sei que se não houvesse lágrimas nos meus olhos, se um nó terrível não me apertasse a garganta, te teria chamado, te teria convidado para um café onde pudéssemos escoar a saudade. Mas não consegui. O teu nome (tão raro, tão único! nunca mais conheci ninguém com um nome assim), ficou a pairar-me nos lábios e no coração. Não sei se voltarei a ver-te. Na minha dor, por mais que eu queira apagar a imagem, ficará a memória da tua silhueta esquelética afastando-se devagar, arrastando consigo a sombra da morte como um negro véu diáfano definitivamente preso aos teus ombros.

domingo, 25 de novembro de 2007

Palavras justas


Os Direitos Inalienáveis do Leitor

1- O direito de não ler.
2- O direito de saltar páginas.
3- O direito de não acabar um livro.
4- O direito de reler.
5- O direito de ler não importa o quê.
6- O direito de amar os "heróis" dos romances.
7- O direito de ler não importa onde.
8- O direito de saltar de livro em livro.
9- O direito de ler em voz alta.
10- O direito de não falar do que se leu.

Daniel Pennac, Como um Romance

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Silêncios


A chuva chegou por fim
pingando a ausência
do quente dos dias...

Encharcando a cidade,
tudo invade de lama,
arrastando
folhas mortas,
ramos partidos,
restos gelados
de sujidade.
Lentamente,
como se algo se quebrasse
cá dentro,
gotas de desalento
instalam-se em mim,
esta espécie de melancolia líquida,
de frio na alma,
que me embrulha a saudade,
me obriga a encolher-me no silêncio,
à espera do regresso adiado
do astro rei.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Palavras esculpidas


Por vezes, a maior viagem é a distância entre duas pessoas.

Somerset Maugham, O véu pintado

domingo, 18 de novembro de 2007

Parabéns Cris!


Guarda sempre o teu sorriso e mantém a luz no olhar...
Que o teu coração continue a ser a janela aberta para a linguagem da ternura e dos afectos e que os teus gestos mais simples, as tuas palavras mais singelas, sejam o reflexo da serenidade que mereces...porque sei que persistirás no hábito de derrubar muros e construir pontes em direcção ao universo dos que amas.
Desejo-te toda a felicidade e hoje, muito especialmente, beijo-te com carinho.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Palavras líquidas

É tão difícil guardar um rio
sobretudo quando ele corre
dentro de nós...

Jorge de Sousa Braga, Os Pés Luminosos

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Catarse


Sabes, é uma espécie de catarse, esta coisa das palavras...Eu bem tento, juro que tento guardá-las no peito, recusar-lhes a voz, mas elas são impertinentes e não me dão sossego. Desobedientes, agitam-se, primeiro devagarinho, incomodando só, depois, mais atrevidas, vão dando corpo à inquietude e o desconforto torna-se mais agressivo quando elas se impõem com toda a sua certeza e urgência. Nessas alturas, é mesmo imperioso cristalizar a vida, abrir a alma e soltá-las, uma por uma, em voos de alívio e liberdade. Foi sempre assim, não me perguntes porquê. Nem eu própria sei. Às vezes torna-se uma violência, quando teimosas, elas se debatem nas alturas mais impróprias e inesperadas, quando se unem numa muralha intransponível e me obrigam a baixar os braços e a render-me. Não, não te rias, é uma luta desigual, esta. Então sento-me, com um papel e uma caneta (sempre azul, claro, sabes que não gosto de escrever a negro) e serenamente abro a porta com humildade e permito o êxodo das palavras, aninhadas em frases jorrantes e catárticas. Depois surge o alívio, o cansaço da luta inglória, a terna rendição de quem sabe que dali a pouco todo o processo se reiniciará para se concluir do mesmo modo. Não me olhes assim, não é fácil abdicar de coisas que sabemos e sentimos tão nossas, nem tão pouco assumir desassossegos publicamente mas sabes, deixei de ter medo delas, das palavras. Acarinho-as com meiguice, estudo-lhes a melodia, o ritmo, a sonoridade, peso-lhes a expressão e há sempre uma, entre elas, que melhor me traduz o sentir, o pensar. E há as que nada significam, as inofensivas, as indiscretas, as urgentes, as adiadas, as sofridas, as ternas...milhões de palavras à espera de serem atiradas à ventania de quem lê. Porque quem lê (já te disse isto vezes sem conta), não lê o que eu escrevo, lê apenas o que quer ler e sentir. E até as palavras que eu te cravo no peito e te fazem vacilar, às vezes não são balas, são somente melodias de ecos que só eu ouço, que só eu sei. Por isso se impõe a purificação, a catarse. Mas isto, claro, já eu te tinha dito mais de mil vezes.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Oaristo

Parabéns meu Amor...
Desejo-te uma viagem longa e feliz,
numa estrada serena, larga e luminosa.
Hoje, é em ti que se fundem
todos os meus rumos.

