quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Fernando Pessoa, 13/06/1888 - 30/11/1935


As Vozes de Fernando Pessoa silenciaram-se há 82 anos.
E conheço poucos versos tão belos como estes, da estrofe final da "Ode Marítima":

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Fernando Pessoa, in "Ode Marítima"

terça-feira, 28 de novembro de 2017

(...)


E entreguei-me - Terás percebido isso? Deixei de saber quem era. Continuo a precisar de ti para existir. Para dormir.

Inês Pedrosa, in Fazes-me Falta

domingo, 5 de novembro de 2017

Cansaço...


Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Adélia Prado, in Bagagem

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Nunca partias


Era de noite e nunca partias.
Deixavas o teu cheiro nos lençóis
o suor do teu corpo
sobre as minhas ancas mornas
e um cansaço feliz,
nessas noites em que ficavas.

Nunca mais partias.
Encostado à minha nudez,
até que o canto das aves
rasgasse a manhã,
o teu desejo ficava comigo,
a querer ser barco.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Do Tempo que passa


Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou.

José Tolentino Mendonça, in A Noite Abre Meus Olhos

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Ó Stora...


Há alguns dias que não aparecia, mas hoje chegou cedo. Vem sempre só, senta-se no sofá do canto e fica uma hora quieto, a olhar as estantes carregadas de livros, só de vez em quando atirando os olhos pela janela, talvez para espreitar as aves. Registei a entrada: nome, número, turma, objetivo da ida à biblioteca. Foi desnecessário ouvir a resposta, pois que eu já a sabia - passar o tempo. Não gosta de conversar e responde-me com monossílabos, embrulha-se naquele estranho silêncio e ali fica, olhando vagamente as prateleiras, tamborilando os dedos ao som das teclas do meu computador. Descobri que chega todos os dias à escola uma hora antes da aula porque aproveita a boleia do pai. Estamos sempre sós àquela hora da manhã e hoje perguntei-lhe, mais uma vez, se não queria ler um livro. Como sempre, a resposta saiu veloz - Eu não, detesto ler! Detesto livros! São uma seca...!
Não comentei. Esperei alguns minutos e perguntei-lhe se não gostaria de me ajudar... Eu tinha tantos livros para arrumar, tantas requisições da véspera... E depois, ele era mais leve do que eu, poderia subir mais facilmente os degraus do escadote, sem tonturas, e arrumar tudo mais rapidamente... Levantou-se lentamente, curioso, seduzido. Subiu o escadote, num misto de surpresa e agrado, e agarrou o primeiro livro que eu lhe estendia, para o colocar na prateleira indicada. Com os braços cheios de livros, eu ia dizendo - Este é na da esquerda,  estes dois vão lá para cima, os dicionários ficam ao lado dos outros, na prateleira do meio... 
Depois dos livros arrumados, já não regressou ao sofá. Ficou a rondar-me disfarçadamente e disparou a pergunta: Ó Stora, já leu estes livros todos? Nunca mais parámos de conversar. Respondi-lhe que não - Cruzes, Deus me livre!- expliquei-lhe que nem sequer gostava de todos, só de alguns, a maior parte era uma seca...! Levei-o à estante da banda desenhada, depois à da poesia, fiquei a vê- lo passar o dedo pelas lombadas, a folhear as páginas, num quase afago... - Um dia talvez comece a ler um livro... Talvez um de poemas... - sussurrou meio envergonhado. 

A campainha tocou e ele sobressaltou-se. Pegou na mochila, despediu-se e antes de sair, perguntou a medo: Amanhã posso ajudar outra vez a arrumar os livros?
Vi-o correr para as aulas: uma criança estouvada no seu caminhar, um passarinho a conquistar o mundo... Um futuro leitor apaixonado - aposto eu, com toda a segurança.

sábado, 21 de outubro de 2017

10 anos...!


O De Profundis faz hoje 10 anos...!
Também há dez anos chovia - lembro-me bem -, a tarde estava escura e eu estava triste. Pensei - Porque não? - e comecei a medo: a escolha do modelo, a definição das cores, das imagens, do texto de abertura, o preenchimento dos dados do perfil... A medo, sempre. 

