terça-feira, 31 de julho de 2012

Anjos ou deuses




Neste palco de sol,
de repente:
os teus lábios:
anjos caídos mas abençoando

Cada curva e tremura
dentro do nervo exacto
da memória

Por esses lábios
eu faria tudo:

rasgava-me de sangue
e inocência,
partia com as mãos vitrais
e estrelas,
desintegrava o sol

Já não anjos caídos
os teus lábios,
mas deuses transportados
pelos meus

Ana Luísa Amaral, "Anjos Caídos" in Imagias


segunda-feira, 30 de julho de 2012

A vida não cabe numa teoria


A vida... e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitectaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas. Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós.
Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem.
A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar.

Miguel Torga, in Diário

domingo, 29 de julho de 2012

O fogo do teu sol



Que os teus dedos não fiquem
sem rumo
à superfície da sede
Que a tua boca não seque no sal
de um mar inútil
de memórias
Pedras e lágrimas

Procura-me
na terra mais fértil
ou na aridez do caminho

Lê-me
no silêncio dos dias sem idade
sem destino

Sou eu o fogo do teu sol

Edgardo  Xavier, "Decifra-me" in Corpo de Abrigo


sábado, 28 de julho de 2012

Semiventos e meias verdades


Não deixe portas entreabertas. Escancare-as ou bata-as de vez. Pelos vãos, brechas e fendas passam apenas semiventos, meias verdades e muita insensatez.

Cecília Meireles

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Crónicas do Vento Salgado



Na minha cidade há uma rua íngreme e triste onde não passa quase ninguém. É uma rua estreita sem lojas ou cafés, com os passeios desfeitos e velhas casas de traça antiga que o tempo foi esboroando com lentidão, encostadas umas às outras como presas acossadas à espera do abate. É a rua mais feia que conheço e desde miúda que a atravesso porque ela rasga o ventre da cidade e vai ter ao centro, onde pulsa cheio de vida o comércio local. Sempre gostei dessa rua feia e triste, como se fosse uma nota dissonante no bulício da cidade, onde se ouvem os nossos próprios passos e a solidão se faz sentir pesada como uma pedra. É nessa rua que vive a D. Julinha. Hoje lá estava, como sempre, debruçada na janela do seu quarto que se abre sobre a rua, mendigando sorrisos e palavras aos passantes. Toda a gente a conhece mas ela não conhece ninguém, prisioneira de uma demência que a faz regredir à primeira infância. O tempo corre como um rio e ela lá está, sempre no mesmo sítio, embrulhada na mesma estranha alegria, presa na mesma esmagadora solidão que sempre lhe conheci. Há anos que fica sozinha em casa enquanto a família sai para trabalhar e quando começou a piorar, decidiram fechá-la à chave para não fugir e se perder na cidade. E depois, quando um dia resolveu cozinhar e acendeu todas as bocas do fogão e abriu todas as torneiras para lavar a louça que não tinha usado, a família, para evitar acidentes, decidiu deixá-la fechada à chave no quarto, limitando-a à janela onde se debruça, talvez para respirar... Quando entrei na rua, de imediato vi o seu vulto familiar e ouvi os risos que sempre ouço... Na janela de sempre, a D. Julinha ria feliz, enrolada nos cortinados brancos, e só sobressaíam os seus olhos de um azul surpreendente, enevoados pelas cataratas... São olhos de criança, puros e serenos, inocentes e prisioneiros do seu mundo... E foi então que ela me contou, feliz, que estava noiva e ia casar hoje. Abraçada ao imaginário véu branco que só lhe deixava o rosto a descoberto, dançava presa na sua loucura, no seu sonho, pendurada na janela triste daquela rua feia. Pediu-me rebuçados, atirou-me beijos e ficou a cantar uma estranha melopeia que dentro de si talvez fizesse tanto sentido como a marcha nupcial que só a sua mente ouvia... E quando descia a rua, algo se rasgava em mim, uma dor qualquer, ou talvez fosse uma revolta muda, enquanto as gargalhadas felizes da D. Julinha abafavam o som dos meus passos e tornavam mais triste e mais feia, mais pesadamente solitária e esmagadora, a rua mais estreita da minha cidade.       

quinta-feira, 19 de julho de 2012

quarta-feira, 18 de julho de 2012

terça-feira, 17 de julho de 2012

Metade fêmea, metade mar


Hoje quero a violência da dádiva interdita.
sem lírios e sem lagos
e sem o gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias

Natália Correia, "A Exaltação da Pele", in O Sol Nas Noites E O Luar Nos Dias

 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Viva a vida!


