terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Em 2014...


Ame. Goste de si. Valorize-se. Dê o seu tempo aos outros e gaste algum a sós consigo. Beije. Perdoe e perdoe-se. Visite um idoso. Faça aquele telefonema que tem atravessado na garganta. Envie o e-mail que nunca teve coragem de escrever. Escreva uma carta de amor. Proteja alguém mais fraco, alguém mais pobre. Dê aquilo de que não necessita. Ensine uma canção a uma criança. Adote um animal abandonado ou apadrinhe um de uma associação. Abrace uma causa. Recorde os seus mortos. Leia um poema todos os dias. Olhe em volta de si. Repare nos detalhes das grandes coisas. Tire fotografias. Aprenda uma língua estrangeira. Ouça uma música inesquecível. Dance com a pessoa que ama. Caminhe ao ar livre. Cante a plenos pulmões. Ria às gargalhadas. Aprenda a rir-se de si próprio. Atreva-se a provar um alimento exótico. Vista uma cor que nunca usou. Viaje, se preciso for, e vá ter com alguém de quem sente muita saudade. Ande descalço. Cultive flores e sinta o cheiro da terra que se agarra às mãos. Respeite todo o ser vivo, seja ele bicho ou planta. Recicle, reutilize, reaproveite. Aprecie a força da natureza, nas manhãs de sol como nas noites de trovoada. Não tema as sombras. Sinta o prazer da chuva sobre o rosto. Se puder, vá ver o mar todos os dias, registe a sua irrepetibilidade e aprenda com ele. Saiba esperar. Saiba ouvir. Saiba pedir desculpa e admitir um erro. Reduza a sua velocidade. Inquiete-se. Reze ao deus em que acredita. Olhe a magnificência das estrelas e pense na sua pequenez. Fique em silêncio se não tiver nada de bom para dizer. Abrace bem fundo. Olhe nos olhos. Diga "Amo-te" todos os dias mesmo a quem já não o pode ouvir.
 
Se lhe pareceu longa e maçadora a lista, ignore todos os itens e cumpra apenas o primeiro e o último.
A si, que me visita, desejo um ano feliz. Desejo-lhe dias cheios de sorrisos. E lembre-se, todas as pessoas do mundo sorriem no mesmo idioma.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Contabilidade e balancete

É inevitável, quando um ano chega ao fim, pensar-se no que de melhor e de pior vivemos no arrastar dos meses. Comigo aconteceu ontem ao telefone, com uma amiga de quem sentia muitas saudades e com quem falei durante tempos infinitos entre risos, gargalhadas e disparates inconfessáveis... Quando ela me perguntou, respondi-lhe sem hesitar que o melhor de 2013 foi chegar ao fim, olhar em volta dos meus e contar o mesmo número de pessoas. Não perder ninguém foi o que mais tinha pedido na viragem do ano. Mas é só isso??? - perguntava ela, a morrer de curiosidade numa cusquice que acho encantadora. E continuava - Então e a Turquia? Os turcos? Ver o sol a nascer nas montanhas da Capadócia a bordo de um balão? Hem? Isso não foi super bom? - Sim, foi bom. Foi maravilhoso. E lá contei da simpatia dos turcos, dos seus sorrisos maravilhosos e dos olhos surpreendentemente azuis - tão belos! -, da forma como abrem as portas de casa e do coração aos visitantes a quem é um ponto de honra receber principescamente... Contei-lhe da sensação de andar descalça no lago de sal como se fosse sobre gelo, das planícies lunares e das paisagens áridas, estranhamente vermelhas, da cidade esculpida na pedra e das cidades subterrâneas, da comida e do chá bebido a toda a hora, das lindíssimas mesquitas e dos tapetes maravilhosos, das escolas que visitei e onde as crianças me receberam com a bandeira de Portugal nas mãos... Sim, a Turquia foi uma viagem inesquecível que me aconteceu este ano... Concordei com ela e deixei cair o assunto sem lhe contar que melhor do que a semana vivida na Turquia, mais importante do que isso, tinha sido a resposta que 2013 me trouxe a uma pergunta antiga que fazia a mim mesma  em silêncio, há mais de trinta anos. Este ano, a incógnita que me habitava desfez-se. Como por magia, a inquietude terminou, eu sei finalmente a resposta. Mas isto, claro, guardei para mim, na masmorra do inviolável castelo das minhas emoções e não lhe contei, porque a minha amiga não ia mesmo entender... E também porque há segredos que se mereceram habitar-nos durante uma vida, devem morrer connosco. A sós connosco.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Carpe Diem