Dez anos depois, não sou a mesma mulher, nem poderia sê-lo. Nem quereria sê-lo. Para além das trivialidades que não me fazem sofrer (tenho mais rugas, mais peso, pinto mais vezes o cabelo), sinto-me hoje mais bela do que há dez anos atrás. Não mais bonita. Mas mais bela. E já não luto contra fantasmas - deixo que eles me visitem, se sentem do outro lado da mesa enquanto escrevo e me olhem com os seus olhos de pedra.  

Dez anos depois, sou mais doce, tenho menos pressa, deixei de esmurrar os muros que me emparedam, deixei de tentar subir com os pés nus as paredes lisas do poço onde caí. Estou mais serena... e menos dramática. 
E por outro lado, dez anos depois, tanta coisa está igual...! O motivo que me levou a criar este blogue, por exemplo, é o mesmo motivo que me leva a mantê-lo vivo e ativo. Nestes dez anos tive outros blogues, encerrei outros blogues, só o De Profundis continua comigo, um navio alado carregado de fantasmas de olhos negros, sem fundo, que navegam ao meu lado e não me atrapalham o marear. Só o De Profundis continua a ser o cais de partida e de chegada, o par de asas escondido no avesso da pele, o lugar seguro ancorado no meu peito.

A si que me visita, que comigo viaja há uma década, o meu muito obrigada!
Hoje demore-se mais um pouco, é meu convidado, dê-me a honra de uma dança e brinde comigo de olhos fechados, enquanto pede um desejo inconfessável.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Meu Amor-Perfeito


O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e as suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.

Cecília Meireles, "Canção do Amor-Perfeito", in Retrato Natural

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Coisas simples


Na carta que nunca te escrevi, conto-te tudo: eu sempre quis só coisas simples - escrever o teu nome na casca de uma árvore, na areia da praia, no embaciado de um vidro, no quadro negro da minha sala de aulas, na terra de um canteiro do jardim público. Eu sempre quis só contar o teu nome a toda a gente, gravá-lo em todo o lado, cantá-lo alto, a meio de uma música adolescente. Eu quis a pérola dentro da ostra, a túlipa negra, a lua vermelha dos meses de agosto. Coisas simples, como vês - só manhãs claras e céus abertos, o ruído e o silêncio, o mergulho no mar frio e a vertigem do voo em queda livre.
Na carta que nunca te escrevi, despeço-me de ti. Sem lágrimas, mas com os olhos vazios, como ficam vazias as ruas quando nenhum passante as percorre. Tu gostavas de ruas vazias, eu lembro-me. Gostavas de esquinas batidas de vento. Gostavas de relógios parados. Gostavas de corneto de morango e de café forte. Gostavas de entrar pela solidão da madrugada enquanto escrevias.
Mas, perdi-me... eu confessava-te a simplicidade das coisas que sempre quis: uma manta quente, um livro na mão, a música sussurrando baixinho e um cão aos nossos pés. Quis a tua pele e a tua boca; quis correr contigo debaixo da chuva, atravessar a cidade abraçada a ti, um sumo de laranja numa esplanada cheia de sol; o teu corpo, pela noite dentro. Acordar entre os teus sonhos e acordar-te do teu sono. Sim, eu sei: quis o tudo e quis o nada.
Na carta que nunca te escrevi há uma confissão: agora, finalmente, já sei envelhecer longe de ti - porque escrevi finalmente a nossa história, como me pediste para escrever um dia. Tem o teu nome no título e é uma história bela e simples - como todas as coisas que eu sempre quis.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Palavras Roubadas


(...)
E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

Mia Couto, in Idades, Cidades, Divindades (Texto com supressões)

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Alta definição


(...)
em minha defesa alego

que quis sempre ser uma mulher de bem
mas em vez disso sou antes
no bom sentido da palavra, má.

Silvia Ugidos, in "Possível Auto-Retrato" (Texto com supressões)

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Aqui


A minha alegria é um aroma de tangerina nos dedos,
comer aos gomos a paisagem e limpar depois
a boca à manga do espanto.

