terça-feira, 29 de julho de 2014

Palavras roubadas


E aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam ouvir a música.

Friedrich Nietzsche

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Noite. Navio.

  
Na noite, a neblina é um muro pesado tombando sobre os meus olhos... Encosto-me à linha do horizonte à espera de estradas iluminadas de luar, de desassossegos e de assombros, de janelas e de respostas para memórias antigas. Tudo está parado e silencioso.
Rente ao sonho, adivinho os contornos imensos de um navio e deixo que o meu coração em fuga viaje escondido no porão infinito...
Fico com o peito vazio. Fico só com o meu corpo. Com esta pele que cheira a mar. 

domingo, 27 de julho de 2014

Metamorfose


Quem tenta ajudar uma borboleta
a sair do casulo mata-a.
Quem tenta ajudar um broto
a sair da semente destrói-o.
Há certas coisas que não podem ser ajudadas.
Têm que acontecer de dentro para fora.

Rubem Alves

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Quero solidão

 
Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.
 
 
Cecília Meireles, in Obra Poética

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Palavras roubadas


Estás linda hoje.
Se falar do céu solto e do mar calmo... não ligues.
Quero dizer-te apenas que és maravilhosa.

Não preciso falar do céu, nem do mar,
nem daquela brisa suave que te desponta sempre um sorriso.
Não preciso falar de nada disso.
Estás linda hoje, e basta-me.

Entre os campos sulcados dos meus dedos está o teu retrato.
A imagem de ti quando te vi hoje. Linda!

E depois,
claro que sinto a relva fresca a brincar com os meus pés.
E também o Sol, o Sol aquece-me quase tanto como o teu olhar.
Sei tudo sobre os salpicos salgados,
e sobre os trilhos direitos da areia.
Sobre os pássaros alvoroçados, que persigo porque me apetece,
e sobre o riso das crianças.
E conheço ventos fortes e outros mais quietos
e os tímidos bichinhos escapulindo-se pelas rochas batidas.

Estás linda hoje.

Caída ao acaso no lençol húmido da areia,
os teus cabelos irrequietos, o teu rosto a escurecer aos poucos,
as tuas mãos e os teus pés, e aquela curva escondida por trás do teu pescoço.
Podia dizer-te mais, mas, que mais há para dizer...
Estás linda hoje,
e isso basta-me.

Casimiro Teixeira, "A tua beleza de sempre" in Que Alguém Saiba que és um Homem

quarta-feira, 16 de julho de 2014

De Profundis


Saborear a paz com o mundo. A paz com os homens.
E no entanto, travar guerras comigo na espuma dos dias, tantas vezes, na ronda das noites... Armadilhar os instantes, mesmo os mais improváveis, no desejo impossível de roubar as asas às aves, de mergulhar fundo nos abismos, de ver de olhos fechados aquilo que não pode perder o brilho... Lançar mísseis terra-ar, rebentar bombas e espoletar granadas, cavar trincheiras para encurralar as emoções. Sabotar a desesperança. Armadilhar a memória - sou guerrilheira de mim, sniper de elite na precisão dos tiros, nos disparos que implodem as sombras, que despedaçam os fantasmas... Queimar-me. Ferir-me. Sangrar. Convocar todas as forças em ataques aéreos às janelas do olhar; atear fogo de chão no rasto dos meus passos. Incendiar cheiros e cores e músicas e palavras... Fazer puro terrorismo à infinita saudade... É uma guerra sem aliados nem alianças, sem tratados de paz nem acordos de cessar-fogo.
E depois, afinal, refugiar-me no bunker do coração, lamber feridas, curar as chagas no sal das marés. Trair o tempo. Iludir as sentinelas da razão. Depor todas as armas, rir das ironias do destino, continuar a querer os impossíveis, abrir as asas para voar mais longe... Tropeçar de ternura... Quem sabe, ir morrendo aos poucos, de excesso de paixão...
Render-me sem mágoa aos efeitos colaterais: a lágrima traidora, vigia teimosa e transparente aos outros, a encher de brilho a lonjura do olhar; talvez um bater mais forte do coração.
Em paz com o mundo. Em paz com os homens.
Debaixo da pele, todas as guerras são só minhas.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Palavras roubadas

(...)
Eu estou sempre a querer que deus exista. Devia existir nem que apenas para isto. Um deus com uma missão precisa. Uma só missão, já seria grandioso. A de nos permitir levar um carinho a quem amamos. Porque o amor sem anúncio de retorno torna-se o mais difícil dos amores. Mas é amor. Vale sempre a pena e é, em último caso, o que justifica tudo. Mesmo que o outro não nos possa responder, sabendo bem que nos ama também, enquanto o lembrarmos valeu a pena.
 
valter hugo mãe, "Judite" in Jornal "Público" (13 de julho 2014)

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sem que seja assim


vou buscar-te ao fim da tarde,
porque a noite só escurece contigo ao
meu lado, porque a noite aprende por ti
o caminho aberto das estrelas
 
vou buscar-te ao fim da tarde,
e verás como preparei a casa, como
escolhi a música, como, enfim, espalhei
os objectos mais impressionados contigo,
os que ganharam vida por se interporem
na espessura estreita que vai do meu
ao teu coração

e não mais devolvo, correndo todos os
riscos de não amanhecer nunca
numa loucura propositada por ti

não mais te devolvo,
ocuparás o mundo debaixo e sobre mim,
e não haverá mais mundo sem que seja assim


valter hugo mãe, in pornografia erudita

Dúplice


E eu não sei
Se é tempo de pousar os pés no chão
Ou enterrar a cabeça nas nuvens

terça-feira, 1 de julho de 2014

Julho

 
Nasci em julho, o meu mês preferido até à data em que fiz trinta anos. Nessa altura, a minha avó estava gravemente doente e sabendo que nada podia ser feito a não ser esperar, eu rezava para que ela ficasse durante todo o mês, para que não partisse durante o mês de julho... No dia mais triste de todos os meus aniversários, mais pálida do que nunca, ela abraçou-me e despediu-se de mim. Chorámos muito, sabíamos ambas que era a última festa onde ela estaria...
Julho era o mês dos meus anos, o mês da praia e das férias grandes, das noites quentes e dos jantares tardios, dos gelados, dos pés descalços e do corpo solto debaixo de vestidos leves... Era o mês da alegria e da serenidade, do respirar tranquilo, dos passos lentos pelas manhãs preguiçosas e do pulso liberto da tirania do relógio. Julho era o mês mais bonito do ano...
Agora, o mês de julho é apenas o mês em que a avó perdeu as forças e não conseguiu lutar mais. O mês em que a avó Ana me deixou e levou com ela um pedaço de mim. Um pedaço do meu coração, que anda por aí perdido numa mágoa infinita, embrulhado num luto eterno...