segunda-feira, 30 de junho de 2008

Palavras saudosas


Perdemos outra vez este crepúsculo.
Ninguém nos viu esta tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.
Vi da minha janela a festa do poente nos morros distantes.
Às vezes como uma moeda
se acendia um pedaço de sol entre minhas mãos.
Eu te recordava com a alma encolhida
por essa tristeza que tu me conheces.
Então onde estavas?
Entre qual gente?
Dizendo que palavras?
Porque é que o amor me vem assim de golpe
quando me sinto triste, e te sinto distante?
Caiu o livro que sempre se toma no crepúsculo,
e como um cão ferido tombou a meus pés minha capa.
Sempre, sempre te afastas pelas tardes
para onde o crepúsculo corre apagando estátuas.

Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada

domingo, 29 de junho de 2008

Dia de S.Pedro


S.Pedro, o último dos santos populares, é o padroeiro da minha cidade.
Era pescador, como o povo da terra onde vivo, um povo corajoso e sofrido que enfrenta o mar que lhe dá o sustento e as lágrimas. Chamava-se originalmente Simão mas perante a sua fé inabalável, Cristo baptizou-o de Pedro, que significa pedra. E S.Pedro, o príncipe dos apóstolos, foi o fundador da Igreja de Roma e considerado o primeiro Papa pela Igreja Católica. Foi martirizado e crucificado de cabeça para baixo a seu pedido, por não se sentir de valor suficiente para morrer da mesma forma que o seu Senhor havia morrido. Cristo deu-lhe as chaves do Reino dos Céus e a responsabilidade de deixar entrar os que merecem recompensa...
Gosto muito dos festejos dos santos populares. São noites mágicas, vividas nas ruas com música e fogueiras, vinho e sardinhas, rusgas e cascatas, manjericos e alhos porros, tronos e fogo de artifício. Nestas noites, as cidades pertencem ao povo que nelas trabalha, vive, lhes dá corpo e alma... As cidades são das gentes humildes que tudo fazem para festejar com alegria merecida o seu santinho padroeiro, come-se, bebe-se e dança-se em qualquer lado porque os corações estão unidos como em nenhuma outra data. Até ao raiar do dia saltam-se fogueiras e o amanhecer encontra muitos corpos adormecidos na praia, vencidos pelo cansaço ou pelos excessos...
Na noite de S.Pedro, a minha cidade brilha de luz e alegria, há um cheiro quente e bom abraçando as ruas e quem passa pela estátua do santo, quase jura conseguir vislumbrar-lhe um bondoso sorriso velado... diz-se até que um observador mais atento consegue ver a sua mão abençoar os passantes e ouvir o tinir pesado das chaves que abrem as portas do Reino dos Céus...

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Vox populi, vox Dei


Nunca acendas um fogo que não possas apagar.

( Provérbio chinês )

Oaristo


Este amor desarrumado
de olhos, beijos e cama,
jornais silêncios e drama,
filhos, quadros e comida,
encontros, cinzas e vida,
não seria mais amado
se pintado e organizado
em contas, perdas e danos,
meu amor de tantos anos.

Maria Sofia Magalhães, A luz que se esconde

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Eu calava-me...


As pessoas cheias de certezas irritam-me profundamente. Não há nada a fazer, é superior às minhas próprias forças... Quando as ouço falar, desenvolvo uma espécie de alergia mental, uma urticária subcutânea difícil de disfarçar. As pessoas cheias de certezas, medem seguramente mais vinte centímetros que um ser humano comum e não falam normalmente, cospem as suas certezas alto e arrogantemente, despejando um olhar de comiseração em redor, como se os outros fossem formigas e elas o elefante... Estas pessoas nunca se enganam e nunca têm dúvidas... também não hesitam nem vacilam... não pedem desculpa porque nunca estão erradas...Verdadeiras visionárias, estas pessoas sabem sempre o que vai acontecer, tecem longas prelecções sobre o estado do mundo e das coisas e têm sempre opiniões seguríssimas acerca de qualquer assunto. Por mais insignificante que seja. E quantas vezes, quando ouço falar pessoas assim, me interrogo sobre o que fariam se a vida lhes tirasse o tapete, se lhes acontecessem coisas inimagináveis e terríveis... Se adoecessem gravemente, se um acidente as deixasse tetraplégicas, se perdessem um filho, se uma bomba lhes destruísse a casa, se um terramoto lhes levasse toda a família, se se vissem de repente arruinadas... doentes... sozinhas... Em que tom falariam então? Com que espécie de seguras certezas?
É por isso que eu, que sou uma mulher sem certezas de espécie alguma, sempre que me deparo com este tipo de pessoas, aperto os punhos, inalo a raiva e a irritação, afasto-me o mais rápido que posso e sei apenas que no lugar delas... eu calava-me.
Com toda a certeza.