Porque hoje faço anos e vou abraçar os que amo, quero olhar os meus visitantes nos olhos, sorrir-lhes e agradecer-lhes por estarem aí e por me fazerem sentir acarinhada aqui.
Obrigada pela presença de todos.

Um beijo,

Ana Paula

domingo, 15 de julho de 2012

E os deuses falavam


Lembro-me bem, gostavas de tempestades. Eras capaz de as pressentir antes de qualquer outra pessoa, ficavas estranhamente quieto e dizias com serenidade: Os deuses vão falar. E quando finalmente os céus escureciam e a chuva em dilúvio parecia fazer desabar as paredes da casa, encostavas-te à porta da rua como um comandante ao leme de uma nau da Índia, e os teus olhos brilhavam como sóis. Nessas alturas falhava sempre a luz, mas na escuridão, apesar dos relâmpagos que tombavam com estrondo rasgando o ventre macio da terra, eu não sentia medo, agarrada à âncora da tua mão, encontrando o norte na claridade do teu peito em fogo. Parecias-me então estranhamente belo, como os leões majestosos e imponentes, que ao colo da mãe, abrigada dentro do jipe, eu via ao longe na savana. 

Do Amor


O amor torna alguém único, inconfundível, diferente de todos os demais. Nem um jardim com cinco mil rosas vale tanto como uma só que se cativou, uma só que se aprendeu a amar.

Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho

sábado, 14 de julho de 2012

Cá dentro




E tu? Quantas vezes olhaste para cima para que as lágrimas não caíssem?

As moradas do silêncio


Não sei onde estás, se falas ou se apenas olhas o horizonte, que pode ser apenas o de uma parede de quarto. Mas sei que uma sombra se demora contigo, quando me pergunto onde estás: uma inquietação que atravessa o espaço entre mim e ti, e te rouba as certezas de hoje, como a mim me dá este poema.

 
Nuno Júdice

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Amigo


Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,

Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill in No Reino da Dinamarca


terça-feira, 10 de julho de 2012

Palavras roubadas



A vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos.

José Saramago

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Palavras desamparadas e desertas



Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


Eugénio de Andrade, "O Silêncio" in Obscuro Domínio

sábado, 7 de julho de 2012

Palavras de água



Fechei-me dentro dos muros
onde o meu corpo não cabia
contente de ser prisioneira
do cárcere que eu transcendia.

E fui no vento que tudo
tudo o que havia varria,
contente de ser mais veloz
que o vento que me impelia.

Fiquei suspensa dos ramos
que os meus cabelos prendiam
contente de ser o destino
da árvore em que me fundia.

E dei-me como leito às águas
dos sonhos que me transcorriam
contente de ser o curso
da água em que me esvaía.

Natália Correia, "Superação" in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias



sexta-feira, 6 de julho de 2012

O tanto que guardamos cá dentro


Não somos apenas o que pensamos ser. Somos mais; somos, também, o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos, "sem querer".

Sigmund Freud

quinta-feira, 5 de julho de 2012


Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?

O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.

E bastava. Bastava respirar
a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.

Joaquim Pessoa, "Bastava-nos Amar. E Não Bastava" in Português Suave


quarta-feira, 4 de julho de 2012

No côncavo do corpo






Uma rosa que sangra
entre as pernas
no côncavo do corpo adormecida

Uma rosa no ventre
entreaberta
em si própria rasgada, enlouquecida

Uma rosa de febre
respirada
tecida nos sucos do desdém

Orgástica - voraz
e decepada
pétala a pétala lambida e desenhada.

Maria Teresa Horta, "Uma Rosa" in Flor Sangrenta (Texto com supressões)

terça-feira, 3 de julho de 2012

Vox populi, vox Dei


Somos todos visitantes deste tempo, deste lugar. Estamos só de passagem.
E depois vamos para casa.

Provérbio aborígene

Um barco passou


Atrás do teu coração passou um barco
Que não pára de seguir sem ti o seu caminho


Sophia de Mello Breyner Andresen, XIV in Obra Poética

domingo, 1 de julho de 2012

Noivado




Na escolinha,
a menina,
propícia a equívocos, disse:
- masculino de noiva é navio.

Repreenderam, riscaram, descontaram.

Mas ela estava certa.

Noivados são mares
de barcos pares.

Mia Couto, "Errar" in Idades Cidades Divindades