segunda-feira, 27 de abril de 2015

Quase...


deixei-te fugir por entre
os dedos de uma só mão

aquela com que te
prendia de encontro à alma

Jorge Reis-Sá, in quase e outros poemas de querença

sábado, 25 de abril de 2015

A sétima onda


Na minha cidade, uma mulher matou-se. Durante toda a semana, por todo o lado se falava, se comentava, se tentava descobrir que razões teria para desistir da vida... Tinha 63 anos, e matou-se. No mercado, nas bancas da fruta e do peixe, as vendedeiras com voz consternada diziam só que ela andava mais triste, mais calada... Ninguém podia supor, uma mulher tão calma, tão simpática, tão serena, a casa sempre num brinquinho, comidinha a horas, roupinha do homem e da filha num primor que dava gosto...  Chocadas, as pessoas que a conheciam não encontram motivo algum para um ato tão desesperado. Sabe-se apenas que deixou um bilhete em cima da mesa da cozinha: Se eu me atrasar, recolham a roupa. 
Conta-se que no telemóvel da mulher que se matou, havia três mensagens, enviadas pouco antes da decisão tomada - para três amigas, todas com o mesmo texto: Posso ir aí a casa? Os relatórios deram as sms como entregues, mas ninguém lhe respondeu. Tenho pensado se o silêncio das amigas terá pesado na decisão da mulher que se sentou no cais, sozinha, à chuva e ao vento, a contar as ondas à espera da sétima, que a guardaria para sempre no ventre gelado e escuro do mar... Tenho pensado nisto, em quantas vezes olhamos os outros, os que amamos, e não reparamos que andam mais tristes, mais calados, talvez a controlar o ritmo das marés, quem sabe, também à espera da sétima onda... 
A casa da mulher que se matou está fechada, abandonada. Somente no estendal da varanda, a roupa que ninguém apanhou enrodilhou-se com o vento, encharcou-a a chuva, e lá continua cosida com o arame, fina como a lâmina de uma faca, branca como uma mordaça... - Tão abandonada, tão gelada, tão só, como se fosse o único testemunho da mulher que se matou, sem ninguém saber porquê.   

terça-feira, 14 de abril de 2015

Partir


A mulher olhou em volta toda a sua vida, guardada dentro de caixas. Empacotados, empilhados, todos os anos que vivera, tudo aquilo que a tornara na pessoa que era. A marcador vermelho, legendara os segredos da escuridão dentro das caixas: os linhos da avó; as porcelanas da casa de Trás-os-Montes; as bonecas; os livros; os enfeites de Natal; os cd's e os dvd's; os livros do pai; as coleções do avô; os brinquedos dos miúdos... Caixas e caixas, lembrando-lhe a vida que vivera, tudo aquilo que acumulara... Memórias, a maior parte dos caixotes. Tralha encerrada dentro de móveis, de gavetas, coisas destinadas à noite dos olhos, ocultas, condenadas ao avesso da claridade. Sentiu-se de repente cansada do silêncio que transportava, que arrastava consigo pela vida fora... Cansada do espaço ocupado por coisas que nunca via, por livros que não lia, cd's que não ouvia, copos por onde não bebia, pratos onde não comia... Cansada da sua tralha.
A mulher levantou-se, acendeu um cigarro e saiu para o jardim. Tanta coisa ficaria...! Não havia caixas onde guardar as rosas que alinhara nos canteiros, o cipreste imponente apontando o céu, orgulhoso da sua verticalidade serena, as azáleas rubras e perfumadas, a oliveira que resistia à secura de todos os verões, à neve de todos os invernos, o rododendro explodindo em novelões de sangue... Tinha de os deixar para trás e continuar o caminho mais vazia. Depois olhou o céu que anoitecia, sentiu os seus olhos tristes e percebeu: sim, para além da tralha, havia mais coisas que levava consigo - o cheiro do amanhecer, o olhar fiel dos seus cães, o trinado das aves na ensurdecedora orquestra ao morrer da luz, o cheiro da terra molhada e da relva acabada de cortar, a maciez das rosas, o piar do mocho no aqueduto em ruínas, a voz do vento, o som da chuva molhando as árvores que plantara, as lebres assustadas atravessando a estrada... Tudo isso que não ocupava espaço, não ficaria para trás, iria com ela, nas caixas empilhadas por trás do olhar, caídas num vão da memória - dentro do coração.   

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Da leitura


Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo... Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Clarice Lispector, in A Descoberta do Mundo

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Da Saudade


Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,
É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,
A casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais.

Álvaro de Campos, "Saudade" (excerto) in Livro de Versos

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Páscoa Feliz


É tempo de ressurreição e de mudança - Reinvente-se. Renove-se. Renasça.
Seja feliz!

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Claridade


É um pequeno milagre, esta claridade.
Os telhados acendem-se como fornalhas,
permanece vermelha uma parte do céu.
A noite, se existiu, foi para nós um erro
de perspectiva, uma ilusão, um ardil de
sombras e estrelas perdidas no escuro.

Agora é de um azul sem mácula, o céu;
a cidade, um corpo branco a levantar-se;
e esta luz — rasa, rosa, crua — já não um
pequeno milagre, mas uma evidência.

José Mário Silva, "Manhã" in Luz Indecisa

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Palavras de brincar


Brinca comigo à procura
de uma estrela noutro céu
Brinca e leva a noite escura
com os sonhos que Deus te deu

Começa devagarinho
- por favor, não tenhas medo,
que meu coração fez ninho
dentro do teu em segredo

Acorda os anjos que formem
com a luz do teu sorriso
Faz com que não se conformem
e saiam do paraíso

Deixa-os entrar de repente
no teu quarto, a esta hora
em que a verdade mais quente
é o sono que te devora.

Brinca comigo às escuras,
ensina-me o que não sei
Onde estás? Porque procuras
o coração que te dei?

Fernando Pinto do Amaral, "Brincadeira" in Poemas Escolhidos