Do Natal ao Ano Novo viro-me para dentro de mim e espreito o avesso daquilo que dou aos outros. Acontece-me já há alguns anos, fico mais silenciosa, são mais suaves os meus passos, mais tranquilos os meus gestos, movo-me com outra serenidade... Desacelero, no sentido literal do verbo. E reviro a casa de pernas para o ar. Preciso de a olhar com olhos de ver, de a sentir enquanto organismo vivo que durante o ano maltrato com ausências, com chegadas tardias, com correrias insanas até na hora das refeições. Olho-a e vejo-a. E porque as casas respiram, adoecem e envelhecem, passo a pente fino gavetas e armários, examino clinicamente louças, roupas, bibelots e tralha que durante tantos meses vai ficando negligenciada, desfaço-me do inútil, do velho, do partido, do feio, do degradado... Recupero tudo o que posso, aproveito o que pode ainda ser reutilizado. E compro coisas novas. Pequenas coisas que são um sorriso, um grito de alegria, um toque de cor e de luz na monotonia da vida - uma moldura, uma jarra, um tapete, uma vela, uma toalha - ou então mudo objetos de lugar para que me surpreendam quando meto a chave à porta... Gosto de arrumar, de saber exatamente onde está cada coisa, de guardar as minhas roupas por cores e por tons em degradé, de alinhar as canetas e os lápis, os livros e os cadernos por tamanhos e por utilidades. Esta imposição severa dá-me a sensação de controlar o meu pequeno mundo, mas talvez seja apenas uma forma de tentar combater o caos quotidiano onde me embrulho e que me faz adiar projetos que sei agora, são cada vez mais irrealizáveis - (nunca vou escrever um livro de poemas, aprender a tocar piano, a dançar sapateado, a pintar, a bordar...) - Dantes fazia listas de desejos, de sonhos, de decisões a tomar no novo ano... Agora rio-me dessa infantilidade e dessa pretensão quase divina de tentar comandar os meus dias. Vivo cada vez mais, um dia de cada vez. O melhor que posso, o melhor que sei. Não preciso de quase nada para ser feliz, não tenho ambições materiais e não acumulo más recordações, desejos de vingança ou sonhos impossíveis... Não guardo coisas más dentro do peito, nem tenho facas espetadas no coração - perdoei-me e perdoei a quem tinha de perdoar. A única coisa de que preciso é de tempo, para mim e para os outros. Para os que me amam e fazem de mim uma prioridade, para os que se preocupam comigo e para os que precisam de mim. É esse tempo que me falta para me dar a quem se dá a mim. É esse tempo que espero que 2014 me traga. Isto e claro, um corpo que se mantenha saudável e não me traia com cansaços mesquinhos nem se deixe apanhar por uma qualquer doença com um nome terrível...
E como o futuro a Deus pertence, no presente vou tentando ser feliz. Um dia de cada vez. Afinal, a vida é assim: um dia a seguir ao outro. Todos os dias.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Do Amor


Se te pedirem, amor, se te pedirem
que contes a velha história 
da nau que partiu
e se perdeu,
não contes, amor, não contes
que o mar és tu
e a nau sou eu. 



Fernando Namora, "Poema de Amor"

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

FELIZ NATAL!

A todos os visitantes deste espaço, desejo Amor, Saúde e Paz. Como dizem os nossos queridos irmãos de terras de Vera Cruz, o resto a gente faz...
Um Feliz Natal!

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

É quase Natal...

