sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Segue a estrada de tijolos amarelos


Não sei porque me lembrei hoje da história do Feiticeiro de Oz. Li o livro há muitos anos, quando era miúda e fascinou-me tanto que durante esse Verão reli-o várias vezes até que nenhuma frase me surpreendesse, nenhum pormenor me escapasse. Depois devolvi-o à Biblioteca Municipal e abandonei-o, esquecido num qualquer corredor da mente. Pelo menos julgava eu, porque hoje, inesperadamente, dei comigo a recordar a Dorothy, uma menina que tem como único amigo um cãozinho que desaparece durante uma tempestade e agora, como num filme, as imagens sucedem-se dentro de mim... Sem hesitar, Dorothy parte em busca do cão e quando o encontra e pretende regressar, verifica que também ela está perdida. Porque me lembrei disto hoje? Porque surgem com uma nitidez arrepiante as personagens insólitas deste conto magnífico? Recordo: havia um homem de lata que procurava um coração, um leão que desejava encontrar coragem, um espantalho que queria ter um cérebro e Dorothy, que desejava regressar a casa. Sem dúvida um estranho grupo de personagens que reúne os valores mais nobres do ser humano e simboliza a busca incansável de cada caminhante na viagem da vida. Só o Feiticeiro de Oz, que vive na Cidade das Esmeraldas, conseguirá ajudar Dorothy e os amigos a alcançarem os seus sonhos. A menina calça os sapatos de rubi da bruxa má morta e repete como um estribilho, ou uma canção, o aviso que lhe tinha sido feito: Basta seguir a estrada de tijolos amarelos.
Tendo em conta que Dorothy encontrou o seu lar e que as outras personagens descobriram que afinal o que elas procuravam estava dentro delas próprias, este parece-me um bom lema para o novo ano que daqui a poucas horas se inicia. Começar 2011 sem esquecer que muitas vezes o que procuramos desesperadamente aninha-se dentro de nós e que a solução está sempre nos nossos pés, nos passos que damos. Só temos que seguir a estrada de tijolos amarelos.
Talvez por isso, daqui a pouco calçarei os meus sapatos de rubi, os mágicos, que não me cansam os pés e darei o primeiro passo na longa estrada de tijolos amarelos. No peito tenho um rumo e guardo uma certeza: a felicidade mora em nós, difícil é não nos afastarmos da estrada que nos conduz ao coração. Ao nosso. E ao coração de quem amamos.

A todos os visitantes deste espaço, em 2011 desejo uma caminhada cheia de dias felizes. E se alguém se sentir cansado da viagem ou tiver o rumo perdido, fica o conselho que li há tantos anos num livro maravilhoso que hoje me assaltou a memória: Basta seguir a estrada de tijolos amarelos.

Um Feliz Ano Novo!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Falemos de facas


Falemos de facas, então. De lâminas afiadas, de punhais, de sílabas enterradas com azedume no corpo das palavras. Falemos de dor, se preferires. Da dor das frases aguçadas com a tristeza de não se ter mais nada, a não ser isso mesmo, palavras que atiramos como lanças a peito alheio.
Falemos de palavras que magoam, que fazem sangue debaixo da pele, no invisível de nós. Ou falemos de silêncio, o maior de todos os gumes.
Se queres, falemos de facas, então. Ou escutemos o machado do silêncio cortar-nos as bocas e as vozes em feridas infinitas.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Um erro de expressão


O arco-íris cai não interferindo
Nas cores do quadro. O pintor
Agradece. O peixe lento
Que o pintor trouxe ao mundo tem
Cores despropositadas, porém não há nenhuma razão
Para apontar aos peixes a responsabilidade
De um erro, afinal,
Estético.
Quanto à literatura: não falha na cor,
Mas jamais acerta nas palavras.

Gonçalo M. Tavares, I

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

FELIZ NATAL


Que os homens possam unir-se nas suas diferenças, mesmo que por apenas algum tempo, e que esta seja uma noite de paz sobre a terra.

A todos os visitantes deste espaço, do fundo do coração desejo um Feliz Natal.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Palavras de água


Para atrasar a morte vamos abrir a noite
com música de jazz Percorrê-la depois

num barco de borracha Celebrar o segredo
Enforcar a memória Descobrir de repente

uma ilha que nasce dentro do teu vestido

Chamar-lhe Madrugada Adormecer contigo

David Mourão-Ferreira, Baptismo

No parapeito da insónia


Debruço-me no parapeito da insónia e deixo que o olhar se derrame sobre os meus medos. Trago-os guardados cá dentro do peito, numa gaveta de fundo falso que fecho à chave com os gestos incendiados de mil revoltas... É uma luta desigual, esta que travo com o coração. Ele ganha sempre, abre sem pejo as portas da memória e espalha-me pela pele o arrepio... Faz-me sorrir, o doido do coração, pega-me pela mão e leva-me por caminhos de água e de sol... Troça de mim, que eu bem o ouço, e solta os medos em mim que voam às cegas, algures pelos corredores do meu sangue... Ri-se de mim, o meu coração... Ri-se da memória da carne... e da insónia povoada de medos fugidios.

sábado, 18 de dezembro de 2010

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Da solidão


Cortaram os trigos. Agora
a minha solidão vê-se melhor.

Sophia de Mello Breyner Andresen, O nome das coisas

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Arranja-me um coração


Arranja-me um coração. Pode ter sido já usado e sem serventia para ninguém, eu não me importo, arranja-me um coração por queimar, um que não tenha ido à guerra e não esteja ferido. Arranja-me um coração a estourar de sonhos, um coração leal que não me fuja do peito, pode ter asas de ouro, tão pesadas que não o deixem voar... Arranja-me um coração inteiro, que só saiba bombear o sangue e que não tenha aprendido a doer. Arranja-me um coração sem labirintos, sem poços profundos onde caiam e se afoguem os sonhos... Um músculo forte e robusto, cor de sangue, cor de vida, arranja-me um coração que não queira ser onda do mar, que não se desfaça na espuma dos dias, no veloz escorrer do tempo...
Preciso de um coração...
Ou dá-me então o teu... Quando sinto o teu coração bater nas minhas mãos, percebo que caberia inteiro no vazio do meu peito.

sábado, 4 de dezembro de 2010

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

É quase Natal...


Na cidade varrida de chuva e de vento, a mulher caminhava, os cabelos em desalinho colados ao rosto, os passos perdidos num vendaval interior que só ela sabia. Procurava o ponto exacto onde se perdera. Insensível ao frio que lhe roía os ossos, nem percebia que tinha fome. Nem percebia que tinha frio. O casaco de fazenda grossa tornara-se pesado, pingando toda a água da tarde de chuva que caía sobre a cidade. Mas a mulher, à procura do seu rumo, nada sentia, não via ninguém... Procurava-se. Era isso que ela fazia, no meio do frio deste Dezembro tão triste.
De repente, a cidade acendeu todas as suas luzes e a mulher piscou com uma surpresa assustada os olhos molhados... Afastou os cabelos do rosto com as mãos duras de frio e apertou contra o peito o casaco pesado de chuva com ambos os braços. Lentamente, começou a caminhar, os olhos vazios cravados num ponto qualquer, que mais ninguém via... Depois, arrastando os passos, desapareceu debaixo da chuva.
Na mesa ao lado, dois jovens de mãos dadas sorriam e fumavam o mesmo cigarro. E lá do fundo, junto ao balcão, alguém em voz alta disse que é quase Natal.