terça-feira, 24 de junho de 2008

POST SECRET


Fiz as contas. Voltei a fazer. Não há que enganar, hoje estive dez horas no meu local de trabalho... quase seguidas... Esqueci-me de comer... E quando entrei em casa, o trabalho veio comigo, entranhou-se-me na pele, está dentro de mim, respira comigo e sufoca-me sem me dar tréguas. Não me deitarei tão cedo, ficaremos juntos pela noite dentro até que me renda ao cansaço. E hoje eu estou cansada até aos ossos, até à medula...
Ninguém tem culpa, eu sei... Só queria que me entendesses...

Dia de S.João


Até os mouros na Mourama
Festejam o S.João
Quando os mouros o festejam
Que fará quem é cristão

Meu querido S.João
És um santo popular
Traz teu arco e teu balão
Vem com o povo dançar!

Delicados pés pisaram
Rosmaninhos pelo chão
Muitos corações amaram
Na noite de S.João

Cancioneiro Popular

domingo, 22 de junho de 2008

Palavras eternas


Tornas-te eternamente responsável por aquele que cativas.

Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho

sábado, 21 de junho de 2008

O apogeu do deus sol


Vivemos hoje o solstício de Verão, o momento em que o sol, no trópico de câncer, nos oferece o dia mais longo e a noite mais curta do ano. É uma data muito especial para mim, há já algum tempo, desde que li pela primeira vez algo relacionado com o significado oculto das estações do ano. A noite que agora respira, possui uma carga fortíssima de simbologia e mistério. Segundo a cultura pagã, esta madrugada, no pulsar da noite, poderemos ouvir bruxas e duendes, elfos e fadas festejando com alegria o apogeu do deus sol, o fervor da vida que lateja quente sob os braços do astro-rei que nos ilumina. Festeja-se a vida. Fecunda, a transbordar de energia, a natureza explode em mil aromas, frutos, sucos e seivas abundantes. Grata ao deus sol, a natureza oferece-nos as suas dádivas e partilha connosco o seu esplendor.
Mas como a natureza obedece a ciclos inevitáveis, a partir de amanhã o sol inicia o seu declínio que culminará na morte, no solstício de Inverno... De novo os dias diminuirão e as noites crescerão, no eterno ritmo singular de todas as obras divinas.
Por isso, para quem como eu ama o Verão, o tempo é de júbilo e alegria, com os olhos postos nos dias que se avizinham: luminosos, quentes e longos, pedindo pés descalços caminhando na areia da praia, banhos de sol e de mar, a pele do corpo exposta ao bailado do vento morno, refrescos saboreados numa esplanada e gelados partilhados à beira-mar, com a luz dourando a alegria e a descontracção... dias preguiçosos, vagarosos, e noites que se arrrastam numa tranquilidade doce, sem o fantasma cruel e implacável do despertador.
Antes disso, e para já, o tempo é de muito trabalho, angústia e responsabilidade.
Pelo menos, ainda bem que é Verão.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Uma Bandeira


