terça-feira, 30 de novembro de 2010

Pessoa vale a pena


Fernando Pessoa morreu há 75 anos. Alguns jornais, alguns canais televisivos, algumas estações de rádio terão recordado fugazmente o facto, mas o país passou adormecido ao largo da data de hoje, num sonolento bocejo colectivo que me faz pensar com tristeza no quanto amamos mal os nossos poetas. E Fernando Pessoa teria merecido que o recordássemos hoje. Ele que foi tão grande, teria merecido uma homenagem, ainda que singela, neste país que se desgasta invariavelmente com a crise, o Orçamento de Estado, o FMI, o Emmy da TVI, os blindados e a cimeira da Nato, a contenção de despesas e o limiar da pobreza, o futebol e as telenovelas... Neste país tão triste não se sorri aos poetas, aos seres imortais, que resistem ao tempo porque escrevem palavras de ouro que se gravam a luz no coração humano. Fernando Pessoa não foi só um poeta, foi um grande poeta, daqueles que surgem uma vez em cada século e permanecem espalhados pelo mundo, traduzidos em todas as línguas... O poeta que sonhava o Quinto Império, é afinal de contas, um rei mendigo num reino pobre e ingrato. Teria merecido mais, o homem das mil almas, o ser estilhaçado e triste, o paladino da solidão e do cansaço que escrevia como mais ninguém soube escrever...
Por tudo isto (e porque estou zangada e triste) deixo hoje, aqui, um poema de Pessoa, o poema que os meus alunos escolheram e elegeram unanimemente como o mais belo. Para que não seja nunca esquecido.


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, "Mar Português" in Mensagem

Ó Stora...


Seria o Amor Português (Variações sobre um Fado)

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis da tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.

Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
"Que me importa que batam à porta..."
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem e uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta.

Fernando Assis Pacheco

(Contei-lhes, porque eles não sabiam, que o Fernando Assis Pacheco era jornalista. Que quando era jovem, foi actor de teatro e que desde sempre amou a poesia. Que estudava e conhecia profundamente a cultura galega. Que traduziu para português obras de Pablo Neruda e de Gabriel Garcia Márquez. Contei-lhes, porque eles não sabiam, que o Fernando Assis Pacheco escreveu um poema extraordinariamente belo e que eu sei de cor há muito tempo... Contei-lhes, porque eles também não sabiam, que este grande poeta morreu faz hoje quinze anos e que me apeteceu muito recordá-lo... Depois, devagar, saboreando as palavras, li-lhes o poema. E no fim, fez-se um silêncio sepulcral rasgado apenas pelo pedido insistente - "Ó Stora, leia outra vez..." - E eu sorri-lhes, e li de novo.)

Si tu m'apprivoises...


Si tu m'apprivoises, nous aurons besoin l'un de l'autre. Tu seras pour moi unique au monde.
Je serai pour toi unique au monde.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

domingo, 28 de novembro de 2010

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Quanto aumenta(s) o mundo...


estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela,
e sem que eu nada diga,
sente a trémula, tocada coluna de ar
a sorvo e sopro,
ó
táctil, ininterrupta,
e a tua mão sinta contra mim
quanto aumenta o mundo

Herberto Helder, a faca não corta o fogo

(Para o Herberto Helder, no seu 80º aniversário. Porque os poetas grandes merecem ser lembrados)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Um sentido Adeus


Fez hoje uma semana que ela morreu e eu continuo sem conseguir encontrar as palavras. Lido mal com a morte, ela rouba-me a voz e deixa-me num silêncio negro e vazio... E contudo, queria ser capaz de me despedir, de lhe dizer todas as coisas que nunca lhe disse, embora acredite que ela as soubesse. Queria encontrá-la amanhã ou depois, sentada à mesa do café, na mesma cadeira de sempre, na solidão dos seus dias infinitamente iguais, lendo ou bordando, lanchando a torrada e a meia de leite sempre à mesma hora, sempre à mesma temperatura... Queria poder sentar-me junto dela, como tantas vezes fiz, conversando sobre o tempo e os livros, sobre as pernas que não lhe obedeciam, sobre as análises ao sangue e o exame ao coração, enfiando as agulhas com linha preta e vermelha e branca, com que ela pacientemente bordava a ponto de cruz os polvos, os barcos, os peixes, em toalhas e em panos que depois me oferecia, só porque sim. Queria contar-lhe que guardo os livros que ela me deu nas estantes do coração, a segunda edição das obras completas do Camilo Castelo Branco que tem aquele odor maravilhoso dos livros antigos agarrado às páginas amarelecidas pelos anos e os cantos das folhas dobrados pelos dedos de todos os leitores apaixonados... Queria confessar-lhe que guardo na carteira, junto dos cartões de crédito, as pajelas dos santos que me ofereceu com carinho para que me protegessem do cansaço e da doença... Queria abraçá-la, sentir o cheiro a lavanda do perfume que usava, e dizer-lhe que tenho saudades... Do sorriso, muitas... E da alma linda que ela tinha. Queria que ela soubesse que nunca a esquecerei...
Por tudo isto lido tão mal com a morte... Ela rouba-nos os que amamos, definitivamente, e deixa lugares vazios no coração que vão ficando mais frios à medida que percebemos que afinal não tivemos tempo, nem encontrámos nunca as palavras certas, ou as possíveis, para dizer Adeus.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Quietude


Não estranhes a minha quietude... Também os peixes por vezes se mantêm imóveis contra a força da corrente.

sábado, 13 de novembro de 2010

Palavras de sangue


Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu fzeram-no de carne, e sangra todo dia.

