domingo, 21 de outubro de 2012

O perfume dos dias

 
 

E de repente passaram cinco anos. Cinco anos de vida nas páginas deste blogue. Tanta vida, afinal, dentro da minha vida. Tantos dias dentro dos meus dias. O perfume dos meus dias. Há tanta coisa dentro da memória, no rasto de perfume que me fica da vida... Um poema rasgado, um caderno proibido, a palavra que nunca se chegou a dizer. O som de um piano numa infinita sonata a duas mãos. Um dia de chuva, uma manhã de sol. O cheiro salgado do mar, o voo de uma gaivota... Uma árvore no meio de um bosque, um vestido vermelho. Uma música que se sabe de cor, um texto que se escreve de olhos fechados. Um filme. Um cão negro que se chegou a amar. Um abraço sem fim, uma morte inesperada. Uma rua, uma dor, um gesto desfeito, um silêncio. A esperança roubada, os sonhos traídos, a vontade e a coragem de tentar de novo. As portas fechadas, as lágrimas e o riso, o sono e os fantasmas que nos moram no peito. Um grito amordaçado, uma caminhada na praia deserta. Um búzio branco, uma mão cheia de beijinhos, um cigarro fumado devagar... Uma cerejeira plantada atrás das montanhas, um peito em ferida. Um ramo de rosas. Um livro com o meu nome, um poema num concurso, as crónicas num jornal... Uma tese sobre um poeta que se quis amar, um romance inacabado. Um pensamento ao qual se regressa. Um medo, um tiro nas costas, o coração aos pedaços que se esconde do mundo... A voz que me roubaram. Os dedos a desdobrar ternuras. A vontade de ser feliz. A família, os amigos, os meus mortos. O meu ninho. O meu mundo de afetos e de sonhos. Pegadas de mim, sangue e bocados de mim. A minha voz, o meu sorriso, mesmo quando julgo tê-lo perdido. O nunca mais. O para sempre.
 
Aos que por aqui vão passando por acaso, aos que sempre voltam, aos que me acarinham com palavras, aos que me brindam com afetos, o meu muito obrigada! Não sei o que o amanhã trará, não sei se aqui voltarei algum dia... Para já, cinco anos depois de a ter aberto, fecho esta janela que se debruça sobre o que guardo cá dentro. Se não nos voltarmos a encontrar, fica o meu "Até sempre!" e o meu ponto final.
 
Ana Paula   

sábado, 20 de outubro de 2012

Manuel António Pina: 1943-2012

 
Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.

Manuel António Pina, "Não o Sonho" in Atropelamento e Fuga


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Ser oceano

 
Dizem que antes de um rio entrar no mar, ele treme de medo. Olha para trás, para toda a jornada que percorreu, para os cumes, as montanhas, para o longo caminho sinuoso que trilhou através de florestas e povoados, e vê à sua frente um oceano tão vasto, que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre. Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. O rio precisa de se arriscar e entrar no oceano.
E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece, porque apenas então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas de tornar-se oceano.
 
Osho
 

Chuva rima com saudade

 
Chove...
Tomba a minha mão sobre o poema
e os versos têm os olhos rasos de mar
 
Chove...
Esta noite, planam gaivotas silenciosas
no céu de todas as minhas palavras
 
Chove...
Há um búzio no meu peito escondido
e no papel rasgado, chuva rima com saudade...

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Não fales...




Toca-me. Não fales. Eu invento
as palavras que os deuses não merecem.
 