Tu puxas-me e somos duas crianças num trilho de mata,
num banco de pedra, num portão verde,
dividindo o aqui e o ali.
Aqui, onde te entrego os meus bolsos,
e - repara - as tuas mãos cabem.

Nós estamos aqui.

Vasco Gato, in 47, edição do autor

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Palavras Roubadas


Quando acordaram de manhã, na mesma cama, ela disse-lhe que queria ter um passado com ele. Não era um futuro, que é uma coisa incerta, mas um passado, que é o que têm dois velhos depois de passarem uma vida juntos. Quando disse que queria ter um passado com alguém, queria dizer tudo. Não desejava uma incerteza mas a História, a verdade.

Afonso Cruz, in Jesus Cristo Bebia Cerveja

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Todas as histórias são iguais


Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversibilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.

No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.

Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.

Eduardo Pitta, in Marcas de Água

terça-feira, 13 de junho de 2017

(...)


A memória, essa areia movediça onde enterrei a sombra do teu nome, continua a doer.

Al Berto, in Dispersos

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Entre a saliva e os sonhos


entre a saliva e os sonhos há sempre
uma ferida de que não conseguimos
regressar

e uma noite a vida
começa a doer muito
e os espelhos donde as almas partiram
agarram-nos pelos ombros e murmuram
como são terríveis os olhos do amor
quando acordam vazios

Alice Vieira, "6" in Amor e outros crimes em vias de perdão

quarta-feira, 24 de maio de 2017

E tu sorriste


Não te vou aborrecer com mais poemas.
Digamos que te disse
nuvens, tesouras, pássaros, lápis
e que alguma vez
tu sorriste.

Júlio Cortázar, in Cinco últimos poemas para Cris

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Amar pelos dois


Ouvi pela primeira vez a música do Salvador Sobral no sábado, durante a final do Festival da Canção. A canção é bela e pregou-me uma partida - abriu de par em par as portas da minha memória, trouxe-me de novo, com a mesma força de outrora, o Paulo, as lágrimas e a dor viva do meu primeiro desgosto de amor.
Ele era o rapaz mais bonito do nosso grupo, o mais alegre, o mais alto, o mais simpático, o único com os olhos negros, negros, tão negros... Eu tinha treze anos. Amava-o até à loucura, julgava que em segredo, até ao dia em que um jogo de Verdade ou Consequência me traiu desastrosamente... (O rapaz que amas está aqui? É o Paulo? O teu sonho é namorar com ele?) A tudo fui respondendo que sim, com a verdade - aos treze anos não sabemos ainda que há amores que se devem calar, albergar no peito, só porque sim, só porque nunca acontecerão... Envergonhadíssima, com o rosto em brasa, ia lendo as emoções do Paulo perante as minhas inesperadas verdades: desconforto, mal-estar, esfriamento. O grupo ria, queria a Consequência, o beijo na boca que eu daria ao Paulo depois daquele amor desnudado em praça pública, esventrado, dissecado, exposto do avesso aos olhos do mundo. Mas, inocentemente eu escolhi sempre a Verdade, sem saber na altura que se podia mentir num jogo jogado ao fim da tarde com amigos, num jardim da cidade. Sem saber que a verdade me tornaria alvo do riso e da troça da minha roda de amigos.
Nesse entardecer distante, o Paulo fez questão de me acompanhar a casa, num passo rápido - para despachar o assunto. Foi incisivo e breve: não gostava de mim, não sentia nada por mim, não queria que eu alimentasse sonhos impossíveis. À porta da minha casa, deu-me um beijo piedoso na face, virou-me as costas, desapareceu na esquina da rua. E eu fiquei ali, desfeita em lágrimas, o coração partido em mil pedaços pequenos, pequeninos, pequeníssimos, o pó e as cinzas do meu primeiro desgosto de amor, pensando desesperadamente que não importava se ele não sentia nada por mim - eu seria capaz de amar por nós os dois. 
Durante o festival torci muito pelo Salvador, gostei dele, da candura, da emoção, da verdade que parecia cantar de olhos fechados. E enquanto decorria a votação, pensava com os meus botões: Espero que seja só uma canção o que trazes no peito, porque se não for, deixa-te disso, Salvador. Não queiras nunca amar ou ser amado pelos dois, se numa relação existe um que ama pelos dois, o que não consegue amar partirá, mais cedo ou mais tarde, como partiu o meu Paulo naquele entardecer dos meus treze anos. Tu és jovem, Salvador, mas pela vida fora vais ver, aquele que não ama, inevitavelmente virará as costas, desaparecerá para sempre numa esquina da vida deixando o coração do que ama pelos dois partido em mil pedaços pequenos, pequeninos, pequeníssimos. Acredita em mim - não queiras cair nessa, Salvador.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Inventa-me um Final Feliz