É sempre a mesma coisa. De todas as vezes que há um jogo importante, eu juro para mim própria que desta vez é que vai ser. Juro que não me enervarei, não gritarei, não direi asneiras, enfim, que serei boa menina e capaz de me controlar. Até porque eu não entendo absolutamente nada de futebol. Gosto de ver e é só. Não faço a mais pálida ideia de quando é pontapé de baliza, canto, livre directo, grande penalidade, e a expressão "fora de jogo" tira-me do sério. A história dos cartões amarelos é outro cavalo de batalha... umas vezes é, outras não... ai e tal, o árbitro não viu... pois, é preciso não esquecer que quem decide tudo é sempre o árbitro... que umas vezes vê e outras não, umas vezes acredita, outras nem pensar nisso. Por tudo isto, dizia eu, não pretendo sequer discutir futebol com ninguém e o meu papel resume-se tão só a sentar-me no sofá e torcer pela minha equipa. Ou pelo meu país, como foi hoje o caso. Não sei dizer se a nossa equipa jogou bem ou não, nunca me atreveria a comentar a táctica do Scolari, a escolha dos jogadores ou o desempenho da rapaziada... só sei que Portugal foi afastado do Euro 2008. Porque perdeu. Porque marcou menos golos do que a Alemanha. E isso basta.
Enquanto o jogo decorria e as câmaras filmavam os adeptos portugueses, viam-se nas bancadas rostos pintados de vermelho e verde, bandeiras do meu país orgulhosamente exibidas, cachecóis e camisolas envergados com dignidade, chapéus incríveis com as cores da nação. E isto é muito bonito e não me deixa indiferente. Rostos sofridos, lágrimas, desalento, mãos apertadas de angústia e bocas que roíam unhas... mas também sorrisos e palmas, canções, entusiasmo e muita fé. Nos noventa minutos em que decorreu o jogo, as ruas estavam desertas e o país parado. Um país unido durante uma hora e meia, com os olhos postos na vitória. E este mérito ninguém tira ao futebol, ninguém rouba aos nossos jogadores: a nossa selecção, vestindo as cores do país, uniu os cidadãos nas mesmas emoções, nos mesmos anseios, com os mesmos sonhos no horizonte. Político algum conseguirá jamais semelhante proeza e é por isso que eu respeito o futebol. Durante noventa minutos, somos apenas um povo.Uma nação. Uma raça. Uma bandeira.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Sentido único


O rio atinge os seus objectivos porque aprende a contornar os obstáculos.

Lao-Tsé

terça-feira, 17 de junho de 2008

Palavras paralelas


Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente de
Infinito a infinito
Seguiam-se passo a passo
Exactas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar
Falar e tomar café.
Mas farta de andar sozinha
Uma delas certo dia
Voltou-se para a outra linha
Sorriu e disse-lhe assim.
"Deixa lá a Geometria
E anda aqui para o pé de mim...!"
Diz a outra: "Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!"
Não se dando por achada
Fica na sua a primeira
E sorrindo amalandrada
Pela calada, sem um grito
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.
E com ele ali à frente
As duas a murmurar
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar
Seguiram as duas juntas.
Assim nestas poucas linhas
Fica uma estória banal
Com linhas e entrelinhas
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.

José Fanha, Romance ingénuo de duas linhas paralelas

( Para ti, D. Tu sabes porquê.)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Como uma onda


Tento arrancar e não consigo
amachuco, mordo o grito
aperto as mãos, cerro os lábios
rasgo o peito em mil feridas.

Uma batalha perdida, no mar da vida...

Imparável, agiganta-se
ganha força e desafia-me,
cala-me a voz, mata-me os gestos
e deixa-me exausta de lutar.

Como uma onda do mar...

Sem a conseguir travar,
Rendo-me por fim
E deixo-me levar...
Nessa onda do teu mar.

domingo, 15 de junho de 2008

Guardo-te


Debaixo da pele,
cravado no coração,
tatuado na alma...
Assim te guardo.

