domingo, 31 de janeiro de 2010

Luar de Janeiro


"Não há luar como o de Janeiro, nem amor como o primeiro" - dizia a minha avó. E lembro-me dela nesta noite fria do mês que se despede com uma lua enorme, de rosto redondo de porcelana branca, cintilando uma luz que parece sorrir-me de tão perto... É um brilho que apetece tocar, clareando os caminhos onde dá vontade de ser andarilho do infinito... Lá fora a quietude é total, nada se agita, como se o mundo aguardasse suspenso as novas ordens divinas. Tudo está tão sereno, tão bonito...! Não admira que este luar diferente tenha inspirado todos os poetas ao longo dos séculos... O luar de Janeiro é único, inigualável. A minha avó de novo, sorrindo-me nesta luz tão pura que afasta todos os demónios, que fecha todas as portas da saudade... Não, não é possível sentir saudade de quem guardamos dentro do peito, de quem nos vive ancorado na memória... Só dor...
Atraso o momento de entrar, acendo o último cigarro e sento-me cá fora, sob o luar enorme, abraçada ao sorriso da minha avó que fazia anos hoje, no último dia de Janeiro.

A eternidade num segundo


Eterno, é tudo aquilo que dura uma fracção de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica e nenhuma força jamais o resgata.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 30 de janeiro de 2010

Palavras fechadas


Quando o coração se fecha faz muito mais barulho que uma porta.

António Lobo Antunes

Do caminho da vida


O único modo de evitar os erros é adquirindo experiência; mas a única maneira de adquirir experiência é cometendo erros.

Autor desconhecido

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Há dias que são navios


Há dias que são navios. Que nos empurram o peito com as quilhas de aço e nos atiram para o fundo dos abismos, onde um frio líquido se nos cola à pele como medusas negras... Há dias que são navios. Enormes, densos, que nos turvam a visão e nos obrigam a marear na cegueira dos sentidos, ao acaso... Há dias que são navios, que nos rasgam a pele em estilhaços de cansaço e rompem as velas da coragem...
Há dias assim. Como navios, numa viagem que não nos leva a lado nenhum.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O sangue das palavras


vai ser preciso sangrar as palavras
vai ser bom ver correr o vidro das palavras
a palavra partir a palavra chegar

Mário Cesariny

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A espuma de um murmúrio


O amor tem uma música que nasce das
catorze linhas que se encontram entre os
dedos que escrevem o soneto e os lábios
que o lêem. Toco esta música quando
desenho o teu rosto, e começo a seguir
a linha que se solta dos teus lábios para
ver se chego ao horizonte do teu corpo,
onde o verso dobra o círculo de um
horizonte imprevisível. E dás-me o outro
lado da vida, para que eu descubra
o continente em que o sol nunca se põe,
as ilhas quentes de um calor de pássaros,
e o rumor incessante da maré a que a
tua voz roubou a espuma de um murmúrio.

Nuno Júdice, Equinócio

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Quem me dera ser onda


- Vocês não gostavam de ser onda?
- Deve ser bom. Assim por cima da água nem é preciso saber nadar. Quem me dera ser onda! - e Beto abria os braços.
- Mas Ruca - considerou Zeca -, não se pode ser onda. Onda ninguém amarra com corda.
Cá em baixo os meninos confiavam na força da esperança. E Ruca, cheio daquela fúria linda que as vagas pintam sempre na calma do mar, repetiu a frase de Beto:
- Quem me dera ser onda!

Manuel Rui, Quem me dera ser onda (Texto com supressões)

Perfeito vazio

Ao longe, sobre o mar, o lamento triste da ronca avisando os barcos dos perigos do naufrágio... Lembro-me deste som desde sempre... No mais distante da infância até onde consigo ir, até onde encontro as memórias mais longínquas... E é sempre assim, quando cai o manto húmido de nevoeiro que abraça a cidade de frio, a ronca enche tudo de um choro triste, pesado de negro... Não sei porquê, assalta-me a memória a música dos Xutos com que acordei hoje... Tem andado o dia todo cá dentro, dou comigo a cantar baixinho os primeiros versos do refrão... É uma música bonita, com uma letra bonita... Hoje terminará o dia comigo, será a minha companhia enquanto arrumo os livros espalhados e tento dar alguma ordem neste mar imenso de letras que me afoga o olhar... Quase ao desafio com a tristeza da ronca, será a insistente letra da canção que digitarei antes de encerrar o computador e que levarei depois comigo, a ecoar cá dentro:
Às vezes aqui faz frio...
Às vezes eu fico imóvel...
Perfeito vazio...

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

sábado, 16 de janeiro de 2010

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Sombras


Foi só uma sombra que me fez tropeçar. Que me dobrou o corpo em dois e me fez perder o equilíbrio. Andava encostada a mim, infiltrava-se nos bolsos da roupa molhada e ria-se... que eu bem a ouvia. Enxotava-a com a mão mas ela voltava como voltam todas as sombras, sem razão aparente e mandando mais do que a minha vontade. Ignorei-a. Foi então que hoje ela voltou mais forte e me encheu de frio. O frio triste de uma longa noite de inverno, o inverno do desassossego. É só uma sombra, eu sei. Mas caminha comigo, ao meu lado, fala-me mais alto do que os pensamentos, essa sombra lunar de face oculta, audível e insinuosa. Viscosa. Agarrada a mim.
Isto passa... Foi só uma sombra que atravessou o meu olhar.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Do beijo


Os teus lábios parados eram a noite, o abismo
e o silêncio das ondas paradas de encontro às
rochas. O teu rosto dentro das minhas mãos.
Os meus dedos sobre os teus lábios e a ternura,
como o horizonte, debaixo dos meus dedos.
Os meus lábios a aproximarem-se dos teus lábios.
Os teus olhos entreabertos, os teus olhos e os
teus lábios a aproximarem-se dos meus lábios
a aproximarem-se dos teus lábios a aproximarem-se
dos meus lábios, teus lábios.

