quinta-feira, 28 de junho de 2012

terça-feira, 26 de junho de 2012

Algures, no meio do meu corpo


Às vezes escondo-me no corpo e ninguém me vê. 
As pessoas falam comigo e não notam que eu não falo com elas. 
Posso até dizer algumas palavras, 
posso até exprimir-me num longo discurso, 
mas a verdade é que não falo com elas. 
Estou escondido algures no meio do meu corpo.

Gonçalo M. Tavares

segunda-feira, 25 de junho de 2012

No colo quente da areia


Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Quando a estrada nos atropela



Gosto de estradas abertas, sem fim à vista, rasgadas junto ao mar, debruçadas no íngreme da penedia. Gosto do cheiro dessas estradas desertas e dos longos dedos do vento cheio de sal e de sargaço, tão forte, tão frio que me enche os olhos de lágrimas. Gosto de derramar o olhar no azul e encher os pulmões de maresia... E é sempre assim, quando vou caminhar: umas vezes atropelo a estrada, outras vezes a estrada atropela-me... 
Hoje fui caminhar numa dessas estradas, longe da cidade, longe dos surfistas e dos turistas, dos desportistas, do trânsito e do ruído, uma estrada feita de poeira branca e de silêncio. Hoje fui caminhar numa estrada que não tem fim, não tem tempo, não tem lugar, como quase todas as estradas... E quando voltei,  alguma coisa dentro do meu peito se tinha perdido em cada passo que dei, em cada música que ouvi, em cada lágrima que o vento me roubou... Alguma coisa ficou perdida e se transformou em espuma... Hoje fui caminhar numa estrada infinita e alguma coisa não regressou comigo.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Onde as palavras moram


(...) não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.

José Saramago, Memorial do Convento

domingo, 17 de junho de 2012

Em voz baixa


É possível que eu esqueça a liquidez da Lua
o sono dessa rua às três da madrugada
a longa caminhada orquestrada pela chuva
a sombra de uma luva em cima de uma vaga

É possível que eu esqueça o dia em que nasceste
Em que depois da luva apareceram as mãos
É possível que eu esqueça    Ou me seja indiferente

É possível que sim   É preciso que não

David Mourão-Ferreira, "Sotto Voce" in Do Tempo ao Coração

sábado, 16 de junho de 2012

Esqueci-me disto...


Memento mori é um adágio latino que significa "Lembra-te que és mortal" ou apenas "Lembra-te da morte". A frase, em letras barrocas e a negrito, situava-me na minha pequenez, um grão de poeira na grandeza do universo... Esquecemo-nos disto tantas vezes, da nossa insignificância no mundo, do quanto a nossa perda nada altera o correr dos dias, as voltas que o mundo dá. Achamo-nos gigantes e donos do mundo, nada tememos e em tudo acreditamos, tudo julgamos possível quando temos a força do amor. E no entanto morremos tantas vezes! Caímos no chão como aves abatidas em pleno voo, como peixes sufocados fora de água ou frágeis mariposas esmagadas nas paredes da vida por um murro certeiro... Há dias em que nos matam as palavras ou a falta delas, os gestos falsos e a lâmina de uma mentira... Há dias em que morremos, tombados como árvores depois do vendaval e ninguém vê, a ninguém importa a nossa dor ou a nossa morte...
Também hoje eu morri, como morro tantas vezes... Deram-me um tiro no coração, um só, a sangue frio e à queima roupa. Mas o que se despedaçou em mim e nos meus sonhos que sangram ainda, esvaziou-me de vida e de força, atirou-me para a berma da estrada da vida. E pela primeira vez, não quero que nenhum caminhante me veja, escondo-me nas sombras da noite e no pó do chão, no silêncio da terra manchada de sangue, do meu sangue...  
Memento moris... A culpa é minha, esqueci-me disto... Julguei-me grande e imortal, pensei-me gigante... eu, apenas um pardal ferido de morte, com as asas cortadas, a esvair-se dos sonhos na berma dos caminhos...

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Aún estás a tiempo



No te rindas, aún estás a tiempo
De alcanzar y comenzar de nuevo,
Aceptar tus sombras,
Enterrar tus miedos,
Liberar el lastre,
Retomar el vuelo.
No te rindas que la vida es eso,
Continuar el viaje,
Perseguir tus sueños,
Destrabar el tiempo,
Correr los escombros,
Y destapar el cielo.
No te rindas, por favor no cedas,
Aunque el frío queme,
Aunque el miedo muerda,
Aunque el sol se esconda,
Y se calle el viento,
Aún hay fuego en tu alma
Aún hay vida en tus sueños.
Porque la vida es tuya y tuyo también el deseo
Porque lo has querido y porque te quiero
Porque existe el vino y el amor, es cierto.
Porque no hay heridas que no cure el tiempo.
Abrir las puertas,
Quitar los cerrojos,
Abandonar las murallas que te protegieron,
Vivir la vida y aceptar el reto,
Recuperar la risa,
Ensayar un canto,
Bajar la guardia y extender las manos
Desplegar las alas
E intentar de nuevo,
Celebrar la vida y retomar los cielos.
No te rindas, por favor no cedas,
Aunque el frío queme,
Aunque el miedo muerda,
Aunque el sol se ponga y se calle el viento,
Aún hay fuego en tu alma,
Aún hay vida en tus sueños
Porque cada día es un comienzo nuevo,
Porque esta es la hora y el mejor momento.
Porque no estás solo, porque yo te quiero.

