sábado, 31 de julho de 2010

Palavras somadas


Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que somando as compreensões, eu amava. Não sabia que somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente.


Clarice Lispector

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Sinais


(...)
e eu quero o cruzeiro do sul nas tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.
(...)

Manuel Alegre, Coração polar (Texto com supressões)

No ventre da lua


Saio para o silêncio da noite e deixo encostada a porta das traseiras. Sento-me nos degraus de mármore iluminados pela lua enorme e avermelhada, com o ventre cheio do fogo que se tem feito sentir estes dias. A noite está quente, quieta, cheia de magia... Aos meus pés, com a cabeça entre as patas, os cães fitam-me com olhos meigos e fiéis. Nos campos, bichos rastejam fugidios, talvez buscando a água que lhes falta na terra seca como pólvora, que cheira a estio e a poeira. Deixo a memória escorrer devagar, deixo-a trazer-me o que ela quiser, coisas que eu não sabia que tinha ainda guardadas cá dentro... Quero recordar. E a memória faz-me a vontade, nesta noite de todos os sonhos e de todos os silêncios... Como mel, numa suavidade muito doce, regressam lentos pensamentos, momentos, risos e lágrimas, convocados talvez por uma saudade boa, que não faz doer... que eu não sabia que morava ainda nos lugares do coração. Surgem do escuro, do fundo da memória e brilhando muito, como estrelas solitárias, numa paz que me faz sorrir... De repente, outra vez aqui, outra vez agora, dentro do meu peito... Uma época... Uma idade... Um rosto... Um nome. Uma música. Uma despedida. Uma saudade infinita nuns olhos castanhos cheios de lágrimas...

sábado, 24 de julho de 2010

...


Amei-te com as palavras
com o verde ramo das palavras
e a pomba assustada do coração.

Amei-te com os olhos
o espelho doido dos olhos
e a sede inextinguível da boca.

Amei-te com a pele
as pernas e os pés
e todos os gritos que trago
por debaixo da roupa.

Amei-te com as mãos
as mesmas com que te digo adeus.

Rosa Lobato de Faria, Poemas Escolhidos e Dispersos

Nunca sabemos...


Saber amar não é amar. Amar é não saber.

Marcel Jouhandeau

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Nas asas do beijo


Entre os olhos beijar-te
Fazer de tuas pálpebras

asas da minha boca

David Mourão-Ferreira, Voo

Saudade


Tinha saudades. Talvez por isso, entrei finalmente aqui e demorei-me um pouco. Reli alguns textos, tomei o peso das inquietudes que por aqui vão ficando, olhei-as no rosto das minhas palavras...
Tinha saudades. Deste espaço tão meu, deste labirinto tão intimista, deste cantinho onde repouso o que não sei dizer...
Tinha saudades. Por onde andam, as minhas palavras? Por onde, as frases, as metáforas, as imagens que me escorrem dos dedos? Por onde, o meu dizer?
Tinha saudades. Do verbo fácil, do cair das emoções, da fluidez desse sentir que só aqui permito desnudar-se... Ando ausente de mim, ando fugida do espelho, às avessas do mundo... Tenho parado pouco para escutar a minha voz... Talvez seja este, o momento de regressar. A mim.
Tinha saudades.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Planícies de silêncio


O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies de silêncio.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Eis-me", in Livro Sexto

quarta-feira, 7 de julho de 2010

3272


No fundo do ecrã, a informação esbofeteia-me. Diz-me que hoje escrevi 3272 palavras. Nove páginas. Tantas palavras... tantas páginas que me prenderam ao computador, me roubaram o sol tão quente, o brilho do entardecer na cidade alegre, já cheia de turistas... Um café numa esplanada, a carícia do vento na pele nua dos ombros... O voo dos pássaros e o conforto vagabundo dos passos ao acaso... Tanta palavra, tanto gesto de amor perdido, tanto cansaço por dentro, no sangue, no silêncio das minhas palavras... Tanto desalento espelhado em nove páginas.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A Fada Matilde


O sol da madrugada
Entrou de manso
Pela fresta da janela
No quarto do menino
E disse-lhe baixinho:
- Este anel de rubi
É para ti!
O menino ainda cheio de sono
Fechou aquela lágrima da noite
Na mão pequenina
E guardou segredo.

Matilde Rosa Araújo

A escritora Matilde Rosa Araújo morreu hoje. E eu estou triste. Dizem os que a conheceram que ela era muito doce... Eu acredito. Acredito que quem sabe escrever para crianças, tem algo de doce e de mágico, como as aves ou as ondas... E ela sabia. Ela tinha qualquer coisa de fada e de raio de sol, tinha a ternura e a sensibilidade indispensáveis para conseguir entrar no coração pequenino e exigente das crianças... A Matilde Rosa Araújo oferecia poemas às crianças... a mais generosa oferta que pode fazer a alma de um escritor. Eu não sei escrever para crianças. A Tila sabia. Parou de escrever hoje... E eu estou triste.
Até sempre!

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Cansaço


Estranho tanto este meu cansaço...! Agarrou-se-me à pele com as garras dos dias e não me larga, não me dá sossego... Ata-me os gestos, prende-me os dedos quando buscam as palavras, fecha-me os olhos, a boca, cala-me para o mundo... Ergue muros de silêncio e montanhas escuras de melancolia que me deixam uma estranha vontade de ser invisível... É tão velho já, este meu cansaço! E no entanto estranho-o ainda... Caminha comigo há muitos meses, há anos talvez, e não se compadece de tanta leitura que tem de ser feita, de tanto texto a precisar de ser escrito ou da lucidez da minha memória... Não, este meu cansaço joga comigo jogos estranhos, esconde-me as chaves, troca-me as horas, prende-me os passos e leva-me o sono e a serenidade. Faz-me falhar. Faz bater mais assustado o meu coração. É um cansaço atrevido, que ri das minhas quotidianidades e amortece pedaços da minha alegria... Como se entre eu e o mundo, erguesse cortinas de névoa que me turvam o olhar. Que me distanciam da vida... que me encerram em mim... no mais longe e fundo de mim...
Ando cansada... Ando tão cansada... Ando tão estranha neste cansaço...