segunda-feira, 28 de maio de 2012

Teias de silêncio



Sim, deixei de escrever. Porque já não sei escrever, perdi-me das palavras, esqueci-me como se faz... Deixei de escrever, talvez nunca mais o faça, talvez seja esta a última noite em que escrevo. Sem dar conta e sem saber bem como, fui aprendendo a fazer outras coisas, a ficar mais em silêncio, a tentar guardar aquilo que sempre me escorreu por entre os dedos... Ouço o Caetano Veloso... E quando ouço o Caetano Veloso alguma coisa que não sei contar acontece em mim... Aprendi a amar a poesia, talvez nunca tenha sabido lê-la até hoje, e agora, acontece-me isto de me ficar um verso preso na garganta, de haver sempre uma palavra que se faz âncora num pedaço do meu coração... Há alturas até em que um verso teima em mim, se me agarra ao sangue e corre por dentro das veias todas as horas do meu dia... Não consigo libertar-me dele... Mando-o embora mas ele não vai. E então saio de casa com as palavras entre os dedos, presas ao peito como um colar tombado entre os seios, penduradas num olhar vazio, tão parecidas com uma lágrima... Há dias em que a poesia é como a música do Caetano Veloso, sei-a de cor, embrulho-a em todos os versos... e depois perco-a porque ela solta-se sozinha de mim, desata os nós, desfaz os laços, deixa-me tão só no vazio da cidade...  
Deixei de escrever. Porque se eu não disser nada, ninguém dirá nada. E então o silêncio é uma teia molhada e brilhante como chuva ou como onda do mar salgado que me prende, que tem uns braços sem fim que me envolvem e me embalam e me carregam no peito com ternura... assim... apenas uma mulher perdida da sua própria voz mas cheia de poesia e de música por dentro, escondida num lugar onde ninguém me dirá nada, onde ninguém me fará perguntas porque a ninguém interessará que eu já não saiba escrever. Nem sequer a mim. Muito menos a mim.  

domingo, 27 de maio de 2012

Ou então coisa nenhuma


Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantiga dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
a saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.

Rosa Lobato de Faria

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Um sopro do coração



Esquece o que eu escrevi, deita-te aqui perto
e ouve só as minhas palavras sem sentido,
o balbuciar que eu solto antes da voz,
tudo o que há tanto tempo trago preso na garganta.

Nem o ritmo da cantilena aprendida na infância,
nem a música da poesia:

ouve apenas o balbuciar, o sopro antes da voz,
quase um estertor, mas a dizer agora
que estamos vivos.

Luís Filipe Castro Mendes, in Lendas da Índia

A semântica das lágrimas


As lágrimas são um mapa pleno de significação e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar e o modo como o fazemos revela não só a temperatura dos sentimentos mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos mas choramos sempre para um outro ver.
As lágrimas são um traço tão pessoal como o olhar, ou o mover-se ou o andar.

José Tolentino de Mendonça

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Do silêncio



O silêncio é um texto fácil de ser lido errado.

Igor Cury

O mundo inteiro num abraço


(Aos meus filhos)

Em teu abraço eu abraço o que existe
a areia, o tempo, a árvore da chuva
E tudo vive para que eu viva:
sem ir tão longe posso vê-lo todo:
veio em tua vida todo o vivente.

Pablo Neruda

terça-feira, 22 de maio de 2012

Como se esquece?



Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma.
(…) É preciso aceitar esta mágoa, esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução.
(…) Dizem-nos para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.

Miguel Esteves Cardoso, Último Volume (Texto com supressões)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Entrego-te as palavras



Entrego-te as palavras
que entre meus dedos construí
para alimentar de ti os recantos da casa
invadindo o coração da noite

entrego-te as palavras com a redonda luz
das maçãs sobre a mesa e o rumor da água
rasgando o caminho da paixão em horas

que já não conseguimos sem ajuda recordar
mas que habitam a mais frágil memória de nós próprios

palavras jorrando dos meus olhos
invadindo-te o sono e tropeçando
nas esquinas das frases que decoro
ao longo dos veios da tua pele.


Alice Vieira, in Dois Corpos Tombando Na Água

domingo, 20 de maio de 2012

Por vezes uma estrela



 
A palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.

António Ramos Rosa, in Acordes

sábado, 19 de maio de 2012

Cá dentro



Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto, ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.


Carlos Drummond De Andrade, in Reunião 10 Livros de Poesia

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Vox populi, vox Dei


Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o sol desponta o melhor é começares a correr.

Provérbio africano

(...)


Quando não me apetecer escrever é porque não me apetece viver.

Mia Couto

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Um lugar chamado paz




Em cada um de nós há um segredo, uma paisagem interior com planícies invioláveis, vales de silêncio e paraísos secretos.

Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Os passageiros da noite


Enquanto o médico escrevia a receita com os comprimidos para dormir, a mulher pensava. Não os tomaria. Sorriu até com desdém da inocência daquele homem que nada tinha entendido. Ela não queria dormir. Nunca mais. Como contar ao médico que o sono lhe roubava as memórias que queria conservar e avivava as que ela queria esquecer para sempre? Como contar dos passageiros da noite, os invisíveis, que lhe arrancavam a pele enquanto dormia e a deixavam despida, a sangrar do lado de dentro? Como explicar que a noite tem negros dedos longos que se entrelaçam à volta do seu pescoço e lhe apertam a voz, lhe roubam as palavras de que precisa para contar o que acontece em si?

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Aves de silêncio e solidão






Somos folhas breves onde dormem
aves de silêncio e solidão.
Somos só folhas ou o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.

Eugénio de Andrade, in Poesias

Que importa...?



Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis da tua ausência.

Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.


Fernando Assis Pacheco, in A Musa Irregular

domingo, 13 de maio de 2012

Não penses


Não penses. Que raio de mania essa de estares sempre a querer pensar. Pensar é trocar uma flor por um silogismo, um vivo por um morto. Pensar é não ver. Olha apenas, vê. Está um dia enorme de sol. Talvez que de noite, acabou-se, como diz o filósofo da ave de Minerva. Mas não agora. Há alegria bastante para se não pensar, que é coisa sempre triste. Olha, escuta. Nas passagens de nível, havia um aviso de «pare, escute, olhe» com vistas ao atropelo dos comboios. É o aviso que devia haver nestes dias magníficos de sol. Olha a luz. Escuta a alegria dos pássaros. Não penses, que é sacrilégio.

Vergílio Ferreira, in Conta-Corrente

Janela aberta




Como um fruto que mostra
Aberto pelo meio
A frescura do centro

Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto

sábado, 12 de maio de 2012

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Quero-te para além das coisas justas


Quero-te para além das coisas justas
e dos dias cheios de grandeza.
A dor não tem significado quando me roubam as árvores,
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.

Joaquim Pessoa, in Os Dias da Serpente

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Do Amor


Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.


José Luís Peixoto, Uma casa na escuridão

Lágrima


Sem que eu a esperasse,
Rolou aquela lágrima
No frio e na aridez da minha face.
Rolou devagarinho...,
Até à minha boca abriu caminho.
Sede! o que eu tenho é sede!
Recolhi-a nos lábios e bebi-a.
Como numa parede
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou,
Na boca me cantou,
Breve como essa lágrima,
Esta breve elegia.


José Régio, "Pérola Solta" in Filho do Homem

terça-feira, 1 de maio de 2012

Tarde




O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas

Sophia de Mello Breyner Andresen, in No Tempo Dividido