 
Ela conhece-me quase desde que nasci. Não sei que espécie de laço nos une mas é indestrutível, indiferente aos preços bem mais convidativos das grandes superfícies comerciais, impermeável às ofertas do "pague dois leve três", impassível às ofertas em cartão, em talão, ou aos descontos no combustível... Ela sorri-me e abraça-me quando eu entro, e é um sorriso rasgado que ilumina uns olhos felizes, cada vez mais pequeninos e perdidos numa fina rede de rugas à medida que os anos vão passando. Chama-me querida. Chama-me amor. Um chamar sincero que denuncia um coração bom, uma alma simples e generosa.
Escolhe ela própria as peças de fruta e enquanto conversamos toma-lhes o peso de mansinho, afaga-lhes a pele e vai enchendo as sacas com cuidado e ternura. Conhece as minhas manias (Número par como sempre, não é amor?), os meus gostos (Maçãzinhas ácidas e sumarentas, querida), até os meus hábitos (Umas uvinhas docinhas para debicares enquanto escreves)... Dá-me tudo a provar - mesmo que eu não queira - e regista um peso sempre abaixo do valor ditado pela balança. Mima-me. E devolve-me as minhas memórias...
Hoje quando entrei já tinha a minha encomenda preparada, é assim nestes dias em que os braços não param para atender tanta gente... Só faltavam as nozes, as amêndoas e os figos, ela sabe que eu sou louca por figos e apontou-me os cestos carregadinhos - Prova, amor. São de Trás-os-Montes, deliciosos...!  - E os olhos sorriam, toda ela sorria antecipando a cena de ver-me provar figos de olhos fechados, na memória, como um fogo, ardiam as lembranças  da figueira imponente da casa transmontana dos avós que eu trepava sem medo, tantas vezes esmurrando mãos e joelhos para roubar os frutos mais maduros, as nozes que partia com uma pedra sentada ao sol na eira quente e a amêndoa perfumada e macia forrando o chão do sotão, a secar lentamente na penumbra doce e silenciosa, enquanto a madeira estalava devagar... Provei de tudo e trouxe um pouco de cada qualidade. Sim, paguei mais, muito mais do que pagaria num hipermercado... Gastei mais mas saí mais rica daquela pequenina frutaria de bairro, com as memórias avivadas numa nitidez que faz bater mais forte o coração, a boca a saber a mel e os lábios pegajosos da doçura que roubei à minha infância... Ao Natal da minha infância. 

sábado, 21 de dezembro de 2013

Inverno, outra vez


No ciclo eterno das mudáveis coisas
Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
 
Ricardo Reis, "No Ciclo Eterno" in Obra Poética (Excerto)

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

domingo, 15 de dezembro de 2013

Morrer de Amor (ah, sim)

 
Já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
Mas afinal não morri, como se vê, ah não
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

A gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

Há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
Mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete:- morrer ou não morrer, darling, ah, sim.


 
Vasco Graça Moura, "Blues da Morte de Amor"

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Ó Stora...

 
Estou convencida de que para a maior parte dos alunos - senão para todos -, os professores são pessoas desinteressantes, estagnadas, sem vida ou amor próprio e completamente assexuadas.
E este é o mais poderoso trunfo que poderemos usar na relação com eles. Para ir ao encontro deles. E surpreendê-los.