Mario Benedetti

Lua feiticeira


Poder ver a lua é um privilégio. Em miúdo, nem sabes o tempo que passava olhando o espaço de mistério dessa falsária, dessa feiticeira, nos dias em que não conhecia nem os versos nem a morte. Também amava o seu silêncio. Lá em casa ninguém dava por mim ou por ela, a nossa despedida era sempre muda e sem acenos. Depois escorregava pelos lençóis e o sono então chegava, redondo e tranquilo, sabendo que, como uma loba branca entre as nuvens escuras, ela continuaria a vigiar. Hoje, esse brilho e essa cumplicidade só estão no teu olhar. Ela, a lua, nasce para morrer, já não é presságio nem feitiço, houve até quem se atirasse para os seus braços, dando disso conta a toda a gente. Foi-se embora o encanto, afinal podia mesmo correr-se sobre ela como eu corria em miúdo pela areia dos pinhais. Apesar de tudo, a malvada ainda me prende o olhar quando aparece redonda, cheia de luz, cheia das saudades que são minhas.
Vi-te esta noite. Branca, nua, alcançável. E mesmo que de ti não chegasse qualquer espécie de perfume, ali permaneci tanto tempo com o nariz empinado, construindo a certeza de que nenhum de nós é agora particularmente feliz.

Joaquim Pessoa, in Ano Comum

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Não digas nada



(Fernando Pessoa - 13 de junho 1888 / 30 de novembro 1935)

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

terça-feira, 12 de junho de 2012

Cá dentro


Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.

José Saramago

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Crónicas do vento salgado



Um vento frio varre as ruas debaixo das nuvens cor de chumbo que se acastelam no céu, de onde a onde esfarrapado de azul. As gaivotas invadiram o centro da cidade e gritam pelos céus os seus gritos tristes, passam em voos rasantes e aninham-se nas estátuas e nos fontanários, nos telhados das casas e nos candeeiros. Já não temem as pessoas, aproximam-se cautelosamente e inclinam as cabecitas implorando pedaços de peixe ou de pão com os olhos escuros cravados nos gestos das mãos que se lhes estendem. Estão inquietas e têm fome, subitamente desalojadas daquele mar imenso, quase negro, que se ergue em ondas majestosas e altivas, assustadoras na sua força líquida. Hoje o mar galgou o areal e enche a cidade com o seu cheiro a sal e a sargaço, cola-se-nos à pele, vem preso no vento e na luz do dia... Há uma magia qualquer em dias assim... Há uma magia qualquer neste mar todo ele força e poder, que rebenta em paredes de espuma e se espraia altivo no seu bramir, reclamando para si o chão que pisamos... Líquido e frio, tão belo...!, oferece-nos o seu perfume único e em cada onda que se recolhe parece sorrir, parece um ventre de água relembrando-nos a nossa própria liquidez, a viagem iniciática, a origem de toda a vida... Sim, há qualquer coisa de mágico neste mar que hoje se faz mais presente na cidade, que plúmbeo se agiganta e enche o horizonte a recordar-nos a nossa insignificância... A nossa pequenez, afinal...   

domingo, 10 de junho de 2012

Sempre


A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: “Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.

José Saramago

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Dentro dos meus olhos


E então escorrego para dentro dos meus olhos fechados... E do lado de dentro dos meus olhos há uma rua ventosa igual a tantas outras ruas cheias de vento e uma casa igual a todas as outras casas da cidade. Dentro dessa casa cheira a mar e ouvem-se as ondas num suave murmúrio ecoando toadas inquietas nas paredes pintadas de azul... Um corpo rasga as sombras e percebo que é o teu, pela maneira como te moves... O rádio antigo, abandonado no varandim amarelecido, deixa escapar do seu pequeno corpo de lata uma música imortal e há uma borboleta com as asas feridas presa entre as vidraças da janela onde o sol morre devagar, numa quietude morna... Lá fora o mundo move-se, impassível, alheio ao que sinto, e enquanto respiro a saudade lentamente, mantenho os olhos fechados, deixo que por uns instantes, num tempo suspenso, a memória te veja melhor.