quarta-feira, 31 de março de 2010

Do desencontro


Provínhamos do mesmo sítio, mas não pertencíamos aos mesmos sonhos.

Baptista-Bastos, As bicicletas em Setembro

segunda-feira, 29 de março de 2010

Lugares vazios


Conheço-o há algum tempo, não sei há quanto... Deve morar perto da rua da minha mãe, onde nos cruzamos muitas vezes e frequenta o mesmo café onde eu gosto de me demorar a escrever. Ele chega quase sempre primeiro e encontro-o todos os dias em que lá vou. Gostamos ambos da mesma mesa, encostada a um canto e junto a uma grande janela debruçada sobre a rua movimentada, uma janela por onde atiro o olhar quando as palavras me faltam. Ele também gosta daquele cantinho e por isso, a mesa é de quem chegar primeiro. Partilhamos ainda o jornal da casa e as palavras cruzadas que ele nunca deixa incompletas, as letras cuidadosamente desenhadas por mão firme a caneta negra. Eu só uso tinta azul e muitas vezes não descubro todas as soluções, as quadrículas rasuradas vezes sem conta, mancham a grelha incompleta e denunciam a minha desistência... É um homem bonito e discreto, com um rosto impassível que não deixa adivinhar emoções e uns olhos estranhamente tristes. Impressionam-me aqueles olhos. São uns olhos de abandono, de vazio, uns olhos desabitados. Frequentemente somos os únicos clientes do café àquela hora tardia em que a cidade anoitece e a vida se vive do lado de dentro das casas. Só nós, nas margens do mesmo silêncio, as únicas testemunhas de um dia que finda, talvez companheiros das mesmas solidões, embrulhados nas mesmas memórias. Só eu e o homem sem nome, o homem dos olhos vazios onde não mora ninguém. E se me lembro dele agora, é porque lhe notei hoje a ausência, no café deserto ao anoitecer. Uma das empregadas comentou que ele não tem aparecido, enquanto bocejava e limpava as mesas vagarosamente com um líquido transparente que cheirava a desinfectante, e disse que talvez esteja doente...
As palavras cruzadas estavam por fazer e eu deixei-as assim... porque hoje era o dia dele, hoje a mesa onde me sentei deveria estar ocupada porque ele teria chegado primeiro... E hoje eu era uma ilha mais deserta na calmaria do café vazio, um pedaço mais longe de tudo, sem a presença tranquila do homem dos olhos tristes.

Da Pele


Deitada és uma ilha que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias

David Mourão-Ferreira

domingo, 28 de março de 2010

Nas asas de um sonho


E abri finalmente a gaveta onde guardava o meu sonho. Era um sonho bonito, cheio de sol, e cheirava ao sargaço desmaiado na areia, sem um lamento, para onde o atira a maresia ao fim de um dia de Verão. O meu sonho cheirava a mar e se me encostasse bem a ele, ouvia as ondas no seu marulhar feliz e tranquilo. Era um sonho azul, de um azul infinito e suave onde apetecia naufragar... Mas o meu sonho não me pertencia, tinha-o roubado um dia a umas mãos que mo estendiam aos pedaços e ia guardando todos os estilhaços, sem saber bem porquê. Porque prendemos pedaços de sonhos? Talvez como Ícaro, tenhamos a ambição de voar, mesmo que as nossas únicas asas sejam as do pensamento... E hoje quando abri a gaveta onde o tinha fechado para que não fugisse de mim, o meu sonho olhou-me sem brilho e não sorria já, era só um pedaço de sonho que se queria ir embora, que queria partir, voar num céu que só ele via... E eu entendi que não se pode conservar um sonho que não quer ser nosso, que não quer pertencer-nos, que deseja rasgar-nos o peito e sair de asas abertas, num vôo eterno... Entendi. E antes de voltar a fechar a gaveta, peguei no meu sonho bonito, abri de par em par todas as portas da alma e com os olhos cheios de água, deixei-o voar...

quarta-feira, 24 de março de 2010

Pausa


A chuva voltou. Há algo de triste nesta Primavera tímida e escura que persiste na demora, que teima em não fazer explodir as flores, em não trazer os pássaros em revoadas barulhentas no céu riscado de azul. Lá fora o vento enlouqueceu, derruba os vasos das sardinheiras perfumadas, afoga as violetas nos canteiros e quebra o pé frágil dos ciprestes mais jovens... Eu páro a ouvir a tempestade e quase jurava que os deuses estão irados... Às vezes eles zangam-se, ciumentos da felicidade dos homens... Pouso a caneta vermelha, também ela exausta da tinta perdida e sinto mais fundo o cansaço dos últimos dias... Na voz lamentosa do vento há algo que me enegrece o brilho dos olhos e me faz mais pesado o peito... Não sei se é a chuva, o frio ou o vento, talvez o cansaço... ou este silêncio da casa quieta. Nem eu sei bem porque de repente entristeci...

domingo, 21 de março de 2010

Da violência


Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem.