Pas de deux


Espera um pouco, não adormeças já. Quero ler-te um poema do livro que comprei hoje, é um poema que não entendo e que me apanhou desprevenida. Abri a capa distraída e o arrepio de um verso colou-se-me à pele quando eu folheava ao acaso as páginas macias. Eu sei que é tarde, de qualquer modo espera, vamos abrir aquela garrafa de licor que comprei em agosto na feira de artesanato, queres? Duas pedras de gelo - disse a artesã. Se preferires, há vinho seco que escondi disfarçadamente no frigorífico para uma noite assim. Na lareira a lenha ainda arde, podemos ficar a roer romãs enquanto te falo dos versos que me estrangulam... Ou posso confessar-te, enquanto acendo um cigarro, esta tristeza que não sei contar a mais ninguém, esta tristeza que me vem talvez do jardim despido onde só despontou a sardinheira roxa e o vaso de malagueta que trouxe quase moribundo do horto do costume. O vendedor ia deitá-lo fora e acabou por mo oferecer com um sorriso descrente, o meu grito vermelho adivinhado, que esta semana se fez tão rubro. Tu não sabes, andei lá fora, debaixo das sombras, pisando devagar a capa dura de geada que o sol hoje não derreteu... Talvez se encostasse o ouvido à terra conseguisse ouvir as plantas a nascer, a voz imparável das raízes que se fortalecem e se entrelaçam num destino milenar, e seria menos triste a minha tristeza... Fica, dança comigo, abraça-me e deixa-me pousar o rosto na curva do teu pescoço, ficar assim aninhada no teu cheiro, no calor da tua pele, no cais do teu peito onde o meu coração barco se abriga, e não digas nada... Eu sei que te pareço estranha, mas tantas vezes não me entendo nem entendo a vida... As razões da vida. Acho que já te disse tudo... Sussurro-te só o que finges não saber ainda - adoro dançar descalça... - Há uma música que toca suave, as chamas iluminam o teu rosto. Esta noite, despudoradamente, quero dançar devagar...
Fica mais um pouco, dança comigo... Não adormeças já.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Tempus fugit

 
Não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir  não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir não vou conseguir...!!!!!!!!!
 
A não ser que o tempo pare de voar... 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Obrigada, Madiba

 
Uma boa cabeça e um bom coração formam sempre uma combinação formidável.
 
Nelson  Rolihlahla  Mandela (18 de julho 1918 - 5 de dezembro 2013)

Do Tempo que passa


O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou.

Vergílio Ferreira, in Conta-Corrente

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Duplas Palavras

 
(...) e como estrelas duplas consanguíneas,
luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A semântica do indizível


Aprender o alfabeto da luz, a pronúncia sussurrada da folhagem, estudar apaixonadamente as conjugações estelares, aprofundar o léxico galáctico, mergulhar na semântica universal…

e apesar disso, bastar-me o pensamento de contigo me cruzar para logo emudecer...
 
António Gil, in Obra ao Rubro
 

domingo, 1 de dezembro de 2013

Sementes Daqui

 
Não é porque gosto muito, muito dela; não é porque somos amigas, incondicionalmente e para sempre, traga a vida o que nos trouxer; não é porque a obra necessite de publicidade; é só porque, provavelmente, Sementes Daqui, de Lídia Borges, é o melhor livro de poesia editado este ano. 

Ana Paula Mateus

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Crónicas do Vento Salgado

 
Fotografia de Ângelo Marques

Já não ia lá há muitos meses, talvez desde o fim da primavera... Assustam-me os turistas, a confusão, o barulho cansativo da  cidade cheia de estranhos em pleno Verão... Por isso, hoje quando cheguei senti-me regressada a um lugar onde pertenço, que me abraça como uma casa. Sou assim, de amar lugares como amo pessoas e de lhes sentir a falta como se fossem vozes que preciso de ouvir.
O barzinho redondo é uma construção prefabricada, montada sobre o passeio que se debruça sobre o magnífico porto de pesca e só tem meia dúzia de mesas cá fora. Sentei-me e espreitei lá para dentro, à procura do dono que, aninhado junto de uma prateleira, repunha latas de coca-cola. Ele acenou-me, eu sorri-lhe e fiz o gesto universal de levar a chávena aos lábios. Ele sorriu de volta e levantou o polegar num OK silencioso. Depois virei-me para o mar já com o caderno aberto e a caneta suspensa, inquieta, à espera das palavras. Tentei. Tentei escrever o mar de vidro e o cais negro onde se ancoravam os corpos dos barcos, majestosos como estátuas, com os mastros erguidos para o céu lembrando crucifixos vazios; tentei desenhar num verso  as gaivotas aninhadas, silenciosas, sonolentas na mornidão da manhã; tentei contar dos bancos de areia clara riscados pelas pegadas dos pescadores e da silhueta de um homem e de uma mulher que naufragavam num beijo e se abraçavam contra o cais; tentei poetizar o brilho inclinado dos raios de sol, a luz e as cores do céu, os farrapos de nuvens e o cheiro a maresia no sal do vento... Tudo tentei. Depois pousei a caneta, paralisei o momento para o eternizar e fiquei só a gravar dentro de mim a poesia da cidade à beira-mar... Porque sei que há instantes assim, tão belos e fugazes que se riem até dos versos, tornam-se alados e voláteis, impossíveis de prender numa folha em branco... 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

