sábado, 31 de maio de 2014

L'Aquila


Em abril de 2009, a cidade de L'Aquila foi o epicentro de um sismo de 6,3 graus na escala de Richter que causou 309 mortos, mais de 1000 feridos e deixou centenas de edificações total ou parcialmente destruídas. Os professores e alunos italianos que conheci em Barcelona são pessoas de profundos silêncios e olhares perdidos. Pessoas sem risos abertos, só breves esboços de sorrisos com sombras tristes... E nem podia ser de outra maneira. Como se esquece uma coisa destas? Como se acredita outra vez, com força, num Deus que em segundos nos rouba pai, mãe, cônjuge, filhos, alunos, nos arrasa a casa, a escola, a rua e a cidade onde vivemos? Os habitantes de L'Aquila têm os olhos guardados por memórias e saudades. Sentem-se abandonados. E sofrem.
A escola que me receberá é um pavilhão pré-fabricado, provisório há cinco anos. Lá dentro, alunos, professores e funcionários têm de fazer de conta que a vida continua, que aprender é necessário porque há um amanhã para preparar. Estão contentes e animados com a nossa visita e embelezaram as frágeis paredes com trabalhos sobre Portugal e a cidade da Póvoa de Varzim. Talvez tenham esquecido por momentos o pesadelo do passado e arrancado o luto, ignorado as cicatrizes nos corpos e almas de cada um.
Eu, apesar do aperto no peito, estou preparada. Daqui a umas horas quando chegar a L'Aquila, sei que o que me aguarda já não é a maravilhosa cidade que vejo na fotografia e que me levarão a conhecer muitas ruínas... Que o tempo usado será o pretérito perfeito... Mas levo na bagagem a esperança de lhes fazer acreditar um pouco que Deus é Pai e não os abandonou, que é possível ainda conjugar todos os verbos no futuro. 

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Para lá da pele



ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
 
Al Berto, "Recado" (excerto) in Horto de Incêndio

quarta-feira, 28 de maio de 2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

Por dizer


Havíamos de falar desta luz quebrada, do cheiro doce e intenso das últimas glicínias, da maneira estranha que tenho de derrubar paredes no silêncio em que me escrevo. Havíamos de regressar ao fim do dia no minuto breve em que a tarde se inclina e derrama horas tranquilas. Eu ensinar-te-ia as cores que não vês e pousaria nas tuas mãos as sílabas do meu poema inacabado para que tu as ordenasses e para que pudesses prender os versos soltos no corpo das estrofes. Havíamos de ter tempo. Havia de haver outro tempo. Meu amor.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Da Beleza

 
Somos as coisas que moram dentro de nós. Por isso há pessoas que são bonitas. Não pela cara, mas pela exuberância do seu mundo interno.

Rubem Alves

domingo, 25 de maio de 2014

Mar. Amor.

 
Nasci a meio de julho de um verão escaldante. A minha mãe conta que, fragilizada pela gravidez de risco, pelo parto difícil, só pedia a Deus que eu sobrevivesse... E que dormisse. Mas eu não dormia. Chorava de dia e de noite e comia menos que um passarinho... Não sabiam o que me fazer, o médico estranhava aquela criatura que parecia reclamar por estar viva e não fazia diagnóstico algum. As vizinhas davam palpites: é do calor, coitadinho do anjinho...; o leite da mãe não presta; tem algum bruxedo...; melhor batizá-la já, que não é deste mundo... Os primeiros dias da minha vida foram passados assim, de colo em colo para que os braços se revezassem e se pudesse dormitar e recuperar forças.
A meio de agosto, num dia de calor infernal e numa vida distante sem ar condicionado ou ventoínhas, eu gritava tanto que ao fim da tarde a minha mãe e a minha avó agarraram em mim e levaram-me para a rua. Andaram sem destino e acabaram junto ao mar, onde a brisa se fazia mais fresca e se podia respirar. Deitaram-me na areia, tiraram-me a roupa. Levaram-me até à borda da água e molharam-me com água do mar. As mãos, primeiro e a medo... E eu, que tinha chorado o caminho todo, calei-me. Subitamente, surpreendentemente, calei-me. Depois molharam-me os bracinhos, as pernas, todo o meu corpinho magro e exausto de tanta lágrima, de tanta vigília, de tanta fome. A minha mãe lembra-se que ela e a minha avó se entreolharam de espanto e olharam o mar com uma gratidão abençoada. Não sei quanto tempo ali estivemos, as três, à beira da água. Sei que se fez tarde e anoitecia... E então, elas tiveram medo de sair dali, medo que tudo recomeçasse... Mas eu nunca mais chorei. Adormeci no caminho de regresso e em casa bebi o leite todo que me deram. Claro que nesse verão regressei à praia todos os dias, cumpri os ritmos do sono de um recém-nascido, engordei e fui um bebé normal.
No ano seguinte ainda não tinha um ano quando regressei ao mar, num tempo em que se fazia quatro meses de praia e não se ouvia falar de protetor solar. A gatinhar primeiro, depois a andar, corria para as ondas mal me punham no chão. Foi o verão de todos os infernos porque não podiam tirar os olhos de cima de mim... Eu fugia, completamente hipnotizada por aquele azul, talvez perseguindo um estranho e misterioso chamamento que só eu ouvia... O chamamento poderoso que ainda hoje ouço. Talvez só o mar saiba o que é que eu tinha... Talvez  seja esse segredo guardado nas ondas que me faça, ainda hoje, serenar os demónios, secar todas as lágrimas...  
 
