terça-feira, 31 de janeiro de 2012

No fundo de janeiro

Fecho suavemente a porta deste mês que termina... Janeiro é o mês em branco em que acreditamos que tudo é possível... Mas foi o mês que me arrancou as palavras, me silenciou e me roubou a luz. Janeiro atirou-me para dentro de mim, da minha solidão, foi em janeiro que baixei a guarda e pesei abandonar a escrita para sempre. Porque às vezes não temos forças... E sentimos medo... Muito medo. Mas isto da escrita é como um vício, uma dependência agridoce difícil de abandonar, as palavras assaltam-me de sopetão, montam-me uma cilada e sufocam-me até que as liberte das grades que existem algures, cá dentro... Elas ganham, e eu rendo-me sempre. 
Em janeiro percebi que está tão longe o meu sonho azul de comprar um moinho, não um moinho qualquer, é aquele moinho velho que se ergue sobre as dunas claras à saída da curva apertada de uma solitária estrada de paralelos... De lá de cima vê-se o mar  e ao entardecer o sol aninha-se meigamente para morrer nos céus incendiados... O mundo é um lugar mais belo visto das janelas do meu moinho de pedra...
Neste longo janeiro, rezei para que um cirurgião fosse guiado pela mão de Deus e pusesse novo o coração dentro do peito de uma pessoa que amo muito... Ela sobreviveu. Eu também. Só por isso, janeiro valeu a pena. 
Faço as pazes com os dias... Impossível não ver a luz inesquecível que brilha no fundo deste janeiro que termina.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Palavras roubadas


Antes de julgar a minha vida ou meu caráter...calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz.
Então só assim poderá julgar.
Cada um tem a sua própria história...

Clarice Lispector

domingo, 29 de janeiro de 2012

Da vertigem do corpo

As tuas mãos nas minhas.
O incrível miraculoso de eu dizer o teu rosto.
O ardor de um meu dedo na tua pele. Na tua boca.
O terrível dos meus dedos nos teus cabelos.
O prazer horrível até à morte da minha entrada no teu corpo.

Vergílio Ferreira

sábado, 28 de janeiro de 2012

Do Amor


E se aprendemos que precisamos de amor e depois não o temos? E se nos apoiamos nisso? E se construimos a nossa vida em torno disso e depois tudo se desmorona? Conseguimos sobreviver a esse tipo de dor? Perder o amor é como uma lesão num orgão. É como a morte. A única diferença é que a morte termina. Isto...? Isto pode durar para sempre.

in Anatomia de Grey

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Entrar em ti



Entrar em ti através do silêncio. Deixar aninhadas no teu corpo as minhas palavras, todas as que tenho, enroscadas nos teus lábios como se fossem um presente que possas respirar quando eu partir. Entregar-te as palavras, embrulhadas em vazio, feitas de luz apenas. Irás lê-las no escuro da tua solidão, quando eu me for. Eu sei. E sentirás o vento de que te falo, cheio de sal e de espuma das ondas que se desfazem no corpo gelado e frio dos rochedos, saberás ler as estrelas e navegar nos mares cujas rotas não esqueceste ainda... 
Só sei entrar em ti assim, pela porta do silêncio, tão pesada no meu peito, tão frágil e insegura na ponte que te encontra... Por isso, não digas nada. Estende-me o silêncio. E não finjas sequer que me viste entrar.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Palavras roubadas


Não te acostumes com o que não te faz feliz, revolta-te quando julgares necessário. Alaga o teu coração de esperanças, mas não deixes que ele se afogue nelas.