À velocidade da solidão

 
Amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
Estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
Hoje, vou correr à velocidade da solidão.

Al Berto, in O Medo

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Tão simples...


Quero a delícia de sentir as coisas mais simples.

Manoel Bandeira, in Antologia Poética

sábado, 23 de novembro de 2013

No riscar de um fósforo

 
Alice - Quanto tempo dura o eterno?
Coelho - Por vezes, apenas um segundo.

Lewis Carroll, in Alice no País das Maravilhas
 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Da falta que me fazes


São de nada
tempestades
ante a falta
que me fazes.
 
David Mourão-Ferreira, in Obra Poética


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Na sala dos espelhos


O comentário era anónimo e dizia apenas "Vê-te ao espelho. Vê-te com os teus próprios olhos". Depois tinha uma hiperligação que eu segui, não sei porquê, a medo. Sexto sentido, talvez... Coisa de mulheres, dirão alguns... Coisa de quem se expõe pela escrita, de quem se desnuda despudoradamente, diria eu. Fui. Segui o link e entrei num blogue com mais de setecentos seguidores, fundo negro como o meu, e com o meu título, grosseiramente traduzido. E então li-os, os meus textos. Despedaçados, retalhados alguns, feridos de morte, muitos... Reconheci-os imediatamente, alguns transcritos na íntegra, olhando-me com olhos tristes, as minhas palavras, as minhas frases, as coisas que vou sentindo e sonhando, até as minhas mais antigas memórias... Roubadas. As minhas palavras plagiadas, transformadas, já não minhas, afinal...
Os que me conhecem sabem que para mim o dinheiro nada vale. Uso-o para viver, ganho-o com honestidade e não ambiciono ser rica. Por isso, se me tivessem roubado dinheiro ou assaltado a casa, teria tido menos importância... Agora sei que há uma visitante algures, nesta rede imensa que é a internet, que entra aqui apenas para me espiar, para roubar o que aqui vou deixando nascer, numa atitude de puro desrespeito pela propriedade intelectual... E isso dói-me. Fundo.
Ao anónimo que me avisou, deixo o meu mais profundo reconhecimento. Graças a si, que me alertou, sei que alguém mascarado assina por mim os textos que eu escrevi. Mas a si, que me roubou tudo, não direi nada. As palavras são minhas, e você sabe. Você sabe que eu podia desmascará-la deixando os meus leitores verem com os seus próprios olhos o tanto que me tirou, expô-la ao ridículo, rir-me de si, mas sossegue, nada farei... As palavras são minhas. Ambas o sabemos. A mim isso basta-me. E agora vá em paz para o seu cantinho escrever coisas suas. Se calhar até consegue... E volte sempre que queira. Volte por bem.    

O que dói às aves

 
Com os meus amigos aprendi que o que dói às aves
Não é o serem atingidas, mas que,
Uma vez atingidas,
O caçador não repare na sua queda.