Um beijo sentido.

domingo, 11 de novembro de 2007

Pura Magia

As pinceladas rubras
tingiam de morno
o horizonte
e a vida parou, emudecida.
Os ventos, serenados
e tranquilos
voavam mansamente
sobre a cor meiga
das areias desmaiadas
e até a espuma nos rochedos
se aquietou
e esperou.
Nos teus olhos,
todas as cores do ocaso,
o brilho e a liquidez
de todos os mares.
Há instantes assim,
de pura magia.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Uma chance em mil

Tinham combinado encontrar-se uma vez por ano, na noite de S.João.Um dia por ano, um só, todos os anos, enquanto vivessem.O desafio tinha caído com um misto de graça e sarcasmo, para apaziguar a dor da separação.Porque há amores assim, feitos de eternidades e de silêncios, que podem durar toda uma vida e permanecer.Tinham-se separado mortalmente feridos, há um ano atrás, sem combinar hora nem local."Na noite de S. João encontrar-se-iam algures na cidade". Ele lembrar-se-ia?Beatriz suspirou e agarrou-se ao eco da sua esperança:Encontrá-lo-ia.Ele viria.
Caminhava devagar e atenta no meio da multidão transformada.Um mar de gente feliz e embriagada arrastava-a, empurrava-a, mas ela parecia nada sentir.Indiferente à música, às fogueiras, aos gritos das pessoas, aos balões e às danças, procurava-o silenciosamente.Começou pelo jardim onde se tinham conhecido, percorreu depois todos os locais onde costumavam ir juntos, onde se cruzavam sempre, mesmo sem encontro marcado.Calcorreou todos os cafés, restaurantes, ruas e avenidas que lhe falavam daquele amor perdido.E aos poucos, o aperto no peito foi-se instalando, primeiro devagarinho, depois mais forte e avassalador, fazendo-se audível por cima do bater do coração.E se ele não se lembrasse?E se ela estivesse ali em vão?Pela primeira vez não conseguiu afastar a dor, era já grande e ocupava todo o seu corpo, oprimia-lhe o respirar, turvava-lhe a vista e o caminhar, agora rápido.Tinha que o encontrar.Ele não podia tê-la esquecido, não se esquece um amor assim...O barulho era ensurdecedor e atordoava-a, o cheiro a queimado entontecia-a e anunciava o vacilar...Deixou que os seus sentidos a guiassem sozinhos, às cegas, desesperançada já, desesperada já.A dor escorria líquida molhando-a como chuva.Como conseguiria encontrá-lo?Como?
A resposta foi nascendo ao ritmo do adormecer da cidade.Lentamente, as pessoas recolhiam a casa, exaustas da festa e da folia, esgotadas dos excessos, mas Beatriz tinha ainda uma hora até partir o último comboio.Como fora tonta!Como julgara possível ele lembrar-se?Consciente do seu sonho despedaçado, sentou-se no banco de pedra da paragem e enquanto aguardava, já não olhava à sua volta, já nada via.Finalmente, deixava-se acometer por um choro profundo, desses que lavam a alma mas arrancam pedaços de vida.O choro da dor, do desespero.
Entre os outros sons, o apito do comboio fez-se presente, soou impertinente e Beatriz levantou-se devagar.Caminhou até à carruagem carregando nos ombros o peso dos farrapos dos seus sonhos, da sua esperança estraçalhada.Que tonta fora!Apoiou-se na pega da porta para subir e tinha já um pé no interior da carruagem quando sentiu a firmeza do puxão no seu pulso, o agarrar sereno e confiante da mão dele na sua.Voltando-se lentamente, encarou-o nos olhos felizes, com a alma aberta de par em par ao sol da manhã sorridente e dourada.Sem palavras, uniram-se na entrega de um abraço único, o abraço de quem sabe que um amor assim é raro, um desses amores que a vida reserva só para alguns, um amor que é, apenas, uma chance em mil.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Parabéns Mamã

E porque me falta o engenho e a arte, ofereço-te as palavras de um dos mais belos poemas que já li. Com muito Amor.