Bertold Brecht

sexta-feira, 19 de março de 2010

Pai


Sabes pai, um dia cresci e fui para a escola. Diziam-me que ia aprender a ler e a escrever. E isso era o que eu mais queria. Queria muito. Queria saber ler sozinha as histórias dos livros, queria conseguir deixar o papel falar por mim... A mamã comprou-me livros e cadernos, e lápis de cor, e uma borracha cor-de-rosa que cheirava a morango. A partir daí a escola era o sítio onde eu mais gostava de estar, o lugar para onde ia feliz. Mas um dia, era quase Primavera, a professora disse que íamos fazer uma prenda para oferecer aos pais, com um laço de papel enorme e uma flor de cera colorida. Todos ficaram felizes, pai. E enquanto os outros meninos trabalhavam, a professora sentou-me à beira dela e deixou-me fazer um desenho. O desenho que eu quisesse. Mas eu não fiz nada, pai. A folha estava em branco e eu tinha um nó na garganta e um aperto no peito a que não sabia dar nome. Na sala, eu era a única menina que não tinha um presente para fazer. E enquanto olhava a folha em branco, via o teu nome escrito, mordia os lábios e desejava que um génio qualquer, daqueles que existiam dentro das lâmpadas, me tirasse dali e me levasse para longe...
Fui crescendo, pai. Sem desenhos e sem prendas para ti. Sem o teu colo à noite, sem que nunca me tivesses aconchegado os cobertores, desinfectado os joelhos esfolados, ensinado a andar de patins ou de bicicleta. Sem que tivesses fingido ser o Pai Natal. Cresci ainda mais e não me ensinaste a nadar, não me deste a primeira semanada, não me ensinaste a dançar e não me levaste ao baile de finalistas... Não foste ver-me queimar as fitas. Não me levaste ao altar, com os olhos cheios de lágrimas felizes e não estavas no quarto do hospital quando os teus netos nasceram... Agora vou crescendo mais devagar... e passam as férias, os natais, os aniversários, escorrega o tempo devagar e eu continuo sem conseguir fazer o desenho... Às vezes, como hoje, chamo por ti baixinho, só cá dentro de mim, a ver se tu ouves... Digo o teu nome, beijo-te o rosto, aninho-me em ti, abraço-te com uma saudade infinita e recordo sempre a frase que o padre dizia às vezes quando eu andava na catequese: "Pai, porque me abandonaste?"

quinta-feira, 18 de março de 2010

terça-feira, 16 de março de 2010

Da Eternidade


Tu estás em mim como eu estive no berço
Como a árvore sob a sua crosta
Como o navio no fundo do mar

Mário Cesariny, Pena Capital

domingo, 14 de março de 2010

Dá-me a tua mão


Dá-me a tua mão. Só preciso de a segurar entre as minhas, com aquela ternura calada de quem se compreende no silêncio... Deixa-me brincar com os teus dedos como se fossem amarras que me prendem a um cais de tranquilidade... E não me perguntes nada. Não queiras saber por que motivo não deixei hoje entrar o sol cá dentro, por que razão estava insegura a minha voz... e porque é que existe esta sombra tão pesada prendendo-me os passos... Dá-me só a tua mão. Dá-me o calor dos teus gestos e a força desse olhar tão profundo com que me olhas às vezes... mas não me perguntes nada.
Não me deixes cair... Põe os teus braços à volta do meu frio, do meu cansaço, e tatua um sorriso na palma da tua mão para que eu possa roubar também, ainda que por breves instantes, a tua boca.

terça-feira, 9 de março de 2010

As asas do olhar


Quem nos deu asas para andar de rastos?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- sem nos dar braços para os alcançar?!...

Florbela Espanca

segunda-feira, 8 de março de 2010

O último abraço


Este foi o nosso último abraço. E quando,
daqui a nada, deixares o chão desta casa
encostarei amorosamente os lábios ao teu copo
para sentir o sabor desse beijo que hoje não
daremos. E então, sim, poderei também eu
partir, sabendo que, afinal, o que tive da vida
foi mais, muito mais, do que mereci.

Maria do Rosário Pedreira

sábado, 6 de março de 2010

Na espuma dos dias


Na espuma dos dias
navegam os instantes
que não se deixam
naufragar.

O entardecer avermelhado
cheira a maresia
e os búzios são da cor
dos teus olhos.

Eu sorrio. E devagar,
provo o sal da onda
que se fez cristal
na tua boca.

Estilhaços


Somos estilhaços - dizia a professora de Estudos Pessoanos. E eu parei de escrever, a mão subitamente presa ao significado da frase, e deixei de a ouvir. Sim, somos estilhaços, fragmentos, cacos de vidro espalhados por todo o lado... E às vezes não sabemos de nós. Às vezes não conseguimos encontrar todos os nossos pedacinhos que resvalaram para debaixo de uma emoção qualquer, se esconderam atrás de uma lágrima que limpámos com a ponta dos dedos trementes. Às vezes estão apenas no grito calado ou na palavra que não foi dita. Na escolha que não foi feita. E um dia, quando já não nos lembrámos, encontrámos um estilhaço pequenino ao abrir as janelas dos corredores da alma e ficámos a olhá-lo... Éramos nós? Segurámo-lo então com carinho e conseguimos sorrir... Quando nos partimos? Em que momento nos desfizemos em mil estilhaços...? Se calhar a vida vai-nos quebrando, em dois, em quatro, em oito... até não sermos mais do que muitos pedaços de espelho partido.
A esses pedaços podemos chamar máscaras - continuava a professora - ou personae. Sim, somos máscaras. Somos pessoas. Alguns de nós sabem-no, outros nunca descobrirão. Mas Fernando Pessoa, ao assumir a sua heteronímia, assumiu também as suas máscaras, as suas pessoas, os seus estilhaços. É uma atitude de coragem e de humildade e admiro-o muito por isso. É preciso que a alma seja grande para poder olhar o espelho todas as manhãs e enfrentar o estranho ser estilhaçado que nos segura firmemente o olhar. É preciso coragem para compreender os tantos que somos e nos habitam silenciosamente, uma coragem que só a vida nos pode oferecer no escorrer dos anos.
Crescer tem isto de bom. Compreender que somos muitos, afinal. Que somos máscaras. Cacos. Apenas estilhaços.