quarta-feira, 29 de março de 2017

Crónicas do Vento Salgado


Estavam à minha frente na fila das caixas para pagamento num hipermercado da cidade. A criança ia sentada no fundo do carrinho, mordia com prazer uma chupeta amarela e tinha um livro colorido, de capa dura, entre as mãos. Os pais, com lentidão, descarregavam os produtos para o tapete rolante e falavam discretamente entre si. À medida que os produtos eram despejados, a criança ia ganhando espaço dentro do carrinho e acomodava-se, com o livro aberto e os olhos felizes... O registo dos produtos começou, a mãe da criança pediu-lhe o livro - Só um bocadinho querida, para a senhora ver quanto custa - e a menina, obediente e confiante, entregou o seu tesouro nas mãos da mãe. 
O carrinho passou. Pai e mãe começaram a ensacar as coisas já registadas, a criança tinha os olhos presos no tapete e no seu tesouro... O livro foi a última coisa a ser registada. Não esquecerei a felicidade que vi no rosto da criança no momento em que as pequeninas mãos lhe tocaram de novo... Sorri, consolada - uma criança que gostava de livros; uns pais que ofereciam livros à filha e com toda a certeza, que liam para ela... Que bonito sinal de primavera...!
E foi então que o pesadelo começou. A menina da caixa fez as perguntas do costume, anunciou as promoções do dia, apelativas, enfileiradas sobre a caixa e, finalmente, anunciou o total em dívida - São 78 euros. A mulher empalideceu, abriu o porta-moedas, tirou algumas notas. O homem cochichou, procurou nos bolsos, estendeu-lhe mais algum dinheiro. A mulher contou. Contaram ambos. Olharam em volta, envergonhadíssimos, sumidos. Conferenciaram. Depois, enquanto a mulher abria os sacos, o homem disse baixinho - Importa-se de anular alguns produtos? A funcionária olhou-me, atrás de mim não havia ninguém, pediu desculpa - Vai demorar um pouco -, carregou no botão para chamar a supervisora de loja e começou a anular os produtos que mãos trementes lhe estendiam: detergente de roupa, shampô, duas embalagens de leite com chocolate, fiambre. O casal pediu o total - ainda não chegava. Debruçaram-se então sobre a criança e pediram baixinho, com ternura, as notas da culpa na voz embaciada - Temos que entregar o livro à senhora, meu amor - a criança começou a chorar, depois gritava, alto, como quem não compreendia porque lhe roubavam o tesouro colorido. Pai e mãe tinham os olhos cravados no chão, consolavam a menina, esperavam a supervisora que viesse validar as anulações para poderem correr, fugir dali a sete pés. Vi-os partir com o coração apertado, ao colo da mãe a menina gritava, inconsolável, os pais caminhavam apressados de olhos no chão, o peso do mundo sobre os ombros jovens, esmagando-os...
Quando já todos os meus produtos estavam registados, pedi uma saca e disse à funcionária que levaria também os artigos que o casal tinha deixado. Ela ficou a olhar para mim, aparentemente sem compreender, depois encolheu os ombros e fez o que eu lhe tinha pedido.
Foi fácil encontrá-los numa das ruas paralelas... A criança ainda chorava quando encostei o carro à beira deles e os interpelei. Saí e pousei a saca no chão, junto dos seus pés - Peço desculpa, mas deixaram estas compras esquecidas no supermercado. Olharam-me espantados, incrédulos... Iam dizer qualquer coisa mas eu despedi-me e saí dali o mais rápido que pude. Pelo retrovisor ainda vi as três cabeças juntas, espreitando para dentro da saca... Uns quilómetros à frente, encostei o carro numa rua cheia de sol... As pernas tremiam-me... Respirei fundo, muito fundo. Depois, escondi o rosto nas mãos e chorei.

12 comentários:

R disse...

És Imensa Anna. Imensa!

LuísM Castanheira disse...

Fantástico conto, Anna
Não sei se a realidade ultrapassa a ficção ou se a ficção é uma cópia da vida...
Sei que o conto é rico em pormenores, como se o leitor o estivesse a viver.
Bem escrito, bem estruturado e com um final enternecedor e sentido.
Li-o de um fôlego, como se eu próprio lá estivesse, naqueles minutos dramáticos.
Um beijo.

Elvira Carvalho disse...

E eu chorei ao ler este relato. Nem sei que dizer Anna. Que Deua a abençôe.
Um abraço

Anónimo disse...

Quanto vale a tua alma?

Anónimo disse...

Ó Stora eu sei que por algumas vezes lhe disse que gosto de Si... Menti. Eu gosto muito, muito, muito de Si. É tão bom quando escreve em nome próprio... e depois enquanto cidadã permita que me atreva a dizer que os seus Pais a "desenharam" muito bem...Receba um fraterno, sentido e respeitoso beijinho do Carrisimo ;)

PS: Já lhe disse que gosto de Si? ;)

Anna disse...

Nada disso, Eros. Apenas tento não me preocupar apenas com a minha vidinha e olhar em volta... Há sempre quem tenha dores maiores do que as nossas...

Beijo, bom domingo :)

Anna disse...

Luís, nas minhas "Crónicas do Vento Salgado" não existe ficção. Sou eu e a cidade, a olharmo-nos nos olhos.
Obrigada pelas palavras tão carinhosas...

Beijo, bom domingo :)

Anna disse...

Querida Elvira, por vezes a vida enche-nos os olhos de lágrimas...

Beijo, bom domingo :)

Anna disse...

Caríssimo,

Obrigada, obrigada, obrigada!
Já lhe agradeci...? Obrigada! :)

Beijo, bom domingo :)

P.S. - Também gosto muito de si!

SRRAJ disse...

Obrigada por este seu texto.
Beijinhos
Sandra

Anna disse...

Grata pela visita e pelo carinho, Sandra.

Beijinhos retribuídos :)

Joaquim Rosario disse...

boas
so hoje tive o prazer de ler esta passagem
profundo