José Saramago

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

As portas do coração

Trouxe-te uma música para te oferecer hoje. É um antigo solo de piano que teima em não envelhecer e que gosto de ouvir até à infinitude em madrugadas de silêncio... Deixa-a tocar enquanto me lês, saboreia-a como se fosse um vinho bebido devagar, a página amarelecida de um poema mil vezes relido com ternura, ou uma paisagem azul cheia de sal do vento norte, por onde o teu olhar se derrame... Neste tempo em que aqui te demoras, encontra a minha tristeza nos versos que não fiz, nas frases que não escrevi e nas palavras que não fui capaz de escolher... E depois, quando decidires partir, fecha as portas do meu coração com suavidade e leva contigo a música...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O riso da memória


Pousa a angústia devagar,
deixa que ela te escorra entre os dedos
até ficar assim, sepultada nas palavras...

Depois, respira o riso das memórias felizes
que esculpiste para sempre, sem saberes,
no silêncio suave de tantos vazios...

Prende-o bem, nas tuas mãos mudas,
sente-o pulsar ainda, cheio de vida...
E que isso te baste.

sábado, 6 de novembro de 2010

Crónica de um improvável amor


Encontraram-se por acaso, como por acaso se encontram as pessoas que nada procuram ou que nada esperam. Que nada acreditam poder já mudar o rumo tão certinho dos seus dias. E o inesperado do encontro contrariava as voltas do mundo na sua constante rotação, as forças do universo em eterno equilíbrio, como se os homens de repente audazes, desafiassem os rumos traçados pelos deuses. Encontraram-se, dizia. E viram-se um ao outro. Talvez aqui seja já diferente esta história neste mundo onde encontramos tanta gente e no entanto, não vemos ninguém... Mas eles viram-se. E reconheceram-se. Ela gostou da doçura do sorriso dele, como uma janela aberta sobre um mundo que de imediato lhe apeteceu desvendar; ele ficou fascinado com a luz dos olhos dela, uma luz que subitamente enchia de cor o quotidiano pálido que habitava... Sentiram, quando se viram pela primeira vez, que não queriam voltar a perder-se um do outro e foi aí que se reconheceram: no preciso instante em que perceberam que se tinham encontrado sem jamais se terem procurado.
Sim, esta é uma história de amor. Esta é a história de um improvável amor, de dois seres que um dia por acaso, ao dobrar uma esquina da vida, chocaram de frente um contra o outro e se prenderam na magia desse instante mágico que parou o universo. Nos céus, os deuses fecharam os olhos e sorriram condescentes... Sim, permitiriam o reencontro daqueles humanos que sabiam que o amor não aparece na vida só quando se procura, mas se reconhece no primeiro momento, na doçura de um sorriso ou na luz que brilha intensa no fundo de um olhar...
Mas como os deuses são ciumentos da felicidade dos homens, decidiram em consílio que entre os dois ergueriam montanhas até ao céu, cavariam abismos, inventariam os mais fundos oceanos... porque um amor infinito, quando o é realmente, a tudo sobrevive, a cada luta se renova e fortalece, e torna-se imortal...
E afinal de contas, são as grandes batalhas, aquelas que travamos dentro do peito, que fazem avançar o mundo e a vida valer a pena.

(Para a B., porque me pediu que contasse a sua história e para todos aqueles que como eu, acreditam em histórias de amor. Mesmo nas mais improváveis.)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Da solidão

- Solidão não é falta de gente para conversar, namorar, passear ou fazer sexo... Isto é carência.
- Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar... Isto é saudade.
- Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe, às vezes, para alinhar os pensamentos... Isto é equilíbrio.
- Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado... Isto é circunstância.

Solidão é muito mais do que isto.

Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma...

Francisco Buarque de Holanda

Vox populi, vox Dei


Se caíres sete vezes, levanta-te oito.

Provérbio chinês

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Hoje, um pouco mais


Hoje chorei mais os meus mortos. Hoje havia um pouco mais de frio, um negro mais pesado... E as minhas mãos estiveram hoje mais vazias... Hoje a memória fugia mais veloz, apertou-me o peito doendo mais, e as lágrimas rasgaram os silêncios mais fundos. E nos sorrisos que perdi e que hoje recordei, a vida custou mais...
Hoje a voz da saudade falou mais alto e doeu mais, muito mais.