domingo, 31 de outubro de 2010

Dos deuses e dos bichos


E de novo armadilha dos abraços
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada das carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e de silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.

Rosa Lobato de Faria

Lágrimas


O dom das lágrimas é a característica mais nobre da espécie humana, imediatamente depois da palavra e antes do riso.

Bulos Salama

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Agarrar o vento


Na rua mais sombria da minha cidade, o sol não entra para iluminar os passeios e aquecer os rostos de cal das casas... Fica perdido entre os telhados alinhados, sem forças para rasgar a barreira do casario, e perde-se timidamente na nesga azul de céu, estendida ao comprido como um farrapo triste. E no entanto, é a rua mais bonita da minha cidade, cheia de vento salgado que me bate no rosto e acorda coisas boas que dormem nos cofres da memória... A rua mais bonita da minha cidade cheira a pão e a nostalgia... Gosto de caminhar contra o vento norte que me empurra o peito e traz as vozes das gaivotas, me limpa a tristeza do rosto e seca todas as lágrimas... Gosto de deixar entrar o vento em mim, na casa do meu coração, batendo portas e janelas num vendaval que tudo revolve e me faz ver com mais nitidez o que repousa cá no fundo... E gosto de regressar com o rosto gelado, todos os fantasmas adormecidos na alma tranquila e as mãos fechadas em punho para não deixar fugir os pedaços de vento ainda presos entre os meus dedos...

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Da infinitude da alma humana


Conhece alguém as fronteiras à sua alma para que possa dizer - Eu sou eu?

Fernando Pessoa

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Palavras impossíveis


Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A palavra que nunca se profere.

Adolfo Casais Monteiro, A Palavra Impossível

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Eu, pecadora me confesso...


O meu blog faz hoje três anos. Nesta data, como em qualquer aniversário, inevitavelmente fazem-se balanços, pensam-se e pesam-se as emoções. Naquele dia, era domingo e chovia. Sentia um estranho desassossego... e comecei aqui, devagar e a medo, a dar corpo e voz às minhas inquietudes. A ideia vinha-se agigantando há já uns tempos, dominava-me os pensamentos e fazia-se ouvir. Queria ter um espaço onde pudesse deixar gravado o canto dos meus poetas preferidos, onde se eternizassem os textos que acendem fogos ou luzes, algures, no avesso de mim... Mas depois, dei comigo a arriscar o voo da escrita, o precipício do lirismo, e a sentir-me bem neste lugar onde todas as portas se abrem, onde sob as asas do coração, da memória ou da imaginação, como por magia, os textos que nascem são água pura na aridez do cansaço dos dias. Por razões que ficam só comigo, por duas vezes o encerrei e duas vezes o reabri... porque me faz falta, porque preciso de vir aqui...
Três anos depois, não sou já a mesma pessoa que deu vida a este espaço. É agora mais íntima a minha relação com as palavras mas persisto no olhar interior, introspectivo, que me leve a desvendar o fundo dos oceanos que moram no meu peito e onde tantas vezes me sinto naufragar... Foi talvez essa e sempre a única razão que me fez voltar: o poder regressar a mim, único cais de partida possível para a viagem rumo ao coração dos outros.
Este blog nasceu anónimo, talvez porque pensasse na altura que a ninguém interessaria esta página perdida na imensa rede da blogosfera, que para quem me lesse, por acaso ou acidente, não seria relevante o meu nome, a minha idade, os traços do meu rosto ou a raça a que pertenço... Eu pretendia ser apenas uma voz, falando a sós comigo. Mas depois, pessoas foram passando e voltando, outras permanecem aqui comigo, como amigos que na posse da chave da minha casa, se instalam e se deixam ficar à minha espera, só para me ouvir... Honram-me muito todos os viajantes que aqui se demoram, nesta estrada pequenina no meio da imensa rede de todos os caminhos virtuais. Alguns, silenciosos, partem sem deixar rasto; outros, escrevem palavras deixando pegadas da sua passagem... São já amigos cujas vozes reconheço, passageiros como eu, andarilhos de estradas diferentes que se cruzam com a minha. Por isso, três anos depois, este blog deixa cair o véu do anonimato e assume publicamente uma identidade. Faço-o por todos os leitores que me visitam, pelos que nunca me julgaram ou condenaram, pelos que mostraram sempre respeito pelas minhas inquietudes. Faço-o também por mim, porque me parece uma maneira simples de assumir a minha escrita, os meus textos, que não são o diário da minha vida, mas reflectem a estranha do outro lado do espelho e são também, sem sombra de dúvidas, um prolongamento dos meus dias.
O rosto deste espaço é um coração. Há três anos, quando o escolhi, achei-o perfeito brilhando muito no fundo negro... O coração: a mais bela das metáforas para traduzir as emoções humanas. Porque é disso que aqui se fala, reais ou fingidas, roubadas à memória ou ao coração, foram sempre as minhas emoções a brilhar no fundo das palavras. Nunca este espaço foi usado para ferir os outros, para atacar, condenar ou criticar alguém que não eu própria. Nunca aqui se destilou ódio ou rancor. Sim, eu pecadora me confesso: é um espaço egoísta, onde às voltas dentro de mim me reencontro com os outros e onde a matéria da escrita é afinal, tão só e apenas, o que guardo cá dentro.
Esta sou eu. Chamo-me Ana Paula. Três anos depois, com um sorriso e de olhos nos olhos, brindo com os meus leitores.
Seja muito bem-vindo a este espaço.

