sábado, 28 de fevereiro de 2009

Palavras...


Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão. . .

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.

David Mourão-Ferreira, Casa

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Saudade


Está confirmado. Pesquisei em todo o lado, perguntei a quem de direito, consultei os dicionários, naveguei na net... e não existe em mais lado nenhum. A palavra saudade é só nossa. É uma palavra portuguesa para a qual as outras línguas não encontram correspondência perfeita. Arriscam expressões cuja sinonímia é aproximada, mas a nossa saudade... é única, pessoal e intransmissível.
Palavra lindíssima, musical, ondulada como o bater do coração que a sente, diz o dicionário que quando usada no plural, significa lembranças. E haverá coisa melhor do que lembrar, do que recordar e sentir saudade? Afinal de contas, quem recorda é feliz outra vez...
Eu gosto de a usar no singular, gosto da ternura que escorre da sua significância, da doçura do seu som quando proferida em voz baixa e a sós, nos lugares do coração. E há tanta coisa boa de que tenho saudade, que gosto de recordar para ficar feliz outra vez... Tenho saudade do cheiro de Trás-os-Montes... de me deitar na terra e olhar de noite aquele céu enorme, negro, polvilhado de mil estrelas tão vivas e brilhantes que quase parece possível tocá-las... Tenho saudade do cantar dos grilos nos montes secos como pólvora... de comer figos empoleirada nas árvores até as bochechas ficarem remeladas de suco e mel e a barriga a doer muito... de lavar roupa em bicos dos pés, debruçada no grande tanque com água gelada e pura saída das entranhas da terra... tenho saudade de pisar a areia com os pés nus e sentir cócegas... de andar à chuva no Verão e deixar que o vento seque a roupa colada à pele... de comer um gelado à beira-mar... de fazer uma corrida no desmaiar das ondas, de jogar às escondidas e ao prego... de dançar na rua... Tenho saudade do cheirinho dos meus filhos quando eram bebés e cabiam nos meus braços... do colo da minha avó quando me entrançava os cabelos... dos beijos e do sorriso de ouro do meu avô... de andar na rua de mão dada com a minha mãe saltitando a pé coxinho... de todos os mortos que eu amei... Tenho saudade de tanta coisa boa neste ninho que é a memória... Por isso não compreendo quando me dizem que a saudade é tristeza. Não é. É pura felicidade estreitar alguém que amamos num abraço fundo e apertado e ouvir dizer sorrindo: Senti saudade...

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Um raio de sol


Desci ensonada as escadas, escorregando nos sons da vida que se agitava devagar. A manhã ainda azul, desprendia-se preguiçosa dos braços da noite e um frio antipático arrepiava-me a pele desagasalhada, obrigava-me a abraçar o corpo sonolento que tentava a custo agarrar o dia que nascia com uma macia lentidão. E de repente tropecei. O que seria?... A meus pés, caído, embrulhado numa luz tímida, estava um raio de sol. Fitava-me atentamente, silencioso e sorridente, amarrotado no chão gelado. Donde viria?... Segui-lhe o rasto e descobri a janela mal fechada, deixando escapar vestígios amarelos de um dia que prometia ser bonito. Já sem restos de sono, escancarei a janela e deixei que um sol enorme me esbofeteasse o rosto e me fechasse os olhos, acordando-me definitivamente as emoções. Respirei fundo enchendo o peito com o ar alegre e suave da manhã... e julgo que foi isso que me fez cantarolar baixinho enquanto conduzia lentamente até à cidade.
Haverá algo melhor do que tropeçar num raio de sol e cair rendida num dia morno e bonito?

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Do Amor


Ontem pensei
no meu amor por ti.
Recordei
as gotas de mel nos teus lábios
e lambi o açúcar
das paredes da minha memória.

Nizar Kabanni, Ontem...

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Palavras escondidas


Nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos.

