segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Coisas simples


Na carta que nunca te escrevi, conto-te tudo: eu sempre quis só coisas simples - escrever o teu nome na casca de uma árvore, na areia da praia, no embaciado de um vidro, no quadro negro da minha sala de aulas, na terra de um canteiro do jardim público. Eu sempre quis só contar o teu nome a toda a gente, gravá-lo em todo o lado, cantá-lo alto, a meio de uma música adolescente. Eu quis a pérola dentro da ostra, a túlipa negra, a lua vermelha dos meses de agosto. Coisas simples, como vês - só manhãs claras e céus abertos, o ruído e o silêncio, o mergulho no mar frio e a vertigem do voo em queda livre.
Na carta que nunca te escrevi, despeço-me de ti. Sem lágrimas, mas com os olhos vazios, como ficam vazias as ruas quando nenhum passante as percorre. Tu gostavas de ruas vazias, eu lembro-me. Gostavas de esquinas batidas de vento. Gostavas de relógios parados. Gostavas de corneto de morango e de café forte. Gostavas de entrar pela solidão da madrugada enquanto escrevias.
Mas, perdi-me... eu confessava-te a simplicidade das coisas que sempre quis: uma manta quente, um livro na mão, a música sussurrando baixinho e um cão aos nossos pés. Quis a tua pele e a tua boca; quis correr contigo debaixo da chuva, atravessar a cidade abraçada a ti, um sumo de laranja numa esplanada cheia de sol; o teu corpo, pela noite dentro. Acordar entre os teus sonhos e acordar-te do teu sono. Sim, eu sei: quis o tudo e quis o nada.
Na carta que nunca te escrevi há uma confissão: agora, finalmente, já sei envelhecer longe de ti - porque escrevi finalmente a nossa história, como me pediste para escrever um dia. Tem o teu nome no título e é uma história bela e simples - como todas as coisas que eu sempre quis.

5 comentários:

R disse...

Belíssimo Anna, belíssimo!

Anna disse...

Obrigada, Eros! :)

Anónimo disse...

Um texto bonito, profundo, como sempre soubeste escrever.
Sem lágrimas, mas com o coração vazio - sempre!

Mar Arável disse...

A vida só é desilusão para os náufragos sem memória

Anna disse...

Enquanto houver memória, nenhum mar será de naufrágios.

Um abraço, Eufrázio.