(A imagem que deu corpo a este texto foi-me gentilmente enviada por um leitor identificado, que parece entender a minha paixão pelo mar, e a quem agradeço com a oferta de um punhado de memórias. Esta noite, escrevi-me. E escrevi alguns silêncios... Muito obrigada!)

sábado, 24 de maio de 2014

Onda Nuvem Água

 
Encostei-me a ti,
sabendo que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem
depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso,
e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar,
quando caí.

Cecília Meireles

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Incurável

 
O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate – mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma.

Bernardo Soares, in Livro do Desassossego


O único texto que faz sentido, hoje - com a alma a transbordar de sonhos...
Hoje ninguém me dirá que não são possíveis. Hoje ninguém se atreverá.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Palavras absurdas

 
Garanti-nos, meu Deus, um pequeno absurdo cada dia.
Um pequeno absurdo às vezes chega para salvar.


Alexandre O'Neill (excerto)

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Ó Stora...

 
Depois de tantas aulas a falar-lhes da mais bela história de amor da literatura portuguesa - a de Pedro e Inês -, depois de termos varrido os textos de variadíssimos autores e de ter sido levada à exaustão a cinematografia, a pintura, a escultura e até a música sem que o tema se esgotasse, achei que estavam prontos. Pedi-lhes um texto que definisse o Amor. De imediato choveram os protestos, as reclamações, as indignações (Ó Stora, que difícil...!!!) e as perguntas da praxe: em prosa ou em verso? quantas linhas? quantas palavras? quantas páginas? E eu, que sou contra textos a metro, deixei-os livres para escreverem o que quisessem. Acalmaram por fim e evocaram a memória ou a imaginação, os autores com que os saturei estes dias, as versões do mesmo tema, como variações de uma só música. Começaram a escrever. É então que gosto de os observar, de olhos distantes ou roendo as canetas, tamborilando impacientes dedos sobre as folhas de papel, escrevendo e riscando, refazendo, corrigindo o pensamento... Gosto de os ver escritores. Gosto de os ver criar.
Estava curiosa, confesso... e não me desiludiram, os meus alunos... Sim, definiram o Amor, sem sombra de dúvida: um sentimento verdadeiro e infinito que respeita a individualidade de cada ser humano; que torna as pessoas sinceras e autênticas; que as fortalece e une contra a solidão; que resiste a todas as forças oponentes - a saudade, a clandestinidade, a censura, o julgamento dos homens e dos deuses; que dá vida e que perdura para além da morte. Escreveram coisas belas, muito belas. Elogiei-lhes os trabalhos, corrigi muito pouco ou quase nada... Depois fiquei a vê-los sair no final da aula, num bando alegre e barulhento, tão jovens e cheios de sonhos... secretamente desejando que a vida lhes dê o maior tesouro que afinal de contas, todos procuramos: um amor feliz. 

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Apontamento

 
Diz-me Bom dia com um sorriso sempre aberto de claridade. Nunca falamos, enquanto ali estou de pé, por breves instantes, a tomar o café que ela me serve na medida exata e sem açúcar. Às vezes canta baixinho acompanhando com voz bonita a música que passa na rádio sintonizada numa estação local, e vai fazendo rebrilhar os metais e os vidros irreprensivelmente imaculados. Tem uma tatuagem no pulso com uma frase, gravada em duas linhas, que nunca consegui decifrar. Hoje prendeu os cabelos por causa do calor e os olhos doces destacavam-se mais ainda. São olhos feitos de sorrisos, como os dos lábios. E quando pouso a chávena e me despeço, atira-me outra vez com a luz do seu sorriso, diz-me Até amanhã , uma despedida sentida e sincera nesta pausa breve que abre de par em par as portas do meu dia.  

terça-feira, 13 de maio de 2014

Coisas pequenas

 
São coisas pequenas, sabes...? Coisas que se arrastam nos dias mais longos, na luz tardia, dourada, que espreita ainda pela janela da cozinha enquanto jantamos, coisas que não tiro quando me dispo e ficam comigo, encostadas ao meu rosto, sussurrando inquietudes debaixo do travesseiro. Pequenas coisas: o vento que enrolou a roupa no varal e encheu de sede as rosas... O peixe que deixei queimar enquanto lia os trabalhos dos miúdos... O velho que me bate à porta a pedir esmola e que tem a boca cheia de feridas... Coisas de nada, que se prendem a mim de mansinho e me fazem subir as escadas numa lentidão desalentada. Coisas que me entristecem, não sei bem porquê: os bilhetes esgotados para aquela peça de teatro que queria ver contigo em Lisboa; o texto que não sei escrever e que tenho que entregar até quarta-feira à noite; a festa onde não tenho vontade de ir; o meu poema inacabado sobre a morte de um poeta; as saudades de ouvir ecoar no chão da casa, os passos da minha filha; o meu rosto pálido, do outro lado do espelho; o frasco quase vazio do perfume que me deste... Coisas invisíveis, pequeninas, que empurram as palavras para longe e me enchem de silêncios... Coisas que não servem para fazer poesia, entendes...?