E sei o que não dizes
o que pensas
e até o que possas sentir
porque trago-te
guardado em mim.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

A caminhada dos sonhos


Missão cumprida.
Chegou hoje ao fim um ano de trabalho, nem sempre fácil, nem sempre pacífico, mas apaixonante. E é bom vê-los atrasarem-se no momento da saída, demorarem as despedidas, adiando as saudades que sentirão uns dos outros e de alguns stores. Muitos reencontrar-se-ão regularmente durante as férias, outros só matarão as saudades em Setembro, na hora do regresso. Eu sei, há o telemóvel, o msn, as festas de aniversário e as idas ao cinema e à discoteca... nada se perde, suspende-se apenas.
Cá fora, nos jardins da escola, são bandos de aves em revoadas felizes, sentam-se no chão doirando os sorrisos e os abraços, falam alto num gargalhar ruidoso que faz eclodir uma alegria saudável. E como sempre, há algumas lágrimas também...
Uma outra etapa se inicia agora, os exames, até finais de Julho. Muitos não os farão mas para outros o tempo é de angústia e muito esforço onde se joga tudo ou muito, na mira do acesso a uma universidade sonhada, rumo a uma profissão talvez utópica e tão distante ainda.
Dentro de mim, desejo-lhes sorte, desejo-lhes muita sorte porque é também disso que se trata no momento em que se sentarem numa sala silenciosa, a sós com a própria sapiência. Quando são chamados a prestar provas daquilo que aprenderam, só o conhecimento não chega, é preciso ter dormido bem, estar bem disposto, não ser traído pelo nervosismo ou pela desconcentração, ler bem as perguntas, controlar o tempo, não ter "brancas" e estar inspirado. Nós, professores, somos solidários e sofremos com eles.
Há ministros que não sabem, mas existem professores que amam os seus alunos, que tudo fazem para que eles tenham sucesso e que sofrem muito quando eles vacilam ou fracassam. Há ministros que não sabem, mas existem professores que não conseguem evitar sentir uma pontinha de nostalgia sempre que uma turma parte para a universidade, sobretudo se o que se partilhou na sala de aula foi muito mais do que uma sabedoria catedrática. Há ministros que não sabem que muitos professores não gostam da escola vazia, tristemente silenciosa e gelada e para quem ela só faz sentido, só tem uma alma, quando está repleta de jovens cheios de sonhos e de esperança que contam com os seus stores nesta caminhada. A dos sonhos, claro. Que por acaso, os professores também têm.
Ainda têm.

Dia de Santo António


Saíra Santo António do convento,
A dar o seu passeio costumado
E a decorar num tom rezado e lento
Um cândido sermão sobre o pecado

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia
Que vinha a plácida noite baixando...

E andando, andando viu-se num outeiro
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo...

O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu
E pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica d'água murmurante,
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distantes,
O luar mais alto, iluminava mais.

De braço dado para a fonte vinha
Um par de noivos, todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha.
Ele trazia... o coração no peito.

Sem suspeitarem que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino porém, ouviu e disse:
- Oh! Frei António, o que foi aquilo?

O Santo erguendo a manga do burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada.

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou com timbres d'oiro no caminho.
- Ouviste, Frei António, ouviste agora?
- Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho...

- Tu não estás com a cabeça boa...
Um passarinho a cantar assim?
E o pobre Santo António de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
- Se o Menino Jesus pergunta mais,
Queixo-me a sua Mãe Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz,
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: - Jesus
São horas... - E abalaram pro convento.

Augusto Gil, O Passeio de Santo António

O Ser Fragmentado


Fernando Pessoa nasceu há 120 anos.
Um poeta grande, tão grande que não cabia dentro de si próprio. Tão grande que não cabia neste mundo. Nem ele, nem todos os "outros" que o habitavam...
Um escritor magnífico, perante o qual Portugal e o mundo, merecidamente, se vergam.

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa, Isto

quinta-feira, 12 de junho de 2008

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Em silêncio. No vazio.