Daniel Faria

sábado, 9 de novembro de 2013

Até já :)


Três aviões. Um pé noutro continente. Outra língua, outro povo, outra raça, outro credo e religião. Outra gastronomia, cheiros diferentes, cores inimagináveis...  Outra escola, outros alunos. O exotismo de um país que nunca imaginei conhecer, onde jamais me imaginei a trabalhar... Revejo o plano proposto e sorrio... Os meus olhos param na quarta-feira, na viagem de balão agendada para as cinco da manhã e o pânico dos voos desaparece como por milagre, deixa de ter importância passar doze horas em trânsito entre aeroportos... Os sonhos realizam-se, sim... E eu sei que as condições atmosféricas não me vão trair, que vão permitir que a bordo de um balão colorido, quase como uma ave, eu veja o nascer do sol nas montanhas da Capadócia.
 
Eu volto já... Volte também.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Na arena das emoções

 
Sei-o agora, só um de nós será vencedor. Quando as luzes se apagarem e o som da noite bater nas vidraças frias, quando os dedos da madrugada me estrangularem a garganta, começará o familiar jogo de morte - na arena das emoções. E um de nós será derrotado. Esmagado. 
Eu. Ou tu. Porque não cabemos os dois dentro do meu corpo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Deserto


Nas ruas cheias de gente
via as pessoas desertas



Manuel Alegre, "Cidade" in Nada Está Escrito

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Porque o mundo é composto de mudança

 
Uma árvore em flor fica despida no outono. A beleza transforma-se em feiúra, a juventude em velhice e o erro em virtude. Nada fica sempre igual e nada existe realmente. Portanto, as aparências e o vazio existem simultaneamente.
 
Dalai Lama

domingo, 3 de novembro de 2013

sábado, 2 de novembro de 2013

No rasto da chuva

 
Às vezes vens no rasto da chuva, de mansinho, como a sombra macia de um entardecer tranquilo. Escorres-me pelos beirais do coração, pousas feito ave no peitoril de uma janela do meu peito que deixei ainda aberta por esquecimento ou descuido... E ficas. Permaneces no meu abrigo enquanto a chuva cai, fazes-te poema dessa líquida canção divina... Depois bates as asas e voas para longe, de novo. E eu, que não nego o voo às aves, deixo-te ir.
Da tua vinda fica apenas a inquietude apertada do silêncio em que me embrulho, uma qualquer pena caída que como um finíssimo estilete ou um punhal de aço, me deixaste enterrada na voz.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Da (eterna) Saudade

 
Saudades, só portugueses

conseguem senti-las bem.
Porque têm essa palavra

para dizer que as têm.

Fernando Pessoa, in Cancioneiro

(À memória dos que amei e que me faltam todos os dias...)

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Adio-me

 
já não te aguardo. adio-me.

valter hugo mãe

O canto dos poetas


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
 
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles, in Obra Poética

terça-feira, 29 de outubro de 2013

(...)

 
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge.

Bernardo Soares, in Livro do Desassossego

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

6 anos :)


Hoje o De Profundis faz seis anos.
Os que me conhecem acham que ele é o meu rosto... Eu sei que ele é o espelho onde me fito na eterna tentativa de me compreender, uma espécie de escadaria que desço até aos confins do que não entendo... 
Seis anos depois, o meu blogue está mais vivo do que nunca, mas mantém-se um humilde espaço de despojamento e entrega. Por isso, aos visitantes que partilham comentários, aos que entram e saem silenciosamente, aos que gastam tempo para me ler, aos que me têm entre os favoritos, o meu muito obrigada! Não tenho muito para oferecer, talvez só a cor mágica de seis velas e a luz do meu mais sincero sorriso. 
Aceitem brindar comigo e sejam muito bem vindos ao ano 7.


domingo, 20 de outubro de 2013

No teu abraço...