PARA SEMPRE

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade!
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade, Lição de coisas

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Tempus Fugit

Inexorável, o tempo fita-nos com os seus olhos trocistas, enormes cavernas vazias onde nos perdemos à procura dos segundos.Em nome do tempo, quantas barbaridades cometemos diariamente!:corremos, perseguimos os minutos na ânsia de os vencer; marcamos, desmarcamos, remarcamos, alteramos, substituimos a vida para caber nas horas, nos dias; voamos na estrada, aceleramos em casa, no trabalho, na rua, atrasamos as chegadas e as partidas quotidianas; alargamos os prazos, dilatamos as datas, na esperança de podermos cumprir; pedimos mais tempo, só mais um pouco, para não falharmos; retardamos os momentos de descanso... e vamos, assim, escorregando inevitavelmente nas garras do tempo, tentando matá-lo, sem nos lembrarmos que ele nos vai matando, a cada pulsar dos ponteiros desdenhosos.
Quão difícil é de gerir! Sem outra escolha, vamos deixando coisas para fazer amanhã, um dia, no fim de semana, nas férias, quando os miúdos crescerem, quando houver tempo... numa outra vida...Vivemos perseguidos pelo relógio, vacilamos sempre perante esse adversário terrífico, tão temido pelos maus gestores, fatalmente reconhecido como invicto.Na realidade não há tempo, nunca houve, para os que amamos, para os que queremos, para os que precisam de nós, para os que nos esperam, apesar de tudo. Não há tempo para o amor, para a paixão, para a entrega, para a partilha, para a procura da felicidade... E sem tempo nos dias, arrastamo-nos nas noites, roubando tempo, julgando ganhar a vida. Mas, ganharemos?
....................................................................................................................................................................
Estou atrasada... detesto chegar atrasada! Acelero o carro mas infelizmente há um mar de trânsito, é hora de ponta e a cidade enlouquecida corre toda, ao mesmo tempo, para todos os lugares...Impossível fugir... estou encurralada.
Desisto. Ponho o carro em ponto morto, puxo o travão de mão e aguardo tranquilamente o escoamento do rio metálico, enquanto ponho o som do rádio mais alto. Muito doce, a voz da Mafalda Veiga lembra-me a única verdade: "A vida não pára... a vida é tão rara!"
Encosto-me no banco, fecho os olhos e inspiro profundamente. Deixo que os pulmões se encham de ar e depois solto-o devagar, muito devagar, bem devagarinho...

domingo, 4 de novembro de 2007

Palavras sussurradas

Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé - o meu - sobre o teu pé.
Logo o roçar urgente do joelho
e o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda:quer mais pele, mais quente.
A boca exige:quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente,
ímpeto que não ache um abandono.

Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
somos a maré alta de quem ama.

Por fim o sono calmo, que não é
senão ternura, intimidade, enleio:
o meu pé descansado no teu pé,
a tua mão dormindo no meu seio.