Inventa-me um final feliz. Se quiseres, podes fazer-me acreditar - como diz a canção -, que afinal de contas, os rios nascem no mar... Inventa-me um final feliz, sem vilões nem lobos nem trovões nem facadas... Talvez uma guerra de perfumes, de flores, como a revolução dos cravos, tão linda, que incendiou um abril longínquo... Faz-me acreditar que há histórias que não arranham, não magoam, não fazem sangrar, sequer chorar... Inventa-me um final feliz, que ando tão cansada de enredos tristes... Arranca-me do peito este peso que me queima a vontade e fala-me na língua do mar, eu sei que tu consegues...
Conta-me uma história, uma qualquer, mesmo que falsa, pouco importa... desde que escrevas, para mim, um final feliz.

quarta-feira, 29 de março de 2017

Crónicas do Vento Salgado


Estavam à minha frente na fila das caixas para pagamento num hipermercado da cidade. A criança ia sentada no fundo do carrinho, mordia com prazer uma chupeta amarela e tinha um livro colorido, de capa dura, entre as mãos. Os pais, com lentidão, descarregavam os produtos para o tapete rolante e falavam discretamente entre si. À medida que os produtos eram despejados, a criança ia ganhando espaço dentro do carrinho e acomodava-se, com o livro aberto e os olhos felizes... O registo dos produtos começou, a mãe da criança pediu-lhe o livro - Só um bocadinho querida, para a senhora ver quanto custa - e a menina, obediente e confiante, entregou o seu tesouro nas mãos da mãe. 
O carrinho passou. Pai e mãe começaram a ensacar as coisas já registadas, a criança tinha os olhos presos no tapete e no seu tesouro... O livro foi a última coisa a ser registada. Não esquecerei a felicidade que vi no rosto da criança no momento em que as pequeninas mãos lhe tocaram de novo... Sorri, consolada - uma criança que gostava de livros; uns pais que ofereciam livros à filha e com toda a certeza, que liam para ela... Que bonito sinal de primavera...!
E foi então que o pesadelo começou. A menina da caixa fez as perguntas do costume, anunciou as promoções do dia, apelativas, enfileiradas sobre a caixa e, finalmente, anunciou o total em dívida - São 78 euros. A mulher empalideceu, abriu o porta-moedas, tirou algumas notas. O homem cochichou, procurou nos bolsos, estendeu-lhe mais algum dinheiro. A mulher contou. Contaram ambos. Olharam em volta, envergonhadíssimos, sumidos. Conferenciaram. Depois, enquanto a mulher abria os sacos, o homem disse baixinho - Importa-se de anular alguns produtos? A funcionária olhou-me, atrás de mim não havia ninguém, pediu desculpa - Vai demorar um pouco -, carregou no botão para chamar a supervisora de loja e começou a anular os produtos que mãos trementes lhe estendiam: detergente de roupa, shampô, duas embalagens de leite com chocolate, fiambre. O casal pediu o total - ainda não chegava. Debruçaram-se então sobre a criança e pediram baixinho, com ternura, as notas da culpa na voz embaciada - Temos que entregar o livro à senhora, meu amor - a criança começou a chorar, depois gritava, alto, como quem não compreendia porque lhe roubavam o tesouro colorido. Pai e mãe tinham os olhos cravados no chão, consolavam a menina, esperavam a supervisora que viesse validar as anulações para poderem correr, fugir dali a sete pés. Vi-os partir com o coração apertado, ao colo da mãe a menina gritava, inconsolável, os pais caminhavam apressados de olhos no chão, o peso do mundo sobre os ombros jovens, esmagando-os...
Quando já todos os meus produtos estavam registados, pedi uma saca e disse à funcionária que levaria também os artigos que o casal tinha deixado. Ela ficou a olhar para mim, aparentemente sem compreender, depois encolheu os ombros e fez o que eu lhe tinha pedido.
Foi fácil encontrá-los numa das ruas paralelas... A criança ainda chorava quando encostei o carro à beira deles e os interpelei. Saí e pousei a saca no chão, junto dos seus pés - Peço desculpa, mas deixaram estas compras esquecidas no supermercado. Olharam-me espantados, incrédulos... Iam dizer qualquer coisa mas eu despedi-me e saí dali o mais rápido que pude. Pelo retrovisor ainda vi as três cabeças juntas, espreitando para dentro da saca... Uns quilómetros à frente, encostei o carro numa rua cheia de sol... As pernas tremiam-me... Respirei fundo, muito fundo. Depois, escondi o rosto nas mãos e chorei.