Bati a porta suavemente atrás de mim e enquanto descia a escadaria desfiava as nossas palavras, uma por uma, como as contas de um rosário. Como sempre faço. O que havia hoje de diferente? Conversámos sobre banalidades... o tempo, a lista de compras, os preços sempre a subir, a ementa do jantar... Como sempre. Sentei-me no sofá, a teu lado, ajeitei-te a almofada, alisei o cobertor que te aquece as pernas, passei-te as revistas e o jornal, acendi as luzes, fechei a casa. Dei corda ao relógio. Como sempre. O que mudou? Limpei-te as lágrimas, abracei-te, arranjei-te os cabelos. Vi se tinhas carga no telemóvel. Como sempre. As tuas mãos estavam quentinhas... Recolhi a roupa do varal, dobrei-a como tu gostas, deixei-a no cesto para a empregada que amanhã a há-de passar, liguei a TV e deixei o comando ao alcance dos teus gestos. Ouvi-te. Falaste do passado, outra vez, mais uma vez, ( recordar é viver, eu gosto tanto de recordar...), mostraste-me a receita nova que recortaste de uma revista. Um dia hás-de experimentá-la, um dia, quando não estiveres tão cansada e não tiveres tantas dores. Como sempre. E no entanto... algo mudara...
Talvez nos teus olhos. Realmente não a vi hoje, aquela luz que os ilumina, que me ilumina, que te segura com força as palavras cada vez mais hesitantes, mais raras. Os teus olhos hoje não tinham brilho, não tinham luz. Estavam apagados, fechando-te para a vida, deixando-te nessa antecâmara onde estão os que desistem e se limitam a esperar. Sem luta, sem revolta... Na paciente espera das almas que partem antes do tempo e deixam os corpos como invólucros silenciosos num vazio que dói. E os corpos esperam porque não há mais nada a fazer. E os corpos esperam... esperam apenas o momento de regressar à alma.
Em silêncio. No vazio.

Abraço-te


Cai o silêncio. E abraça-me.
Não sinto medo e deixo-o ficar... e deixo-me ficar.
Como se fosse nos teus braços.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Dia de Camões


No dia deste poeta imortal, era imperioso que lhe deixasse aqui uma humilde homenagem. A escolha foi difícil, mas o soneto que publico é para mim, um dos mais belos... e o terceto final é o rosto deste espaço... Um espaço tão meu, onde me sinto tão bem, e onde deixo escorrer as inquietudes.


Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.

Luís de Camões, Poesia Lírica

Ó STORA...


... porque é que os poetas são tão tristes?
.......................................................................
( E tu? Que lhes respondias?)

segunda-feira, 9 de junho de 2008

O Concílio dos Deuses


Hoje recebi um presente. E nem sequer é o meu aniversário... talvez por isso mesmo, este presente ganhou um aroma diferente, o paladar especial que só possuem as coisas preciosas e que o dinheiro não compra porque não estão à venda. Hoje ofereceram-me um poema. O soneto, para ser mais justa, foi-me oferecido por um colega de quem eu gosto muito, com quem me embrenho em longas tertúlias, onde quase sempre ele fala e eu escuto. É uma pessoa encantadora, de uma humildade surpreendente e um poço de sabedoria a quem recorro sempre que preciso de tirar dúvidas. E ele sabe de tudo um pouco e muito de algumas coisas... Filosofia, Cinema, Arte, Música, Literatura, História, Mitologia Clássica, Pintura, Ciências Políticas, Astronomia, Jardinagem... e a lista poderia continuar... Mas, como todos os grandes sábios, este colega é de uma candura inesperada, tem uma paciência infinita para me aturar e ensinar e nunca se ri quando esbarra na minha pequenez... porque à beira dele sinto que nada sei. É um estudioso compulsivo mas tem as mãos feridas das longas horas que gasta a plantar as suas árvores e as suas flores, com os dedos enterrados na terra para melhor lhe sentir o cheiro e a temperatura... Não haverá muitos seres humanos assim e por isso eu sinto um orgulho enorme por partilhar com ele nos intervalos, os cigarros fumados à chuva ou ao sol enquanto a conversa flui sempre até ao soar da campainha...
E porque entendo que as coisas bonitas devem ser partilhadas, aqui fica o meu presente, um soneto lindíssimo que foi feito depois da observação nos céus da Conjunção de Vénus com Júpiter.
Obrigada, M.!