Sigmund Freud

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Temos de conversar


Um dia, sem sabermos bem porquê, decidimos ir fazer o exame que o médico pediu há meses e que andamos a adiar por razões tão frívolas, quanto disparatadas. O alívio é imediato, até nem custou muito, fica a sensação do dever cumprido e esquece-se o assunto. Tempos depois, novamente esgotado o prazo, vamos buscar o resultado do exame e segue-se um novo adiamento até que ele chegue às mãos do médico: hoje não dá jeito, amanhã não posso... na semana que vem não sei se consigo... E chega finalmente o dia em que estamos sentados em frente ao médico que conhecemos há longos anos, gargalhando a propósito da data que expirou há muito a validade, roendo a vergonha e a culpa num chorrilho de desculpas: Ai e tal..., a roupa por passar, as compras, a casa, o trabalho... as correrias do costume... E o olhar condescendente do médico pousado em nós, sorrindo com compreensão e bonomia enquanto abre o envelope e começa a ler. E à medida que vai lendo, acompanhamos a sua expressão... e começamos a falar mais devagar... e mais baixo... até que nos calamos por completo e ficamos a pensar que coisas tão importantes nos teriam obrigado a adiar o exame, por onde teríamos andado... que tempo teria sido preciso para que conseguíssemos ter estado ali mais cedo...Percebemos que andámos a dar prioridade às coisas erradas, que brincámos com o tempo, que nunca chega para nada e é só um estupor que nos vai matando, roubando a energia e a vitalidade, nos obriga a andar numa roda viva e nos faz adoecer. De repente, um milhão de pressentimentos negativos enterram-nos no peito um medo escuro e gelado, e percebemos claramente que o tempo, a quem atribuímos todas as culpas, contra quem lutamos diariamente, teria sido o nosso maior aliado. Compreendemos que é tarde de mais. Entendemos subitamente tudo isto quando o médico, o nosso velho conhecido, pousa o exame na secretária e colocando a mão sobre a nossa, diz com carinho e firmeza na voz: Temos de conversar...

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O último comboio


Às vezes, a vida coloca-nos num cais de embarque e oferece-nos um bilhete dourado para uma viagem só de ida, rumo a um destino de sonho. Encontramo-nos então parados, malas feitas, coração apertado, o bilhete dançando nervosamente entre os dedos... e sentimos medo. Pés colados ao chão, o frio da indecisão encharcando-nos a alma, sabemos que aquele é o momento do tudo ou nada. Se entrarmos naquele comboio, nunca mais poderemos voltar. Sabemos isso e esperamos um pouco mais, esperamos até que tenham entrado já todos os passageiros... E passamos em revista a vida, a que temos e perderemos se embarcarmos... tentamos imaginar a que nos espera no fim da linha... E sentimos medo de novo. Muito medo. Alheio a tudo, o comboio apita estridentemente assinalando o último minuto. E agora? Arriscamos tudo ou perdemos tudo? E o medo continua a grudar-nos os pés, incapazes de caminhar, aperta-nos o peito enquanto vemos o comboio iniciar lentamente a sua marcha, rindo-se com desdém da nossa covardia, levando com ele um punhado de sonhos que nunca veremos cumpridos. Porque aquele era o último comboio... Porque aquele era o único bilhete que a vida nos dera.
E pelo resto do tempo, não importa quantos anos se vivam, quando a madrugada nos roubar o sono e inquietos vaguearmos pela casa serena, embrulhada num silêncio gelado, a dúvida surgirá, aguçada como uma lâmina, de como teria sido se naquele dia, há tanto tempo atrás, tivéssemos agarrado os nossos sonhos e embarcado no último comboio.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Palavras simples


As coisas simples dizem-se depressa; tão depressa
que nem conseguimos que as ouçam. As coisas
simpes murmuram-se; um murmúrio
tão baixo que não chega aos ouvidos de ninguém.
As coisas simples escorrem pela prateleira
da loja; tão ao de leve que ninguém
as compra. As coisas simples flutuam com
o vento; tão alto, que não se vêem.

São assim as coisas simples: tão simples
como o sol que bate nos teus olhos, para
que os feches, e as coisas simples passem
como sombra sobre as tuas pálpebras.

Nuno Júdice, Tarde com sol