A arrumar gavetas mortas, apareceste-me tu de repente, do meio das sombras e do silêncio. Não contava contigo, a sorrires-me do fundo da fotografia antiga de meio corpo, tal e qual como eu te recordo, o vestido preto com bolinhas brancas e a gola de renda de Veneza, caríssima, que tinhas encomendado na retrosaria do mercado e que tu mesma coseste, com pontos pacientes e perfeitos. Sorris-me. E é o mesmo sorriso com que me ensinavas lengalengas e trava-línguas, provérbios e pequenos poemas que ainda hoje recito sem hesitar... Os estranhos labirintos da memória cruzam-se em imagens que eu não sabia que guardava ainda e devolvem-me os teus olhos meigos cheios de luz... Como sabias que hoje eu precisava tanto de ti? Como adivinhaste? Encosto-me à parede e sento-me no chão com a tua foto entre as mãos, roubo-lhe cada detalhe, todos os pormenores... Choro de saudade, no teu colo... E então, vinda cá de dentro, talvez do coração, a tua voz roubada ao passado, repete baixinho, num embalo que me apazigua, todo cheio de doçura:
 
Rei, Capitão,
Soldado, Ladrão,
Menina bonita
do meu coração...   
 
Faço-me menina, outra vez... E a noite veste-se de silêncio só para te escutar...

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Dias assim


Há dias em que morro de amor.
Nos outros, de tão desamado,
morro um pouco mais.

Casimiro de Brito, in Arte de Bem Morrer
 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Palavras desenhadas

 
desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas, os sinais, a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor
e diz-me o que de mim amaste
noutros corpos, noutras camas, noutra pele
prometo que não choro
mas repete as palavras um dia minhas
que sem querer misturaste nas tuas
e levaste com as chaves de casa e os documentos do carro
e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste.

Alice Vieira, in Dois corpos tombando na água


Da leitura

 
O acto de ler reabre feridas. Nos livros
em que isso acontece, com frequência,
poderia ao menos haver um aviso na capa;
assim como se faz com as carteiras de tabaco,
embora se saiba que poucos deixam
de fumar
por isso.
 
Teresa M. G. Jardim, in Jogos Radicais

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Palavras fechadas

 
Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.


Pedro Mexia, "As Gavetas"

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Não chores

 
Não chores. Prometo virar-me do avesso, fazer das tripas coração, revolver céus e terra, encontrar para ti o pote de ouro no fim do arco-íris... Prometo. Por favor, não chores. Não chores mais. As tuas lágrimas pesam-me como pedras no coração, são ácido que me corrói, que me rasga a pele, penetram fundo dentro de mim, misturam-se com o meu sangue e envenenam-me, matam-me aos poucos de tristeza... Deixa-me abraçar-te e contar-te o quanto te amo, o pilar que és para mim, minha terra, chão, raízes, o eixo que faz mover o centro do meu mundo... Não contes os dias... Não os contes. A tua matemática esmaga o resto da minha alegria, não vês...? Da morte nada sabemos, hoje é ainda vida e amanhã fará sol... Não chores. Olha, vou vestir-te um vestido bonito, o teu preferido, e se as tuas pernas não quiserem andar vou carregar-te ao colo como tu fazias comigo quando eu era pequenina, queres? Vou meter-te no meu carro e levar-te a ver o mar, as gaivotas, sentamo-nos na areia húmida a sentir o vento na cara, de olhos fechados... Quero que sintas a maresia, eu sei, tens tantas saudades do cheiro do mar! Jura-me que não choras mais, que não me falas outra vez da estrada cada vez mais curta, da curva onde deixarei de te ver para sempre, do teu nome repetido em silêncio nos dias vazios de ti... Também tenho tanto medo, sabes? Pudesse eu subir montanhas, atravessar rios e mares, arrancar todas as estrelas do céu para te tirar essas dores e fá-lo-ia... E não temas, se as tuas pernas não quiserem andar ou os meus braços não te conseguirem carregar, prometo trazer-te os meus olhos cheios de água salgada para que neles possas encontrar o mar. Não chores mais... Por favor, não chores.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Sem margens

Escrevo. O cão rastejou aos poucos pela porta entreaberta e deitou de mansinho a cabeça quente nos meus pés. Os olhos de mel olham-me suplicantes... A chuva parou. No facebook os meus alunos comentam a foto que alguém tirou à socapa numa sala de aula. Não sabem que eu estou aqui. Ouço Natalie Cole, até à exaustão. Escrevo. O texto solta-se devagar, resvala, escorrega, imparável, quer ser rio de prosa nos meus dedos... Fecho a janela do facebook, deixo ficar o cão. Roubo ao coração aquilo que sinto... Hoje vou conseguir escrever. Sem margens. Sem parar.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Uma palavra



Por vezes,
de um dia que vivemos,
de um filme, de um poema
por vezes de alguém,
conservamos uma palavra
Não saberemos explicar porquê,
mas essa palavra aloja-se dentro do nosso pensamento,
atravessa vagarosamente os nossos silêncios,
fecha-se à chave dentro de nós.

