sexta-feira, 31 de maio de 2013

Em segredo





E lhe passou a mão pelo rosto, desceu-lhe carícias pelo peito. Desabotoava-lhe o vestido? Seu gesto o convidou a mais se aproximar. Parecia que ela lhe queria entregar um segredo. Colocou-lhe os lábios sobre o ouvido mas, em lugar de palavra, ela imitou o mar numa concha.

Mia Couto, in Terra Sonâmbula

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Lá atrás


Deseja-se muitas vezes a repetição das coisas; deseja-se reviver um momento fugaz, voltar a um gesto falhado ou a uma palavra não pronunciada; esforçamo-nos por recuperar os sons que ficaram na garganta, a carícia que não ousámos fazer, o aperto no peito para sempre desaparecido.

Mathias Énard, in Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes

quarta-feira, 29 de maio de 2013

De argila, como eu...


Durante o sono retiraram-me uma costela
Ficou-me no peito um vazio que não consigo preencher
Custa-me a respirar
Eu quero de volta a minha costela
quero de volta todas as costelas
Quero de volta o paraíso
quero de volta o silêncio rumorejante
quero de volta as poluições noturnas
e diurnas
Quero uma mulher
feita de chuva
e vento
e fogo
e neve
e luz
e breu
e não de argila
como eu.

Jorge de Sousa Braga, in O Novíssimo Testamento e outros poemas

Palavras maravilhosas

 
- Que maravilhação este mundo.

Mia Couto, "O Cego Estrelinho" in Estórias Abensonhadas

Post secret


Tenho hoje tantas palavras a sufocarem-me, a apertarem-me por dentro... Amontoadas, desordenadas, dançam à roda de mim num vendaval inquieto... E sei que não as conseguirei dizer, que trairei tudo o que sinto...
É por isso que me sento aqui quieta, silenciosa, a esmagar versos... a desfolhar flores.
Passiva, como os espelhos.
Muda.
Secreta.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Lar


Lar é onde se acende o lume e se partilha mesa e onde se dorme à noite o sono da infância.
Lar é onde se encontra a luz acesa quando se chega tarde.
Lar é onde os pequenos ruídos nos confortam: um estalar de madeiras, um ranger de degraus, um sussurrar de cortinas.
Lar é onde não se discute a posição dos quadros, como se eles ali estivessem desde o princípio dos tempos.
Lar é onde a ponta desfiada do tapete, a mancha de humidade no tecto, o pequeno defeito no caixilho, são imutáveis como uma assinatura conhecida.
Lar é onde os objectos têm vida própria e as paredes nos contam histórias.
Lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo.
Lar é onde nos amam.

 
Rosa Lobato de Faria

domingo, 26 de maio de 2013

VIDA!



Gostava de escrever hoje um belo poema, forte, quente, luminoso, escarolado, em louvor da vida. É que, sem saber porquê, respondi há bocado com palavras dum optimismo impressionante a um moço poeta que me exibia a sua decadência precoce. E doía-me a garganta nessa altura! Mas fui-lhe dizendo que qual morte ou qual cabaça! Vida! Vida conquistada em luta, como a do rebento do milho que empurra, e consegue levantar o torrão e ver o sol. - Qual morte, homem de Deus! Você já viu por um acaso um pinheiro suicidar-se?
Gostava de escrever isto num belo poema.

Miguel Torga, in Diário I

sábado, 25 de maio de 2013

Audaz Fantasia


O título apeteceu-me, nada a fazer, há palavras, há versos, há farrapos de prosa assim: leio-os e algo dentro de mim faz nascer o texto. Por isso concorri. "Audaz Fantasia" pareceu-me uma associação muito feliz, quer fónica quer semântica e por vezes isso basta para alinhar as palavras. Poesia, desta vez. E eu que não sou poeta nem tento sê-lo, concorri, mesmo assim.
O meu poema, intitulado "A Oratória do Silêncio", não venceu o concurso, também não ganhou uma menção honrosa, mas foi selecionado, entre quase quatrocentas participações, para integrar a obra que nasce amanhã. Audaz Fantasia é uma antologia poética onde figuram os sessenta e dois melhores trabalhos entre todos os participantes. Por isso, é para mim um motivo de orgulho poder ler o meu nome na contracapa, ao lado de tantos autores meritórios. E é também digno de mérito o facto de que pela venda de cada exemplar, dois euros revertam para a Mithós, Associação de Apoio à Multideficiência. 
O lançamento é amanhã, dia 26 de maio, no Museu João Mário, em Alenquer, pelas 15.30 horas. O convite é da Alencriativos e eu estarei lá, com um sorriso feliz. Muito feliz.

Ana Paula Mateus

A volta por cima


Especializei-me
em rotas de colisão.
Depois aprendi
a dar a volta por cima.

Luiz Pacheco, "Itinerários"

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Crónicas do Vento Salgado


Quase todos os dias, praticamente à mesma hora, passo pelo mesmo homem na estrada. Ele a pé, eu de carro, temos um percurso em comum e sei se estou atrasada ou adiantada conforme a rua em que nos cruzamos. Hoje ele atrasou-se... Apanhei-o antes de um cruzamento e percebi que ele tinha os passos mais lentos e que o peito empurrava com esforço o vento norte. Não sei porquê, reduzi a velocidade e pelo retrovisor fiquei a vê-lo afastar-se, devagar, o cabelo branco numa fúria revolta, as costas curvadas pelo peso da idade, as abas do casaco abertas como asas... Não sei quem é, não sei onde mora. E ele não sabe que nos une o relógio e a rotina, o itinerário riscado pela pressa nas ruas da mesma cidade. Aposto que ele nunca reparou em mim, que sou apenas mais um carro igual a todos os outros carros, rodando na estrada ao lado da qual ele caminha. Faz-me bem vê-lo. Cruzar-me com ele dá-me a sensação de que tudo está no seu lugar. Um dia vou parar ao lado dele e sorrir-lhe; talvez lhe pergunte o nome. E se ele fizer questão de saber, dir-lhe-ei apenas que lhe roubei a silhueta e que o prendi na pele do protagonista de uma história que ando a escrever. Tenho a certeza que não se ofenderá... E quase juro que acertei no seu nome.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Noite


A noite estende sobre a terra um manto de névoa, como uma poeira húmida, muito fina... Por baixo, na escuridão, há um murmurar antigo e indecifrável no rastejar dos bichos, no esvoaçar das asas das aves da escuridão. A noite tem peso, tem cheiro, tem cor. Ela traz o silêncio que guarda a memória de um abraço infinito e eu não sei, afinal, se amo a noite ou se tenho medo dela.  

Cá dentro

 
Há um tempo certo para partir,
mesmo quando não há um lugar certo para ir.

Tennessee Williams

quarta-feira, 1 de maio de 2013

(...)


morre-se, quando já não é necessário escrever
seja o que for.

Al Berto