Joaquim Pessoa, in Os Olhos de Isa


domingo, 7 de outubro de 2012

Da (minha) Felicidade

 
Sim, a felicidade é isto... Chegar ao fim de um longo caminho, bater com suavidade a porta atrás de nós, respirar fundo, descalçar os sapatos e massajar os pés feridos e cansados da viagem... Depois, sentarmo-nos no chão e ficarmos apenas a ouvir o bater tranquilo do coração... Sentir a vida a pulsar forte debaixo da pele, ter este sorriso teimoso nos lábios e os olhos cheios de luz, uma luz que não se apaga... Felicidade é isto... Chegar. Chegar aonde não acreditamos que fosse possível, chegar depois de termos pensado que não conseguiríamos... Ter os pés em sangue e o corpo vergado pelo cansaço, descobrir que envelhecemos... Mas saber que depois de termos chegado aqui, poderemos chegar aonde quisermos porque os caminhos já não nos assustam... O mundo já não nos assusta e somos capazes de qualquer viagem. Felicidade é isto: chegar a um sítio onde nos esperam os que amamos, aqueles que acreditaram, mesmo quando os caminhos eram de solidão. Partimos sós mas à chegada temos a quem abraçar, quem nos esperou sem desistir enquanto rompíamos a pele em fundas feridas no pó das estradas...
Hoje cheguei ao fim de uma longa e dura viagem. Uma viagem de três anos, sofrida, doída, que me pareceu impossível de terminar. Tropecei muitas vezes, caí algumas mais, tombei de bruços e ali fiquei, como uma ave sem asas... Senti-me muitas vezes só, profundamente só... Senti-me muitas vezes perdida e derrotada, arrastada num vendaval como uma mariposa às cegas rodopiando em infinitas voltas... Senti muitas vezes que não valia a pena tanta abnegação, tanto sacrifício... Por isso, este brilho de sol que hoje mora em mim, dentro dos meus olhos, que me baila nos lábios nesta dança tão doce... Cheguei. Estou cansada, mas estou feliz. Hoje, cheia de marcas e feridas e cicatrizes, sei que entreguei nesta viagem as minhas lágrimas, o meu sangue, a minha pele e a minha carne. Sim, a felicidade é isto... entregar o coração a um sonho e descobrir que o coração não se esgotou, que cresceu, se agigantou, que está sereno e cheio só de amor e coisas boas...
Por isso, esta noite entrego aos que amo este coração feliz que bate quente nas paredes do meu peito... Dou-lhes o meu sorriso mais doce, e brindo à vida. De pés descalços, beijo e abraço os que me ajudaram a chegar aqui.
Obrigada por não me terem deixado desistir. Obrigada por me terem esperado. Obrigada por me terem amado tanto...!  

sábado, 6 de outubro de 2012

Hoje...



o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim. 
 
José Luís Peixoto, in A Casa, A Escuridão

Destino do amor triste



Longuíssimos braços têm
os olhos que tudo abraçam.
Somente, só os olhos vêem
os olhos que por mim passam.

Clandestinamente os lanço,
braços de mar, olhos de água.
Longo ser líquido avanço,
abraço a vida, e alago-a.

Destino do amor triste
que não se ouve nem se vê.
Ama apenas porque existe.
Não sabe a quem nem porquê.

Nesta obrigação de estar
que a cada um de nós cabe,
coube-me esta de amar.
E ninguém sabe.
 
António Gedeão, "Rio Triste" in Poesia Completa

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Palavras sublimes




Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.
 
Maria do Rosário Pedreira, "Os Nomes Inúteis" in Nenhum Nome Depois
 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Tão dentro e sempre aquém




Gostava de morar na tua pele
desintegrar-me em ti e reintegrar-me
não este exílio escrito no papel
por não poder ser carne em tua carne.

Gostava de fazer o que tu queres
ser alma em tua alma em um só corpo
não o perto e o distante entre dois seres
não este haver sempre um e sempre o outro.

Um corpo noutro corpo e ao fim nenhum
tu és eu e eu sou tu e ambos ninguém
seremos sempre dois sendo só um.

Por isso esta ferida que faz bem
este prazer que dói como outro algum
e este estar-se tão dentro e sempre aquém.
 
Manuel Alegre in Sete Sonetos e Um Quarto

Não importa...

 
Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.

Samuel Beckett

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Pedra, orvalho, flor ou nevoeiro







Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca se entenderam. (...) A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. (...) Vivo a natureza integrado nela, de tal modo que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno...
 
Miguel Torga, in Diário II
 

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Do Tempo

 
O Tempo, ainda que os relógios queiram convencer-nos do contrário, não é o mesmo para toda a gente.

José Saramago