Fernando Pessoa

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Crónicas do Vento Salgado


Andam a podar as árvores na minha cidade. Os podadores vestem coletes fluorescentes e deslocam-se com baldes, tesouras, escadas e cordas, juntam-se em grupos ruidosos e o seu gargalhar enche de confusão a rua que cintila preguiçosa ao sol da manhã macia. Reparo num que trabalha só, em frente à janela do café onde escrevo. É velho, tem as mãos grossas, enodoadas, a pele tisnada pela rudeza do tempo, sulcada de rugas fundas. Encosta com cuidado a escada ao tronco da árvore que vai podar e sobe sereno, acariciando o tronco fino que oscila num ligeiro queixume. Finalmente no cimo, olha demoradamente os ramos tenros e afaga-os com a ternura que só sabem ter os que amam as coisas vivas. Inclina a cabeça e fala com a árvore, como se lhe pedisse desculpa pelos golpes que vai proferir. Os outros, mais rápidos, provocam-no, troçam do ritmo lento do seu trabalhar, mas ele persiste na solidão da sua meiguice, começa a cortar com calma e carinho os galhos certos, os que desviariam os ramos e desequilibrariam a árvore tornando-a mais frágil. Impassível aos gritos dos mais jovens, parece esculpir a copa, com o olhar absorto de um artista que modela a sua criação. Ao contrário do resto do grupo, não deixa cair os rebentos desamparados no betão, ampara-lhes antes a queda com as mãos embrutecidas que parecem aves num adejar cheio de música e vai enchendo o balde preso ao escadote com os destroços verdes clarinhos. Parei há muito de escrever e fico a olhá-lo fascinada, seguindo a rota dos dedos grossos com as unhas negras cheias de terra, presa ao feitiço dos gestos de amor do velho que poda as árvores com a ternura com que uma mãe entrança os cabelos da filha.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

ONLINE


Há uma primavera que se adivinha debaixo do chão deste janeiro longo que escorre devagar. É o mês de todas as promessas, com a agenda ainda vazia de datas impossíveis, onde todos os dias podem ser horizontes de serenidade. Só em janeiro é possível acreditar que agarraremos a vida, pressentindo debaixo dos passos os bichos vivos que rastejam e as sementes que rasgam a terra com os seus braços verdes e frágeis ainda, à procura do vento e do sol.
Em janeiro podemos renascer - acreditamos nisso - contando os minutos de luz que crescem nos entardeceres cada vez mais tardios, incendiados de esperança. E depois, sabes, há os melros que voltam e as azáleas que rebentam nos canteiros molhados... Sim, em breve será primavera de novo, talvez a vida pareça sorrir também por causa disso... E desejamos então voltar a acreditar. Em janeiro queremos muito sentir que o ano será bom só porque também não desistiram as aves que dançam no azul em revoadas felizes, ou porque estamos cansados de adiar a vida, de mentir para dentro da pele.
Até a lua o promete, uma lua enorme e branca, com o ventre cheio do luar mais lindo do ano inteiro... Talvez seja o luar de janeiro a promessa que faltava de que a primavera chegará em breve, de que é possível, afinal de contas, acreditar que não desaprendemos, que sabemos ainda renascer.  

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O fio da Felicidade


A mulher parou para ouvir o silêncio. Respirou devagar o tempo suspenso por um fio, o fio da felicidade, tão ténue e tão frágil, tão difícil de agarrar... Sentiu vontade de prender esse instante entre os dedos das mãos, de o gravar a fogo na memória para mais tarde lhe iluminar a aridez dos dias solitários. Caminhava devagar atenta ao piar dos morcegos e ao negro das suas asas que riscavam velozes a escuridão dos céus. Nas suas costas, a majestosa catedral acendera todas as luzes e fazia-se presente como uma testemunha fiel e silenciosa dos amores que nunca foram, dos que permanecem sagrados, intocáveis, sem sombra de culpa ou de pecado. Os amores imortais.
Fora nesse local que ele lhe dissera o quanto a tinha amado, que lhe contara finalmente do amor guardado no peito como um tesouro fechado a sete chaves e que o abismo dos anos não esbatera. Um amor que levara para todos os cantos onde estivera e que o acompanhara nas horas felizes e nas mais dolorosas. Um amor feito só de uma saudade infinita e de memórias que não se apagavam. Nunca se apagavam.
A mulher voltou-se e olhou a cidade ao longe, estendida aos seus pés. Sentia-se feliz naquele local sagrado. Há lugares assim, feitos só de silêncio e de solidão, como páginas que nunca foram lidas e permanecem suspensas no livro da vida... Lugares onde se confessam amores eternos e onde se promete não regressar com mais ninguém.