domingo, 28 de janeiro de 2018

Um minuto


Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza que pensavas em mim. Que me pensavas por dentro. Que era eu a tua fantasia, o teu banco de trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor.
Na cidade do meu sono, havia palmeiras onde alguns repetiam putas e charros e atiravam pedras ao rio. Mas eu nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço. Eu nunca abri as pernas, entendes? Nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca quis de ti uma continuidade, mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes? Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o pequeno-almoço, a ternura. Nunca te disse que me abraçasses por trás, que adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e tu por dentro de mim.
Queria de ti um minuto. Um minuto.

Filipa Leal, "O Minuto Certo" in, «Egoísta n.º 32», Setembro 2007

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Espelho meu


Há-de haver um espelho onde os meus olhos voltem a ser os meus olhos. Onde o brilho espelhado seja o da minha alegria, tão igual à de quando era menina e corria para a escola com a pasta apertada contra o peito para sentir o cheiro do pão com queijo e marmelada, que haveria de comer no recreio de todas as ilusões. Há-de haver um espelho que me devolva o norte e a luz. Não sei onde, talvez atrás dos montes da minha infância, com as tangerineiras carregadas de frutos inchados, rubros, que me manchavam as mãos e as perfumavam de sumo para todo o dia. Há-de haver numa noite, um espelho onde eu não faça contas à vida nem às rugas. Um espelho redondo, sem princípio nem fim, como os dias de esperas eternas. Há-de haver um espelho onde eu não escreva o teu nome com o dedo, devagar, como só devagar se pode falar das profundezas do mar sem fim, de poesia e de sonhos, de castelos e de deuses. Há-de haver um espelho, algures, um qualquer dia, que responda. Que não me mostre os meus fantasmas. Um espelho de água que engula o rasto das minhas lágrimas. E me devolva o arrepio.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Na Mágoa Maior do Tempo


Fica ao menos o tempo de um cigarro, evita
comigo que este tempo ande. Lá fora são
as casas, vive gente à luz de um candeeiro,
o som que nos chega apagado pela distância
só denuncia o nosso silêncio interrompido.
Ajuda-me, faremos o inventário das coisas
menos úteis, mágoas na mágoa maior do tempo.
Fica, não te aproximes, nenhum dia
é menos sombrio, quando anoitecer vamos ver
as árvores cercando a casa.

Helder Moura Pereira, in Entre o Deserto e a Vertigem