Rosa Lobato de Faria, Poemas Escolhidos e Dispersos

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Fotografias

As palavras saíram-me um pouco ríspidas, fora do que é habitual, ásperas, quase cortantes:"Sentem-se e calem-se!".E eles, estranhando o tom tão inusitado em mim, entreolharam-se espalhando olhares inquisitivos e foram pingando o silêncio e ocupando quase constrangidos os lugares residentes.Depois, enquanto escrevia a data e o número da lição, pensei na tarefa do professor.Tinha dentro da sala, vinte e oito alunos que não poderiam perceber que a cabeça me doía horrivelmente, que as marteladas de dor me rasgavam as frontes, me obrigavam a massajar constante e inconscientemente a zona dorida e a força da luz tornara-se insuportável.Disfarçadamente, enquanto liam absortos o texto indicado, tirei um comprimido da carteira e engoli-o com um pouco de água.Era já o terceiro.E a dor teimava em não me dar tréguas...
A aula começou calma e cada palavra era insuportavelmente arrastada, penosamente proferida e era imperioso que fizesse sentido, articulada com as outras, até constituir um discurso coerente.Era necessário ler, inquirir, escrever no quadro, solicitar a memória, ditar apontamentos...cativar o meu auditório, prendê-lo na teia do interesse e da atenção...Era preciso estar atenta aos mais vagarosos, aos mais agitados, aos mais sagazes, aos incompatíveis, aos mais sensíveis, aos tímidos, aos indolentes...cada aluno é um universo e é tratado como uma individualidade, como um ser único, como penso que merecemos todos ser tratados.Mas sentia-me doente e a tarefa afigurava-se-me hercúlea...
A meio da aula, à dor de cabeça somaram-se as náuseas, as tonturas, os flashes de luz, a sensação de desmaio...e sentei-me atrás da secretária, sem ter deixado nunca de falar.
Não sei como perceberam.Talvez me tivessem visto tomar o comprimido...ou talvez seja só o entendimento secreto de quem se conhece bem e estranha quando nós não somos nós...
Arrastado, o som da campainha fez-se audível, poderoso, como um grito de liberdade atirado aos muros da escola.A aula terminara.O meu suplício também.
Contrariamente ao que é habitual, as cadeiras arrastaram-se devagar, os livros e cadernos foram arrumados com serenidade e antes de desaguarem tranquilos nos corredores gelados, quase todos tinham um mimo para mim:"Vai ficar boa, stora...";"As melhoras, stora!";"Bom feriado, stora";"Espero que passe...";"Vai melhorar...".
Já melhorei.A enxaqueca cedeu finalmente e eu voltei a ser eu.O que não passa, o que nunca passa despercebido, são os gestos de carinho que nos dedicam, a ternura subtil que há nas palavras dos que nos rodeiam que quando são inesperadas, parecem raios de sol tímido a desbravar a mais dura das tempestades.Essas ternuras devem ser fotografadas pela memória e arquivadas no único lugar que lhes compete: o coração.
Assim o fiz.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Palavras grandes


Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fernando Pessoa, Liberdade

domingo, 28 de outubro de 2007

Carta Aberta aos meus Alunos

Porque por vezes é imperioso soltar amarras, sem medir ventos nem marés e embarcar no sonho, ao sabor da aventura.Porque por vezes não achamos as palavras certas para desfiar o turbilhão de emoções que nos assola a alma.Porque por vezes, não está lá o confidente fiel, o secreto depositário dos nossos anseios, dos nossos medos mais recônditos.Porque por vezes as palavras nos chamam, querem ser gritadas, agitadas, atiradas ao sabor das tormentas da vida.Porque por vezes, muitas vezes, estamos felizes e não temos a quem contar, não temos como contar...Porque por vezes, algumas vezes, o mundo e nós andamos desconcertados, desacertados, desatinados.Porque por vezes, tantas vezes!, temos um brilho estranho nas pregas de um sorriso, uma luz evidente, num olhar que ninguém vê.Porque por vezes, imensas vezes, nos apetece tirar a máscara e desnudar a alma.Porque...nessas alturas, só as palavras nos guiam o voo, só elas nos concedem o desafio de nos tentarmos compreender a nós próprios, de esboçar emoções solitárias e ficarmos felizes e apaziguados...
Escrever é preciso.Porque sim.
Sejam felizes...com as palavras!

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Palavras tristes


Havia
na minha rua
uma árvore triste.

Quebrou-a o vento.

Ficou tombada,
dias e dias,
sem um lamento.

(Assim fiquei quando tu partiste...)

Saul Dias, Obra Poética

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Doçura


Vem sentar-te aqui... à minha beira.
Vamos conversar.
Diz-me em que rumos te perdeste,
em que batalhas sangrentas anda o teu corpo ferido...
Fala-me de ti.
Há tanto tempo que não conversamos,
diz-me o que te aconteceu nessas viagens
onde te embrenhaste sem mim...
Trazes o rosto marcado
pelos ventos gelados da dor,
trazes o corpo cansado
da revolta devastadora
de marés adversas...
Deixa-me limpar-te da face
esse rasto teimoso da lágrima
que denuncia os vendavais onde te embrulhaste.
Conta-me as tuas mágoas,
saberei escutar-te com as tuas mãos entre as minhas...
Rasga o silêncio a que te algemaste
e rompe a saudade que me rói o peito, que me devasta...
Desce a escadaria do teu castelo de solidão

e

Aninha-te assim, no meu abraço,
no meu colo
que hoje é todo para ti.
Só para ti.
Com doçura.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

