sábado, 28 de setembro de 2013

Da poesia

 
quando o poema é bom
não te aperta a mão: aperta-te a garganta


Ana Hatherly

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Pacto de incêndio

 
Segura o meu corpo ferido
não me deixes cair
 
Sempre soube
quando fizemos
um pacto de incêndio
que só Deus
tem umas mãos tão grandes
como as tuas
 
É outono outra vez
Promete
que não me deixas cair


terça-feira, 24 de setembro de 2013

A negro


Estendo as palavras
na seda do papel
na sede do texto
que há-de vir

ouço-lhes o respirar
deixo-as cair
na redondez do silêncio

e tombam vazias
no escuro
que há em mim

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Ó Stora...

A meio da tarde o meu filho mandou-me uma sms a contar que o Ramos Rosa tinha morrido. Li-a num intervalo entre duas aulas e emudeci... Dentro de mim, declamava o "Não posso adiar o amor", tentava descobrir se ainda o sabia de cor... E minutos mais tarde, eram mais lentos, mais arrastados os meus passos enquanto subia as escadas até ao segundo piso para ir dar a última aula do dia. Demorei-me à porta da sala, procurando as chaves dentro da pasta, envolvida pelas risadas alegres e pelas vozes dos alunos, também eles já cansados dos stores e dos toques, dos livros e dos intervalos... Cá dentro era ainda o poema do Ramos Rosa, atravessado na garganta, arranhando-me as sílabas, resgatando o resto da minha alegria. Ou da minha energia, não sei bem... E depois entramos e eles demoraram a serenar, é sempre assim a última aula, mais barulhenta, mais cansativa... Cumprimentei-os. Pedi-lhes silêncio. Sorri-lhes. Disse-lhes que lhes queria oferecer um poema. E disse-o de rajada, de um fôlego, sem hesitações ou pausas ou enganos... No fim ficaram em silêncio, atirando-me olhares curiosos e perguntei-lhes se conheciam o António Ramos Rosa. Não, nunca tinham ouvido falar. E pronto, foi o mote para lhes falar do autor, do lindíssimo livro Viagem através de uma nebulosa, de metáforas e de imagens, de heranças literárias e de património e riqueza cultural... Também falamos de morte e de vida, do amor que se adia, de solidão e de felicidade. Falamos de escolhas e de poesia. Falamos do Urbano Tavares Rodrigues, da Rosa Lobato de Faria, da Matilde Rosa Araújo e do David Mourão-Ferreira... falamos de escritores desaparecidos e de livros inesquecíveis... Alguns prometeram pesquisar e trazer um poema na próxima aula. Outros descobrirão quem foi António Ramos Rosa e contarão à turma. Talvez façam ainda um trabalho de grupo e uma coletânea de poesia... Falou-se num blogue da turma, criado para encerrar tesouros perdidos...
E depois tocou. Saímos e desci as escadas atrás deles, ouvindo-os falar ainda do Ramos Rosa, trocando ideias, distribuindo tarefas, negociando e organizando-se para a seleção de textos... Não lhes pedi nada... Só lhes abri caminho, só lhes mostrei que há pessoas que não merecem ser esquecidas, há pessoas a quem devemos a pureza da poesia e o respeito pela língua que nos une, esta pátria onde as armas são apenas as palavras, carregadas com as balas das emoções.


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa, in Viagem Através de uma Nebulosa


domingo, 22 de setembro de 2013

OUTONO


É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

Eugénio de Andrade, in Obra Poética

sábado, 21 de setembro de 2013

Sábado

Petrificada no muro quente, a lagartixa permanece imóvel ao sol, como se ali pertencesse desde o início de todos os tempos e nos canteiros que ladeiam a casa, a terra, muito seca, tem sulcos abertos, profundos, como cicatrizes de feridas antigas... Procuro os caracóis que deixaram um rasto brilhante no pé das roseiras e nas folhas das hortências e revolvo a terra para arrancar pela raiz as ervas daninhas... Há uma música a tocar algures, ao longe, no fundo da rua. É tão bela... Há tanto tempo que não a ouvia... Sei-a de cor e canto-a baixinho enquanto corto com cuidado os ramos mortos da buganvília que explodiu este ano numa mancha de cor lacre... Afasto os cabelos da testa molhada de suor e varro sem pressas as folhas queimadas... No ar há um cheiro que conheço bem e ergo o rosto para o céu limpo de nuvens, com os olhos fechados... Concentro-me no zunido infinito das abelhas, no ressonar preguiçoso dos cães e nos acordes alegres do canto maravilhoso das aves... É sábado... Sorrio... Nenhuma inquietude me arranha as portas fechadas do coração, hoje serenamente seladas com uma braçada de flores. 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Do abismo


Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos — um poço fitando o Céu.