José Luís Peixoto, Gaveta de Papéis

domingo, 10 de janeiro de 2010

sábado, 9 de janeiro de 2010

Da saudade


A saudade é uma tatuagem na alma. Só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.

Mia Couto

O coração vai


Volto muitas vezes. Volto a lugares quentes, de terra vermelha, onde as imponentes figueiras explodiam em figos doces, os pingos de mel rasgando-lhes os ventres saborosos e ouço ainda a dança das abelhas zumbindo felizes, o roçagar dos bichos invisíveis na vegetação rasteira, abanando o capim queimado... Revejo os lagartos dormindo ao sol nos muros de pedra, respirando quietude na eternidade dos verões infinitos... Volto aos cheiros. Os cheiros fazem-me falta... o cheiro da água arrastando a terra, cantarolando alegre na descida dos montes redondos como rostos, o cheiro da madeira carcomida no sotão para onde subia devagar, os degraus rangendo sob os meus pés descalços, só para espreitar a amêndoa aninhada a secar... O cheiro morno dos cavalos pestanejando desassossegados, resfolegando alto o desejo de liberdade... Volto ao cheiro do sabonete liso como um seixo, de alfazema azul, com que eu esfregava a pele do rosto besuntado da compota de tomate que adormecia em frascos rotulados na cave, vigiada pelos presuntos que endureciam, pelas alheiras penduradas nas traves mestras, soldados vigilantes de um exército guloso... Volto. Ao galinheiro onde entrava a medo, prendendo as pontas do vestido, invadindo a paz das aves poedeiras para lhes roubar os ovos de gemas amarelas como sóis com que se fazia o pudim caramelizado... Volto às noites únicas, de céus negros e abobadados refulgindo em estrelas infinitas, espelhos de luz de um universo sagrado... Aos campos de trigo loiro que debruavam os enormes lavadouros onde a água gelada e quieta se enchia de espuma fresca ao som do cantar das lavadeiras que batiam a roupa no granito como se espantassem os fantasmas que lhes moravam no peito...
Acho que todos voltamos, de vez em quando... Porque o corpo é escravo e fica... mas o coração é livre... O coração vai.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010


Às vezes é assim... Sento-me aqui em silêncio porque quero escrever. Porque preciso de escrever.
Mas há dias em que não sei escrever. Não sei.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Filipe


Senti-lhe a presença colada a mim, vinda do nada, corporizando-se nas sombras do parque de estacionamento batido pela chuva impiedosa e gelada. Deixou-se ficar num silêncio incómodo enquanto eu arrumava as sacas com as compras na mala do carro e depois, a voz rouca atirou-me o pedido: "Dona, uma moedinha para comer uma sopa..." Não respondi. Sentia-me inquieta, só ali estávamos eu e ele, naquela chuva triste que escurecia ainda mais o parque vazio. Apressei-me o mais que pude e pegava já na chave do carro, quando a pergunta me atingiu, como um soco: "És a X... não és?" Estaquei. Ele conhecia-me... Voltei-me devagar e olhei-o finalmente nos olhos, uns olhos tristes e escorraçados como os de um cão vadio... Procurei no fundo da memória aqueles olhos, tentei ligá-los a um nome, a uma época, a uma situação... reparei atentamente no cabelo encharcado, nas mãos cheias de feridas, no rosto esquálido e na boca desdentada que me sorria agora com ternura... e algo me doeu cá dentro. O nome dançou-me finalmente nos lábios, uma dança triste como a noite que nos abraçava num súbito desmoronar de recordações: Filipe. Nunca mais o tinha visto, talvez desde o baile de finalistas no casino da cidade, há muitos, muitos anos atrás... Era dos rapazes mais populares da turma, não por ser bonito, mas pelo carácter doce e pelo fantástico sentido de humor, um humor inteligente e sensível que torna as pessoas que o possuem o centro das atenções em qualquer contexto. Filipe. Um nome querido, descolado de um passado perdido, um nome que eu repeti devagar... Filipe. O colega que dava as alcunhas aos professores, que deixava copiar nos testes de Matemática, o único que fazia com perfeição o pino de braços na aula de Educação Física, o Delegado de Turma reeleito sucessivamente... Filipe. O único rapaz da turma que adorava o meu rosto sardento. E ficámos um pouco à conversa, falámos dos colegas que perdemos no rasto dos dias, dos sonhos rasgados, da heroína que o consome numa solidão vazia, da doença que o traz de mãos dadas com a morte, das desintoxicações frustradas em Espanha e em França, dos meses passados na cadeia, do filho que ele não conhece, da família que tudo tentou para o ter de volta... Falámos. Falámos muito. E quando finalmente nos despedimos, ele tinha os olhos cheios de lágrimas e disse-me baixinho: "Se soubesses há quanto tempo não me chamavam pelo meu nome e não me perguntavam por mim..."
Filipe. Um nome bonito, um colega querido que eu talvez não veja nunca mais, um ser humano inteligente e alegre, um jovem cheio de sonhos a quem o futuro sorria e que numa encruzilhada da vida, num momento cruel, fez as escolhas erradas.
A vida não perdoa os passos em falso, Filipe.
E agora, Filipe?

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010