Corri na praia à noite e à lua que espreita
A sua vez de reinar no império da espuma.
Vinha o sol de cumprir o seu périplo que uma
Luminescência astral recordava perfeita.

Dois luzeiros sucedem à poalha que enfeita
O diadema rival do ouro de Montezuma.
Reconheço o maior, da filha que enciúma
O tonitroante pai que com ela se deita.

Estranho é este acaso tão perto do ocaso
Que os dois planetas une em incestuoso laço
Que a mesma rota seguem de um perene exílio

Como aos amantes que um avaro tempo enlace
Para então afastar em cruel paralaxe.
Para tão grandes deuses tão breve concílio!

J.M.

Sentido único


Faz o que for necessário para seres feliz. Mas não te esqueças que a Felicidade é um sentimento simples, tu podes encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceberes a sua simplicidade.

Mário Quintana

domingo, 8 de junho de 2008

A lógica da quimera...


Porque é que todos os dias, a todas as horas, de todas as possibilidades, escolhemos sempre as impossíveis?

Café com açúcar


No silêncio do café quase deserto, a voz soou um pouco alta de mais, distraindo a minha atenção da papelada em que me embrenhava.
- Como é que sabias? - perguntou ela, respirando um sorriso meigo e batendo devagar as compridas pestanas pinceladas com rímel negro.
- Eu não sabia... O meu coração é que sabia. - respondeu ele, após uma longa hesitação, durante a qual dobrava cuidadosamente o pacote de açúcar, talvez para esconder o tremor das mãos, que escorria visível.
- Tu não sabias, o teu coração é que sabia... - repetiu ela baixinho, enrolando nos dedos os cabelos lisos que lhe tombavam sobre o rosto.
- É que... sabes... há coisas que o coração reconhece... antes da cabeça descobrir. E comigo foi assim. Simplesmente, o meu coração sabia que te procurava. Que eras tu.
Ficaram em silêncio, olhando-se nos olhos, as mãos como pássaros, enlaçando-se num voo doce onde desaguavam mil desejos.
Eu voltei a concentrar a minha atenção nos papéis, desta vez com uma espécie de conforto a aquecer-me a alma.
E não sei bem porquê, o café soube-me melhor.

sábado, 7 de junho de 2008

INXALÁ


Quem nunca pensou em largar
tudo de repente e partir?
Quem nunca amou perdidamente?

Por isso se parte. Se foge. Se finge que se foge. Porque não se foge nada. Não se parte. Não se descobrem terras nem estranhos. Descobre-se cada um a si mesmo. Descobre-se a mão que se tinha nas mãos. O sentido que se traz dentro das mãos. Por isso não se parte realmente. Só se finge que se parte. E a viagem é a forma mais fácil de fingir. E assim foi ela para onde achava que devia ir porque o seu coração a guiava, e deve ter voltado para aquilo de que nunca partira. E assim fugi eu para onde achava que me podia perder porque perdera o meu coração e já não era possível voltar para o que de mim partira. Porque se partira.

Carlos Quiroga, INXALÁ - Espero por ti na Abissínia

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Parabéns, Filho!


E cresceste, cresceste tanto que já não consigo carregar-te no colo... só aninhar-te no coração, dentro do meu peito. Hoje os meus braços já não têm forças para te segurar e agora és tu quem me levanta do chão... E quando dançámos a última vez (na cozinha, lembras-te?), reparei que os teus olhos estão quase à altura dos meus... Como cresceste, meu Pardalito!
Tens a vida toda pela frente, uma vida que desejo te sorria sempre, e como hoje é o teu dia, vive-o bem, com a alegria desse teu sentido de humor que afasta as nuvens mais negras...
Hoje podes quebrar algumas regras... esquecer os livros e os TPCs, brincar à vontade, beber litros de coca-cola, comer quilos de mousse de manga e deitar-te tarde... hoje eu finjo que não vejo... Hoje aperto-te num abraço muito estreito e só desejo que sejas sempre muito feliz!
Porque te amo muito...!