Palavras sublimes


Mas, na praia, gaivotas desenhavam,
com mil pegadas, a palavra Outono.

David Mourão-Ferreira, Os Quatro Cantos do Tempo, C.III

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

No fundo da memória


Recordo. Os olhos, sobretudo. E as mãos. Talvez fosse por isso que toda a gente o odiava. Talvez fosse pelo olhar endurecido e cruel, ou quem sabe, pelas mãos enormes e calejadas, como garras ou tenazes. Vivia como um bicho uma vida de solidão e de silêncio, longe dos homens e das vozes e apedrejava por maldade os cães vadios. Uma vez, por acaso, ouvi-o cantar e abrandei o passo disfarçadamente roubando-lhe a medo a música suave. Era velho e chorava. Nunca esqueci o seu ar escorraçado e de vez em quando julgo encontrá-lo ainda, nos rostos que na rua se cruzam comigo e me olham sem me ver. Fascinavam-me os seus pés descalços e entristecia-me profundamente o semblante perdido de quem por acidente ou por engano, vivia uma vida trocada no mundo errado...
Recordo. Talvez só eu tivesse razão...
Sim, a vida mostrou-me que é verdade. Todo o deserto possui um poço em algum lado.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Num abraço


Ponho o meu dedo sobre os teus lábios
para que não fales.
Hoje doem-me as palavras...
E só o silêncio se ajusta
à tristeza de ter as asas molhadas
e ser ave ferida agarrada ao chão...

Ponho os teus braços à volta do meu corpo
para que me abraces sem nada dizer,
com todas as tristezas presas na garganta
onde tantos gritos se calam...

Encosto o meu corpo ao teu,
sinto os mudos abismos da tua pele
e tomo as tuas mãos entre as minhas
para que dances comigo... neste silêncio.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ó Stora...



Falávamos de sonhos materiais, de coisas que o dinheiro pode comprar e que nos fariam felizes. E de repente, um deles disparou a pergunta:

- Ó stora, o que comprava se lhe saísse o euromilhões?

Calei-me. A turma olhava-me suspensa na curiosidade da resposta. Vinte e oito pares de olhos vigilantes trespassavam-me a mente, tentando adivinhar as preferências que lhes pareciam mais evidentes. Alguns, baixinho, faziam apostas. Percebi então que não poderia contar-lhes. Nunca conseguiria explicar-lhes que à saída de uma curva da pitoresca estrada de paralelos, ele se ergue imponente, majestoso na sua velha altivez de pedra, oferecendo aos passantes uma imagem de inesperada beleza. Altivo, abraçando o mar até ao horizonte... E solitário. Como um rochedo. Não conseguiria dizer-lhes da serenidade que o envolve, o corpo sólido sobre a escarpa, enterrado nas dunas brancas de areia muito fina e macia... ou das janelinhas de madeira escura que se abrem mais perto do céu. Lá dentro há uma escada tosca que conduz ao piso de cima onde junto às vidraças eu encostaria uma mesa larga com os meus livros espalhados em desalinho e onde me sentaria a escrever... Como contar-lhes? Como descrever o cheiro a maresia do vento salgado, o entardecer do sol que morre devagar avermelhando os céus a ocidente, e os gritos das gaivotas rasgando as águas do meu sonho? Não... Não saberiam que eu forraria as paredes com estantes carregadas de livros e haveria uma cadeira de baloiço, daquelas que já não existem, onde me sentaria a ler na urgência da solidão e do silêncio... Ficariam sem saber do meu moinho, do meu refúgio sonhado num sonho tão longínquo, do minúsculo pedaço de paraíso encostado ao mar, tão próximo das estrelas...

Sorri-lhes. Falei-lhes na típica viagem à volta do mundo... E a aula prosseguiu calmamente até que o toque da campainha os libertou para os jardins da escola, na alegria ruidosa de todas as manhãs.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Os dedos da noite


Há dedos na noite, dedos longos
que me roçam o rosto
e me pedem o poema...

E são dedos de silêncio
os que me tocam a boca,
exigindo as palavras por nascer...

Há este mistério sagrado
que se desfaz em textos perdidos,
ditados pela vigília...

Há em mim esta vontade eterna
de ser só poesia,
numa noite infinita.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Se partires


Se partires, não me abraces - a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces -

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém - longe de ti o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar) e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.

Se me abraçares, não partas.

Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 5 de outubro de 2010

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Dia do Animal


Ao estudar as características e a índole dos animais, encontrei um resultado humilhante para mim.

Mark Twain

domingo, 3 de outubro de 2010

Entre a sombra e o corpo


Diante do teu ventre
como não dizer "Sempre"
novamente

David Mourão-Ferreira, Entre a Sombra e o Corpo

sábado, 2 de outubro de 2010

Nos teus olhos


Às vezes, sem tu saberes, entro para dentro dos teus olhos, à procura nem sei bem de quê...
Talvez apenas do silêncio quieto... ou da calma certeza de ter chegado a casa.