O Brilho da Memória


No fundo da minha memória, há um baloiço de madeira preso ao tecto do sótão com grossas cordas cheias de nós, como os cabos de um navio.
No fundo da minha memória, há um sótão cheio de sol, com tábuas carcomidas, baús repletos de roupa velha, mobília gasta abandonada a um canto e uma simpática e barulhenta máquina de costura onde eu encostava a barriga vendo os tecidos transformarem-se em peças de roupa que estreava ao domingo.Há batatas polvilhadas com remédio de escaravelho, tapadas com jornais, a cobrir o chão.Há revistas amarelecidas, recortadas, com páginas ternamente dobradas nos cantos e empilhadas como um castelo de sonhos.
No fundo da minha memória, há uma velha escada de madeira que rangia sob o peso dos meus passos felizes e um corrimão onde eu mergulhava sem medo para desaguar incólume no rés-do-chão.
No fundo da minha memória, há uma casa antiga que cheirava a cevada quente e torradas com manteiga, há o som de um rádio cantarolando baixinho, há uma televisão a preto e branco coberta com um pano de crochet e uma salinha de estar pequenina, com a parede do fundo coberta até ao tecto de estantes com livros, perfeitamente agrupados por números e colecções.Há um sofá de couro onde eu me perdia em viagens infinitas, nas asas das palavras dos poetas.Há os óculos do meu avô, abandonados sobre a mesa, ao lado de um cinzeiro de porcelana pintado de azul e branco.
No fundo da minha memória, há um quartinho minúsculo, sem janelas, onde contrariada dormia a sesta e onde a avó me colocava sobre um banco e me ajustava ao corpo os vestidos que costurava com amor e a boca cheia de alfinetes...
No fundo da minha memória, há uma cozinha de mármore que cheirava a leite creme coberto de açucar, queimado com uma pá de metal.Há louça de barro pintado com provérbios e dizeres que eu não entendia...
No fundo da minha memória, há um quintal plantado com esmero e amor, onde o cebolo, a salsa e as couves rebentavam num grito viçoso... e há canteiros pequeninos com margaridas, dálias, rosas e crisântemos que se erguiam ainda orvalhados, fulgindo ao sol, a rebentar de exuberância.Há uma capoeira com galinhas poedeiras que eram cruelmente mergulhadas em tinas cheias de água quando ficavam chocas.E todas elas tinham nome, as galinhas da minha memória e eu passeava-as com um cordel nos intervalos da caça aos caracóis, joaninhas e borboletas, que perseguia com a alegria ensurdecedora dos meus saltos de criança.
No fundo da minha memória, há um tanque de pedra, tapado com uma tábua para não se transformar em abrigo dos gatos vadios, onde a avó lavava roupa, batendo-a com força, esfregando, torcendo, enxugando, com a língua de fora...
No fundo da minha memória, há uma bicicleta cor-de-laranja com as rodas pintadas de branco, partilhada nos fins de tarde, quando os deveres estavam feitos...
No fundo da minha memória, há um colo onde eu me sentava limpando o sangue e desinfectando os arranhões e as feridas das batalhas diárias... e há um colo onde eu me aninhava cada noite, rezando baixinho ao Menino Jesus e ao Anjinho da Guarda, antes que o sono e o cansaço me fizessem cerrar as pálpebras no abraço sereno em que me abandonava...
No fundo da minha memória, há um brilho doce, uma luz suave que me norteia, que me conduz de regresso aos lugares a que pertenço e desenha a rota do meu marear, afastando-me dos rochedos quotidianos, alertando-me para os perigos onde o meu peito se possa despedaçar.

Assalta-me às vezes o medo de romper o fundo da minha memória e deixar fugir as recordações, uma a uma, em revoadas de luz que me deixem depois os passos perdidos na escuridão...

Que medo angustiante sinto às vezes, de perder o brilho da minha memória!

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Palavras roubadas


Sonho, mas não parece.
Nem eu quero que pareça.
É por dentro que eu gosto que aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um sentimento
De que se tem pudor.

Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o gado.

Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma vida,
É quase à queima-roupa que os atiro
Contra a serenidade de quem passa.
Então, já não sou eu que testemunho
A graça
Da poesia:
É ela, prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão aberta,
Como chispa que salta da fogueira,
Numa agressiva fúria se liberta.

Miguel Torga, Orpheu Rebelde

domingo, 21 de outubro de 2007

De Profundis


Nas profundezas da minha alma, nas entranhas do meu ser, há uma voz inquieta que se agita, fazendo gemer as algemas, os grilhões, os ferros que a oprimem. Aqui... aqui solto-lhe as amarras, deixo-a correr sem destino, à desfilada no meu peito. Aqui ela é livre e demora-se.

Seja bem vindo a este espaço.

Génese


"Põe tudo o que és no mínimo que fazes."

Fernando Pessoa