Bernardo Soares in Livro do Desassossego
 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Ao espelho


Viver é, no fundo, apenas isso: esperar a nossa vez.
Por isso, a grande pergunta que tens de fazer a ti mesmo é: o que raios estás a fazer na sala de espera?
É o que fazes na sala da espera que define aquilo que foi a tua vida.

Pedro Chagas Freitas, in In Sexus Veritas

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Da ausência



Quanto mais longe, mais perto me sinto de ti, como se os teus passos estivessem aqui ao pé de mim e eu pudesse seguir-te e falar-te e dizer-te quanto te amo e como te procuro, no meio de uma destas ruas em que te vejo, zangado de saudade, no céu claro, no dia frio.
Devolve-me a minha vida e o meu tempo. Diz qualquer coisa a este coração palerma que não sabe nada de nada, que julga que andas aqui perto e chama sem parar por ti.

Miguel Esteves Cardoso, in O Amor é Fodido
 

domingo, 15 de setembro de 2013

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Palavras segredadas

 
diz-me um segredo
qualquer coisa inacessível
dessa tua alma

alguma coisa
que eu possa ainda fingir
que não sei

gil t. sousa

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Talvez


Sim, dizias tu, mas em seguida
corrigiste: talvez. Esta
é a única palavra
que não tem casa. Que mora
no intervalo
entre o som e o silêncio.

Albano Martins, in Palinódias, palimpsestos

Como se Deus soubesse

 
Uns entardeceres magníficos, indescritíveis, têm pintado a minha cidade. Vale a pena parar, emudecida pelo poente ensanguentado, desembrulhado em tons violáceos e rosados que paralisam o olhar e suspendem a respiração... Vale a pena fazer a marginal a pé, de olhos postos no horizonte estranhamente rubro, estranhamente quente. Nem uma brisa suave empurra as nuvens tingidas de inusitados vermelhos, e a lua muito clara, muito brilhante, mentirosa no seu quarto crescente, parece estender um corredor de luz no caminho da traineira que se faz ao mar, perseguida pela revoada e pelos gritos das gaivotas... São apenas uns minutos, em que não me atrevo a respirar com o peito apertado, sufocado pela beleza do instante. Uns minutos antes da escuridão, tão efémeros, tão belos...! Como se Deus soubesse que eu ali estou, parada, esperando que os Seus dedos pintem o céu e o mar. Como se Deus soubesse  e me sorrisse um sorriso bondoso, me presenteasse com a alegria fugaz de um espetáculo inexplicável, uns pequeníssimos instantes que fazem o tesouro dos meus dias.  


terça-feira, 10 de setembro de 2013

(...)


os dias sem ninguém
pequeníssimos recados escritos à pressa
amachucados nos dedos

Al Berto, in O Medo

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Do Sonho



Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
- Dói-te alguma coisa?
- Dói-me a vida, doutor....
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
- E o que fazes quando te assaltam essas dores?
- O que melhor sei fazer, excelência.
- E o que é?
- É sonhar.

Mia Couto, "Sonhar" in O Fio das Missangas

sábado, 7 de setembro de 2013

Palavras infinitas


Inútil definir este animal aflito,
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.



António Gedeão, "Homem" in Poesia Completa

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A Luz do Silêncio



Um dia virá
em que a minha porta
permanecerá fechada
em que não atenderei o telefone
em que não perguntarei
se querem comer alguma coisa
em que não recomendarei
que levem os casacos
porque a noite se adivinha fresca.

Só nos meus versos poderão encontrar
a minha promessa de amor eterno.

Não chorem; eu não morri
apenas me embriaguei
de luz e de silêncio.



Rosa Lobato de Faria, in A Noite Inteira Já Não Chega

 

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Asas


Que difícil que é a vida dos homens. Eles não têm asas para voar por cima das coisas más.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in A Fada Oriana

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Palavras de prata... Para ti.

 
No fim de contas são poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
No fim de contas, são pouquíssimas as coisas
que na verdade importam nesta vida:
poder amar alguém e ser amado,
não morrer depois dos nossos filhos.

Amalia Bautista