segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Palavras grandes


Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fernando Pessoa, Liberdade

domingo, 28 de outubro de 2007

Carta Aberta aos meus Alunos

Porque por vezes é imperioso soltar amarras, sem medir ventos nem marés e embarcar no sonho, ao sabor da aventura.Porque por vezes não achamos as palavras certas para desfiar o turbilhão de emoções que nos assola a alma.Porque por vezes, não está lá o confidente fiel, o secreto depositário dos nossos anseios, dos nossos medos mais recônditos.Porque por vezes as palavras nos chamam, querem ser gritadas, agitadas, atiradas ao sabor das tormentas da vida.Porque por vezes, muitas vezes, estamos felizes e não temos a quem contar, não temos como contar...Porque por vezes, algumas vezes, o mundo e nós andamos desconcertados, desacertados, desatinados.Porque por vezes, tantas vezes!, temos um brilho estranho nas pregas de um sorriso, uma luz evidente, num olhar que ninguém vê.Porque por vezes, imensas vezes, nos apetece tirar a máscara e desnudar a alma.Porque...nessas alturas, só as palavras nos guiam o voo, só elas nos concedem o desafio de nos tentarmos compreender a nós próprios, de esboçar emoções solitárias e ficarmos felizes e apaziguados...
Escrever é preciso.Porque sim.
Sejam felizes...com as palavras!

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Palavras tristes


Havia
na minha rua
uma árvore triste.

Quebrou-a o vento.

Ficou tombada,
dias e dias,
sem um lamento.

(Assim fiquei quando tu partiste...)

Saul Dias, Obra Poética

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Doçura


Vem sentar-te aqui... à minha beira.
Vamos conversar.
Diz-me em que rumos te perdeste,
em que batalhas sangrentas anda o teu corpo ferido...
Fala-me de ti.
Há tanto tempo que não conversamos,
diz-me o que te aconteceu nessas viagens
onde te embrenhaste sem mim...
Trazes o rosto marcado
pelos ventos gelados da dor,
trazes o corpo cansado
da revolta devastadora
de marés adversas...
Deixa-me limpar-te da face
esse rasto teimoso da lágrima
que denuncia os vendavais onde te embrulhaste.
Conta-me as tuas mágoas,
saberei escutar-te com as tuas mãos entre as minhas...
Rasga o silêncio a que te algemaste
e rompe a saudade que me rói o peito, que me devasta...
Desce a escadaria do teu castelo de solidão

e

Aninha-te assim, no meu abraço,
no meu colo
que hoje é todo para ti.
Só para ti.
Com doçura.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

O Brilho da Memória


No fundo da minha memória, há um baloiço de madeira preso ao tecto do sótão com grossas cordas cheias de nós, como os cabos de um navio.
No fundo da minha memória, há um sótão cheio de sol, com tábuas carcomidas, baús repletos de roupa velha, mobília gasta abandonada a um canto e uma simpática e barulhenta máquina de costura onde eu encostava a barriga vendo os tecidos transformarem-se em peças de roupa que estreava ao domingo.Há batatas polvilhadas com remédio de escaravelho, tapadas com jornais, a cobrir o chão.Há revistas amarelecidas, recortadas, com páginas ternamente dobradas nos cantos e empilhadas como um castelo de sonhos.
No fundo da minha memória, há uma velha escada de madeira que rangia sob o peso dos meus passos felizes e um corrimão onde eu mergulhava sem medo para desaguar incólume no rés-do-chão.
No fundo da minha memória, há uma casa antiga que cheirava a cevada quente e torradas com manteiga, há o som de um rádio cantarolando baixinho, há uma televisão a preto e branco coberta com um pano de crochet e uma salinha de estar pequenina, com a parede do fundo coberta até ao tecto de estantes com livros, perfeitamente agrupados por números e colecções.Há um sofá de couro onde eu me perdia em viagens infinitas, nas asas das palavras dos poetas.Há os óculos do meu avô, abandonados sobre a mesa, ao lado de um cinzeiro de porcelana pintado de azul e branco.
No fundo da minha memória, há um quartinho minúsculo, sem janelas, onde contrariada dormia a sesta e onde a avó me colocava sobre um banco e me ajustava ao corpo os vestidos que costurava com amor e a boca cheia de alfinetes...
No fundo da minha memória, há uma cozinha de mármore que cheirava a leite creme coberto de açucar, queimado com uma pá de metal.Há louça de barro pintado com provérbios e dizeres que eu não entendia...
No fundo da minha memória, há um quintal plantado com esmero e amor, onde o cebolo, a salsa e as couves rebentavam num grito viçoso... e há canteiros pequeninos com margaridas, dálias, rosas e crisântemos que se erguiam ainda orvalhados, fulgindo ao sol, a rebentar de exuberância.Há uma capoeira com galinhas poedeiras que eram cruelmente mergulhadas em tinas cheias de água quando ficavam chocas.E todas elas tinham nome, as galinhas da minha memória e eu passeava-as com um cordel nos intervalos da caça aos caracóis, joaninhas e borboletas, que perseguia com a alegria ensurdecedora dos meus saltos de criança.
No fundo da minha memória, há um tanque de pedra, tapado com uma tábua para não se transformar em abrigo dos gatos vadios, onde a avó lavava roupa, batendo-a com força, esfregando, torcendo, enxugando, com a língua de fora...
No fundo da minha memória, há uma bicicleta cor-de-laranja com as rodas pintadas de branco, partilhada nos fins de tarde, quando os deveres estavam feitos...
No fundo da minha memória, há um colo onde eu me sentava limpando o sangue e desinfectando os arranhões e as feridas das batalhas diárias... e há um colo onde eu me aninhava cada noite, rezando baixinho ao Menino Jesus e ao Anjinho da Guarda, antes que o sono e o cansaço me fizessem cerrar as pálpebras no abraço sereno em que me abandonava...
No fundo da minha memória, há um brilho doce, uma luz suave que me norteia, que me conduz de regresso aos lugares a que pertenço e desenha a rota do meu marear, afastando-me dos rochedos quotidianos, alertando-me para os perigos onde o meu peito se possa despedaçar.

Assalta-me às vezes o medo de romper o fundo da minha memória e deixar fugir as recordações, uma a uma, em revoadas de luz que me deixem depois os passos perdidos na escuridão...

Que medo angustiante sinto às vezes, de perder o brilho da minha memória!

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Palavras roubadas


Sonho, mas não parece.
Nem eu quero que pareça.
É por dentro que eu gosto que aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um sentimento
De que se tem pudor.

Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o gado.

Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma vida,
É quase à queima-roupa que os atiro
Contra a serenidade de quem passa.
Então, já não sou eu que testemunho
A graça
Da poesia:
É ela, prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão aberta,
Como chispa que salta da fogueira,
Numa agressiva fúria se liberta.

Miguel Torga, Orpheu Rebelde

domingo, 21 de outubro de 2007

De Profundis


Nas profundezas da minha alma, nas entranhas do meu ser, há uma voz inquieta que se agita, fazendo gemer as algemas, os grilhões, os ferros que a oprimem. Aqui... aqui solto-lhe as amarras, deixo-a correr sem destino, à desfilada no meu peito. Aqui ela é livre e demora-se.

Seja bem vindo a este espaço.

Génese


"Põe tudo o que és no mínimo que fazes."

Fernando Pessoa