domingo, 28 de agosto de 2016

Sem filtro


Encontrei a Amélia por acaso, enquanto deambulava pela feira medieval da cidade. Ela estava sozinha, junto de uma banca de artesanato e parecia indecisa na escolha de uma coroa de flores. Reconheci-a pelos magníficos cabelos, pelo porte altivo, pela tatuagem no braço. Tantos anos depois, a inconfundível Amélia estava ali, na minha frente, na minha cidade.
Conhecemo-nos na faculdade, caloiras ambas, curiosas ambas, estrangeiras ambas numa cidade que nos acolhia a solidão. E já nessa altura a Amélia era diferente de todas as raparigas: lindíssima, tinha os cabelos longos, longos, um corpo elegante e musculado e movia-se silenciosamente, com passos felinos. Era super popular entre os rapazes e, a brincar, dizíamos que para arranjarmos namorado tínhamos que deixar a Amélia em casa, porque ela nos ofuscava sem piedade... Ela ria e desprezava todos os pretendentes: os mais suplicantes, os arrogantes, os tímidos, os galanteadores, os convencidos. Na verdade, a Amélia usava os homens. Saía com todos, dormia com alguns, beijava a maior parte, não se comprometia com nenhum. Dizia que nunca se apaixonaria. Que o amor era uma treta e que ela não ia em tretas. No primeiro encontro, punha as cartas na mesa e definia as regras do jogo, que todos aceitavam, talvez na esperança de a fazer mudar de ideias. Mas a Amélia nunca mudou.
A história dela é triste e conta-se em duas palavras: filha única, tinha o pai na cadeia por ter assassinado a mãe à pancada; amava de paixão os avós maternos que a tinham criado e a quem devia tudo; e a tatuagem no braço encobria queimaduras de cigarro feitas pelo pai quando ela era ainda menina. Tudo isto era contado sem voz embargada, sem lágrimas nos olhos, sem tremuras nas mãos, como se fosse a coisa mais natural deste mundo. E aquela Amélia aparentemente dura e insensível, merecia de todas nós um profundo respeito - porque ela era genuína, porque a Amélia não tinha filtros.
Fomos comer um gelado, perguntei-lhe pelo F. - Acreditas que ele me encontrou no facebook e mesmo com dois divórcios em cima, ainda não desistiu??!! Diz que quer casar comigo! - e havia tristeza nos olhos da Amélia enquanto recordava aquele amor louco do F., que o levava a fazer serenatas à sua janela, a deixar presentes debaixo da cadeira onde ela se sentava, a montar-lhe infinitas esperas e perseguições pelas ruas da cidade...
A Amélia continua sozinha, o ventre firme e liso denunciando a ausência de gravidezes, o anelar despido de qualquer aliança que a prenda a um amor de treta. Continua bela, genuína e sem filtros. Depois de nos termos despedido, fiquei a vê-la afastar-se, com o cabelo coroado de flores, o passo felino debaixo do vestido solto e quase vi de novo o F., de joelho no passeio, uma mão sobre o coração, cantando tristemente de olhos fechados: Anda comigo, Amélia vem / que eu sou sozinho / não tenho ninguém...

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Da solidão


(...) a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz.

José Saramago, in O Ano da Morte de Ricardo Reis