terça-feira, 5 de agosto de 2014

Da semântica


HELIOFILIA - substantivo feminino: amor ao sol; desejo de estar ao sol; necessidade da luz solar.

sábado, 2 de agosto de 2014

Crónicas do Vento Salgado


Ouvi a voz dele ao longe, o pregão errante que ecoava debaixo do sol, que se fazia mais forte, porque arrastado no sal do vento. Ouvi-o de olhos fechados, num misto de sono-sonho que deixava o meu corpo preso sobre a areia mas o pensamento livre, voando por cima do mar. Era já a segunda vez que passava e como da primeira, eu lutava entre chamá-lo (e cometer um crime perfeito) e ignorar o pregão (como uma menina razoável que deveria ser)... Sentei-me já desperta, sabendo de antemão que o pecado da gula venceria, fiz-lhe sinal e vi-o aproximar-se sorridente, ajoelhar-se a meu lado, abrir a arca e expor as bolas de berlim polvilhadas de cristais de açucar que refulgiam, prometendo mil doçuras... Uns incríveis e inesperados olhos verdes; um sorriso a transbordar simpatia; uma juventude roubada cedo de mais. Era o fim da tarde e ele ainda não tinha a arca vazia. Chama-se Telmo, um nome parolo que a mãe escolheu por causa da novela brasileira que passava na TV quando ela estava grávida - explicou-me, enquanto colocava a bola de berlim com o creme para cima, dentro de uma saquinha de papel pardo. Tem dezassete anos - quase dezoito - e vai para o 11º ano, contou-me orgulhosamente... O Telmo vive sozinho há quase dois anos, desde que à mãe foi diagnosticado um cancro que a obrigou a viver entre hospitais e a atirou agora definitivamente para os cuidados paleativos no IPO; vende bolas de berlim na praia durante sete dias por semana; poupa dinheiro para poder ir visitar a mãe de metro e almoçar no Porto; limpa e arruma a casa com dois quartos alugados a banhistas e trata das plantas da mãe e da criação de periquitos do pai, que morreu na Suiça no dia em que ele fez quinze anos... Gosto muito de ler - contou-me a sorrir, pegando no meu livro pousado sobre a toalha. - Os livros fazem-nos esquecer as tristezas da vida... Sabe que eu conheço o valter hugo mãe? Mas nunca li nada dele, que o dinheiro não dá cá para livros... E eu ia pensando nos abismos da vida, nos desníveis, na dureza deste mundo que obrigava o Telmo a perder dois anos escolares, a ser fortaleza quando ainda nem crescera até à idade adulta... Falou-me do seu sonho: estudar Hotelaria e Turismo e ter um bar na praia, uma coisa gira, alegre, com música, e um serviço de venda ambulante de sumos de frutas naturais, como no Brasil...
O Telmo vive entregue a si mesmo mas no olhar maravilhoso vi o que vejo raramente no rosto dos meus alunos, aquilo que um professor procura nos olhos dos que o escutam, aquilo que os torna diferentes numa geração desencorajada que vive tempos de desesperança... Estendi a mão para receber o troco e confessei-lhe que o nome dele não é parolo nem brasileiro, que aparece numa das obras literárias que ele estudará este ano - O Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. Resumi-lhe rapidamente o assunto e falei-lhe de Telmo Pais, o fiel escudeiro de D. João de Portugal... Perguntei-lhe se já tinha lido Os Maias - uma sombra atravessou-lhe o olhar - Tenho que ver se arranjo... 
Alguém o chamou e despedimo-nos. Vi-o afastar-se cantando o seu pregão, o corpo inclinado sob o peso da arca e desejei reencontrá-lo amanhã... Vou cometer outro crime... Vou esperar o Telmo, comprar-lhe uma bola de berlim e oferecer-lhe a edição de Os Maias que pertenceu aos meus filhos... E vou procurar o valter para que ele assine o livro que arranjarei... Tenho a certeza que o valter nem sonha que o rapaz que lhe servia o café da manhã no sítio do costume, o admirava e só por timidez e vergonha nunca lhe contou que ambicionava ter um livro seu autografado...
Há crimes assim: perfeitos. Aquela bola de berlim podia ter as calorias de que eu necessito para uma semana inteira... Mas na realidade, é no meu coração que se aninhará toda a sua doçura.