quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Adio-me

 
já não te aguardo. adio-me.

valter hugo mãe

O canto dos poetas


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
 
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles, in Obra Poética

terça-feira, 29 de outubro de 2013

(...)

 
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge.

Bernardo Soares, in Livro do Desassossego

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

6 anos :)


Hoje o De Profundis faz seis anos.
Os que me conhecem acham que ele é o meu rosto... Eu sei que ele é o espelho onde me fito na eterna tentativa de me compreender, uma espécie de escadaria que desço até aos confins do que não entendo... 
Seis anos depois, o meu blogue está mais vivo do que nunca, mas mantém-se um humilde espaço de despojamento e entrega. Por isso, aos visitantes que partilham comentários, aos que entram e saem silenciosamente, aos que gastam tempo para me ler, aos que me têm entre os favoritos, o meu muito obrigada! Não tenho muito para oferecer, talvez só a cor mágica de seis velas e a luz do meu mais sincero sorriso. 
Aceitem brindar comigo e sejam muito bem vindos ao ano 7.


domingo, 20 de outubro de 2013

No teu abraço...

A arrumar gavetas mortas, apareceste-me tu de repente, do meio das sombras e do silêncio. Não contava contigo, a sorrires-me do fundo da fotografia antiga de meio corpo, tal e qual como eu te recordo, o vestido preto com bolinhas brancas e a gola de renda de Veneza, caríssima, que tinhas encomendado na retrosaria do mercado e que tu mesma coseste, com pontos pacientes e perfeitos. Sorris-me. E é o mesmo sorriso com que me ensinavas lengalengas e trava-línguas, provérbios e pequenos poemas que ainda hoje recito sem hesitar... Os estranhos labirintos da memória cruzam-se em imagens que eu não sabia que guardava ainda e devolvem-me os teus olhos meigos cheios de luz... Como sabias que hoje eu precisava tanto de ti? Como adivinhaste? Encosto-me à parede e sento-me no chão com a tua foto entre as mãos, roubo-lhe cada detalhe, todos os pormenores... Choro de saudade, no teu colo... E então, vinda cá de dentro, talvez do coração, a tua voz roubada ao passado, repete baixinho, num embalo que me apazigua, todo cheio de doçura:
 
Rei, Capitão,
Soldado, Ladrão,
Menina bonita
do meu coração...   
 
Faço-me menina, outra vez... E a noite veste-se de silêncio só para te escutar...

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Dias assim


Há dias em que morro de amor.
Nos outros, de tão desamado,
morro um pouco mais.

Casimiro de Brito, in Arte de Bem Morrer
 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Palavras desenhadas

 
desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas, os sinais, a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor
e diz-me o que de mim amaste
noutros corpos, noutras camas, noutra pele
prometo que não choro
mas repete as palavras um dia minhas
que sem querer misturaste nas tuas
e levaste com as chaves de casa e os documentos do carro
e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste.

Alice Vieira, in Dois corpos tombando na água


Da leitura

 
O acto de ler reabre feridas. Nos livros
em que isso acontece, com frequência,
poderia ao menos haver um aviso na capa;
assim como se faz com as carteiras de tabaco,
embora se saiba que poucos deixam
de fumar
por isso.
 
Teresa M. G. Jardim, in Jogos Radicais

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Palavras fechadas

 
Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.


Pedro Mexia, "As Gavetas"

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Não chores

 
Não chores. Prometo virar-me do avesso, fazer das tripas coração, revolver céus e terra, encontrar para ti o pote de ouro no fim do arco-íris... Prometo. Por favor, não chores. Não chores mais. As tuas lágrimas pesam-me como pedras no coração, são ácido que me corrói, que me rasga a pele, penetram fundo dentro de mim, misturam-se com o meu sangue e envenenam-me, matam-me aos poucos de tristeza... Deixa-me abraçar-te e contar-te o quanto te amo, o pilar que és para mim, minha terra, chão, raízes, o eixo que faz mover o centro do meu mundo... Não contes os dias... Não os contes. A tua matemática esmaga o resto da minha alegria, não vês...? Da morte nada sabemos, hoje é ainda vida e amanhã fará sol... Não chores. Olha, vou vestir-te um vestido bonito, o teu preferido, e se as tuas pernas não quiserem andar vou carregar-te ao colo como tu fazias comigo quando eu era pequenina, queres? Vou meter-te no meu carro e levar-te a ver o mar, as gaivotas, sentamo-nos na areia húmida a sentir o vento na cara, de olhos fechados... Quero que sintas a maresia, eu sei, tens tantas saudades do cheiro do mar! Jura-me que não choras mais, que não me falas outra vez da estrada cada vez mais curta, da curva onde deixarei de te ver para sempre, do teu nome repetido em silêncio nos dias vazios de ti... Também tenho tanto medo, sabes? Pudesse eu subir montanhas, atravessar rios e mares, arrancar todas as estrelas do céu para te tirar essas dores e fá-lo-ia... E não temas, se as tuas pernas não quiserem andar ou os meus braços não te conseguirem carregar, prometo trazer-te os meus olhos cheios de água salgada para que neles possas encontrar o mar. Não chores mais... Por favor, não chores.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Sem margens

Escrevo. O cão rastejou aos poucos pela porta entreaberta e deitou de mansinho a cabeça quente nos meus pés. Os olhos de mel olham-me suplicantes... A chuva parou. No facebook os meus alunos comentam a foto que alguém tirou à socapa numa sala de aula. Não sabem que eu estou aqui. Ouço Natalie Cole, até à exaustão. Escrevo. O texto solta-se devagar, resvala, escorrega, imparável, quer ser rio de prosa nos meus dedos... Fecho a janela do facebook, deixo ficar o cão. Roubo ao coração aquilo que sinto... Hoje vou conseguir escrever. Sem margens. Sem parar.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Uma palavra



Por vezes,
de um dia que vivemos,
de um filme, de um poema
por vezes de alguém,
conservamos uma palavra
Não saberemos explicar porquê,
mas essa palavra aloja-se dentro do nosso pensamento,
atravessa vagarosamente os nossos silêncios,
fecha-se à chave dentro de nós.

José Tolentino de Mendonça