quarta-feira, 11 de junho de 2008

Em silêncio. No vazio.


Bati a porta suavemente atrás de mim e enquanto descia a escadaria desfiava as nossas palavras, uma por uma, como as contas de um rosário. Como sempre faço. O que havia hoje de diferente? Conversámos sobre banalidades... o tempo, a lista de compras, os preços sempre a subir, a ementa do jantar... Como sempre. Sentei-me no sofá, a teu lado, ajeitei-te a almofada, alisei o cobertor que te aquece as pernas, passei-te as revistas e o jornal, acendi as luzes, fechei a casa. Dei corda ao relógio. Como sempre. O que mudou? Limpei-te as lágrimas, abracei-te, arranjei-te os cabelos. Vi se tinhas carga no telemóvel. Como sempre. As tuas mãos estavam quentinhas... Recolhi a roupa do varal, dobrei-a como tu gostas, deixei-a no cesto para a empregada que amanhã a há-de passar, liguei a TV e deixei o comando ao alcance dos teus gestos. Ouvi-te. Falaste do passado, outra vez, mais uma vez, ( recordar é viver, eu gosto tanto de recordar...), mostraste-me a receita nova que recortaste de uma revista. Um dia hás-de experimentá-la, um dia, quando não estiveres tão cansada e não tiveres tantas dores. Como sempre. E no entanto... algo mudara...
Talvez nos teus olhos. Realmente não a vi hoje, aquela luz que os ilumina, que me ilumina, que te segura com força as palavras cada vez mais hesitantes, mais raras. Os teus olhos hoje não tinham brilho, não tinham luz. Estavam apagados, fechando-te para a vida, deixando-te nessa antecâmara onde estão os que desistem e se limitam a esperar. Sem luta, sem revolta... Na paciente espera das almas que partem antes do tempo e deixam os corpos como invólucros silenciosos num vazio que dói. E os corpos esperam porque não há mais nada a fazer. E os corpos esperam... esperam apenas o momento de regressar à alma.
Em silêncio. No vazio.

2 comentários:

Anónimo disse...

Também já vi essa ausência no olhar de quem mais gosto, e sei como dói.
Um abraço solidário, na esperança de poderes reencontrar rapidamente aquela centelha maravilhosa que ilumina a alma.

WOLKENGEDANKEN disse...

E simplesmente emocionante.