José Tolentino de Mendonça 


sábado, 28 de setembro de 2013

Da poesia

 
quando o poema é bom
não te aperta a mão: aperta-te a garganta


Ana Hatherly

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Pacto de incêndio

 
Segura o meu corpo ferido
não me deixes cair
 
Sempre soube
quando fizemos
um pacto de incêndio
que só Deus
tem umas mãos tão grandes
como as tuas
 
É outono outra vez
Promete
que não me deixas cair


terça-feira, 24 de setembro de 2013

A negro


Estendo as palavras
na seda do papel
na sede do texto
que há-de vir

ouço-lhes o respirar
deixo-as cair
na redondez do silêncio

e tombam vazias
no escuro
que há em mim

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Ó Stora...

A meio da tarde o meu filho mandou-me uma sms a contar que o Ramos Rosa tinha morrido. Li-a num intervalo entre duas aulas e emudeci... Dentro de mim, declamava o "Não posso adiar o amor", tentava descobrir se ainda o sabia de cor... E minutos mais tarde, eram mais lentos, mais arrastados os meus passos enquanto subia as escadas até ao segundo piso para ir dar a última aula do dia. Demorei-me à porta da sala, procurando as chaves dentro da pasta, envolvida pelas risadas alegres e pelas vozes dos alunos, também eles já cansados dos stores e dos toques, dos livros e dos intervalos... Cá dentro era ainda o poema do Ramos Rosa, atravessado na garganta, arranhando-me as sílabas, resgatando o resto da minha alegria. Ou da minha energia, não sei bem... E depois entramos e eles demoraram a serenar, é sempre assim a última aula, mais barulhenta, mais cansativa... Cumprimentei-os. Pedi-lhes silêncio. Sorri-lhes. Disse-lhes que lhes queria oferecer um poema. E disse-o de rajada, de um fôlego, sem hesitações ou pausas ou enganos... No fim ficaram em silêncio, atirando-me olhares curiosos e perguntei-lhes se conheciam o António Ramos Rosa. Não, nunca tinham ouvido falar. E pronto, foi o mote para lhes falar do autor, do lindíssimo livro Viagem através de uma nebulosa, de metáforas e de imagens, de heranças literárias e de património e riqueza cultural... Também falamos de morte e de vida, do amor que se adia, de solidão e de felicidade. Falamos de escolhas e de poesia. Falamos do Urbano Tavares Rodrigues, da Rosa Lobato de Faria, da Matilde Rosa Araújo e do David Mourão-Ferreira... falamos de escritores desaparecidos e de livros inesquecíveis... Alguns prometeram pesquisar e trazer um poema na próxima aula. Outros descobrirão quem foi António Ramos Rosa e contarão à turma. Talvez façam ainda um trabalho de grupo e uma coletânea de poesia... Falou-se num blogue da turma, criado para encerrar tesouros perdidos...
E depois tocou. Saímos e desci as escadas atrás deles, ouvindo-os falar ainda do Ramos Rosa, trocando ideias, distribuindo tarefas, negociando e organizando-se para a seleção de textos... Não lhes pedi nada... Só lhes abri caminho, só lhes mostrei que há pessoas que não merecem ser esquecidas, há pessoas a quem devemos a pureza da poesia e o respeito pela língua que nos une, esta pátria onde as armas são apenas as palavras, carregadas com as balas das emoções.


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa, in Viagem Através de uma Nebulosa


domingo, 22 de setembro de 2013

OUTONO


É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

Eugénio de Andrade, in Obra Poética