terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Crónicas do Vento Salgado


Andam a podar as árvores na minha cidade. Os podadores vestem coletes fluorescentes e deslocam-se com baldes, tesouras, escadas e cordas, juntam-se em grupos ruidosos e o seu gargalhar enche de confusão a rua que cintila preguiçosa ao sol da manhã macia. Reparo num que trabalha só, em frente à janela do café onde escrevo. É velho, tem as mãos grossas, enodoadas, a pele tisnada pela rudeza do tempo, sulcada de rugas fundas. Encosta com cuidado a escada ao tronco da árvore que vai podar e sobe sereno, acariciando o tronco fino que oscila num ligeiro queixume. Finalmente no cimo, olha demoradamente os ramos tenros e afaga-os com a ternura que só sabem ter os que amam as coisas vivas. Inclina a cabeça e fala com a árvore, como se lhe pedisse desculpa pelos golpes que vai proferir. Os outros, mais rápidos, provocam-no, troçam do ritmo lento do seu trabalhar, mas ele persiste na solidão da sua meiguice, começa a cortar com calma e carinho os galhos certos, os que desviariam os ramos e desequilibrariam a árvore tornando-a mais frágil. Impassível aos gritos dos mais jovens, parece esculpir a copa, com o olhar absorto de um artista que modela a sua criação. Ao contrário do resto do grupo, não deixa cair os rebentos desamparados no betão, ampara-lhes antes a queda com as mãos embrutecidas que parecem aves num adejar cheio de música e vai enchendo o balde preso ao escadote com os destroços verdes clarinhos. Parei há muito de escrever e fico a olhá-lo fascinada, seguindo a rota dos dedos grossos com as unhas negras cheias de terra, presa ao feitiço dos gestos de amor do velho que poda as árvores com a ternura com que uma mãe entrança os cabelos da filha.

2 comentários:

Lídia Borges disse...

Lindo demais! Só os teus olhos poderiam ver tão longe.

É preciso adubar bem estas "Crónicas do Vento Salgado" que são poemas com gente bonita por dentro.

Parabéns!

Beijo meu

Anna disse...

Obrigada, querida :)

Beijo e saudades...