terça-feira, 29 de maio de 2018

Crónicas do Vento Salgado


Soube hoje, finalmente, todos os pormenores. É uma daquelas histórias que preferimos que não nos contem, que gostamos de ignorar para que não nos roube o apetite, a alegria de cantar em tom desafinado uma canção da moda enquanto esperamos, no meio da cidade, que o sinal fique verde para arrancarmos finalmente, para irmos às nossas vidinhas - o salto rápido à peixaria, à frutaria, à lavandaria, antes de entrarmos no conforto dos nossos pequenos mundos. É uma história que nos esbofeteia e faz com que o café de repente se torne amargo, que desvaloriza o facto de a nossa equipa de futebol ter ganho o campeonato, de termos acertado três números no totoloto, de o preço da gasolina ter baixado e de o detergente da roupa estar com uma promoção imbatível. Dura, esta história que hoje transformo em crónica, pôs-me uma pedra no coração. E é uma pedra pesada, pesada, pesada.
Soube hoje que afinal de contas, ele não era russo, mas sim moldavo. De uma cidade cujo nome ninguém consegue pronunciar. Um nome, apenas. Distante. Um nome de cidade cheio de consoantes fricativas sibilantes. Ele, pelo contrário, tinha um nome simples: Yuri. Tinha um rosto redondo e uns olhos azuis tímidos, mas cheios de uma luz bondosa. Trinta e tal anos, cabelos louros quase brancos. Toda a gente gostava do "russo". Sabia-se que tinha vindo para Portugal há pouco mais de um ano, numa primavera cheia de promessas. O "russo" só tinha um objetivo: ganhar dinheiro para trazer para cá a mulher e acabarem juntos os dias neste cantinho à beira-mar. Trabalhava como um mouro a aceitava tudo o que lhe davam - roupa, comida, mobílias velhas que recuperava com esmero e mestria. Toda a gente o adorava - repito - e chamavam-no frequentemente para arranjar uma torneira que pingava, para cortar relva num jardim, para arranjar uma persiana, para mudanças e bricolage de toda a espécie. O "russo" sabia fazer tudo. E o tudo que sabia fazer, fazia-o sorrindo e cantarolando, respondendo num português claro, num tom de voz suave, como se pedisse desculpa a todo o instante. 
Foi a vizinha do lado que deu o alerta, num dia de chuva ao fim da tarde. Na casa do "russo", o rádio tocava ininterruptamente desde a noite anterior e ele ainda não tinha saído à rua nem atendia a campainha. Entraram os bombeiros depois da porta arrombada, mas já não havia nada que alguém pudesse fazer por ele. Na banheira cheia de água, o corpo do "russo" estava azul e, preso ao chuveiro, havia um cinto a esganar-lhe a garganta. Os olhos maravilhosos estavam escancarados e fitavam um céu que já só ele via.
Soube hoje os pormenores. O "russo" tinha juntado um dinheirinho e tinha chamado a mulher. Mas um ano e tal é muito tempo e ela tinha-lhe dito que não, que não viria. Ela tinha-lhe dito que já não queria ser a mulher dele. 
Quem o conheceu, não se conforma com esta partida silenciosa e solitária do "russo". Quem o conheceu, gostou daquela doçura, daquela timidez de quem vive clandestinamente num país que não lhe deu um cartão de cidadão. Em Portugal, o Yuri não existia. Era apenas mão de obra barata, pau para todo o serviço, e agora é um corpo na morgue que ninguém reclama. O Yuri merecia um pedaço de terra onde o seu corpo se deitasse. Merecia saber que no país onde sonhou envelhecer e onde escolheu morrer, todos o adoravam. Merecia que lhe contassem que não fazia mal se a mulher já não o queria - o mundo está cheio de mulheres que sabem amar, que saberiam amá-lo. O Yuri merecia saber que os vizinhos estão inconsoláveis e quase juram que ainda ouvem o rádio tocar dentro da casa dele pela noite dentro. O Yuri não contou quase nada da vida dele e o que contou não foi o suficiente para se perceber a sua dor, a sua solidão, o desespero do túnel negro em que entrara. E com a sua partida, enegreceu os olhos de muita gente boa que lhe queria bem - disse-me o dono do café, que me contou tudo isto. 

(Deixo-lhe flores... estas flores. Ao que sei, eram as que ele achava as mais belas).