sexta-feira, 24 de março de 2017

segunda-feira, 6 de março de 2017

O Lume nos Dedos


Acende os dedos, um por um
Concebe a tua mão assim luminosa
para que os tendões sejam tocados
e a nudez se mova lentamente
através das pálpebras.

Acende os dedos e os ombros
e respira a força interna de um nome
para que a água estale nos lábios.
Acende o lugar e a sombra
e mergulha o rosto no segredo do espelho.

Acende os dedos, um por um,
esses afinal os degraus que conduzem
à morada dos astros e das raízes.


Vasco Gato, "O Lume nos Dedos" in IMO

quarta-feira, 1 de março de 2017

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Do voo


De que adianta ser pássaro se não se tira os olhos do chão?

Valter Hugo Mãe, in Contabilidade

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Palavras Roubadas


Você é livre para fazer as suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências.

Pablo Neruda

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Cá dentro


Digo-te que tenho medo. Tu sorris e abraças-me com aquele abraço teu de nuvem azul onde me escondo toda, onde me guardas inteira. Perguntas-me pelo meu silêncio e eu hesito (entenderás tu?) antes de te responder. Depois atrevo-me e conto-te do mar do meu silêncio onde há criaturas medonhas e venenosas com tentáculos de polvo que sempre me agarram. Digo-te que sonhei com a mulher que foi levada pelo mar e não voltou... Digo-te que às vezes o mar é assim, guarda no ventre criaturas que toma como suas e não as devolve nunca mais. Também o meu silêncio é um mar roubador - explico-te. Também eu sou prisioneira de vagas de silêncio, dias e dias sem vozes dentro de mim, afogada, enrolada numa onda negra silenciosa. No meu sonho, a mulher que o mar não devolveu tem os olhos abertos de terror e um rosto quase igual ao meu. 
Tenho medo - repito. O teu abraço ainda não acabou mas eu tenho medo, mesmo assim. Fecho os olhos e por momentos sou menina de bibe outra vez, jogo à macaca no recreio da escola, as tranças quase desfeitas saltam e batem-me nos ombros como chicotes. Sou pequenina outra vez... - tenho nódoas negras nas pernas e um sorriso infinito na boca pegajosa do pão com marmelada que a mamã pôs na lancheira. Rio, rio muito e muito alto... Porque sei nadar em todos os mares e ainda nenhuma onda me levou ao fundo, aos abismos silenciosos nos confins do mar mais profundo. 
Conto-te tudo em voz baixa e o abraço desfaz-se. Desfaz-se a rede na nuvem que me guardava e de novo sou arrastada, outra vez regresso ao fundo do medo do meu silêncio, onde ninguém me agarra. E onde me afogo.