quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Temos de conversar


Um dia, sem sabermos bem porquê, decidimos ir fazer o exame que o médico pediu há meses e que andamos a adiar por razões tão frívolas, quanto disparatadas. O alívio é imediato, até nem custou muito, fica a sensação do dever cumprido e esquece-se o assunto. Tempos depois, novamente esgotado o prazo, vamos buscar o resultado do exame e segue-se um novo adiamento até que ele chegue às mãos do médico: hoje não dá jeito, amanhã não posso... na semana que vem não sei se consigo... E chega finalmente o dia em que estamos sentados em frente ao médico que conhecemos há longos anos, gargalhando a propósito da data que expirou há muito a validade, roendo a vergonha e a culpa num chorrilho de desculpas: Ai e tal..., a roupa por passar, as compras, a casa, o trabalho... as correrias do costume... E o olhar condescendente do médico pousado em nós, sorrindo com compreensão e bonomia enquanto abre o envelope e começa a ler. E à medida que vai lendo, acompanhamos a sua expressão... e começamos a falar mais devagar... e mais baixo... até que nos calamos por completo e ficamos a pensar que coisas tão importantes nos teriam obrigado a adiar o exame, por onde teríamos andado... que tempo teria sido preciso para que conseguíssemos ter estado ali mais cedo...Percebemos que andámos a dar prioridade às coisas erradas, que brincámos com o tempo, que nunca chega para nada e é só um estupor que nos vai matando, roubando a energia e a vitalidade, nos obriga a andar numa roda viva e nos faz adoecer. De repente, um milhão de pressentimentos negativos enterram-nos no peito um medo escuro e gelado, e percebemos claramente que o tempo, a quem atribuímos todas as culpas, contra quem lutamos diariamente, teria sido o nosso maior aliado. Compreendemos que é tarde de mais. Entendemos subitamente tudo isto quando o médico, o nosso velho conhecido, pousa o exame na secretária e colocando a mão sobre a nossa, diz com carinho e firmeza na voz: Temos de conversar...

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