sexta-feira, 19 de março de 2010

Pai


Sabes pai, um dia cresci e fui para a escola. Diziam-me que ia aprender a ler e a escrever. E isso era o que eu mais queria. Queria muito. Queria saber ler sozinha as histórias dos livros, queria conseguir deixar o papel falar por mim... A mamã comprou-me livros e cadernos, e lápis de cor, e uma borracha cor-de-rosa que cheirava a morango. A partir daí a escola era o sítio onde eu mais gostava de estar, o lugar para onde ia feliz. Mas um dia, era quase Primavera, a professora disse que íamos fazer uma prenda para oferecer aos pais, com um laço de papel enorme e uma flor de cera colorida. Todos ficaram felizes, pai. E enquanto os outros meninos trabalhavam, a professora sentou-me à beira dela e deixou-me fazer um desenho. O desenho que eu quisesse. Mas eu não fiz nada, pai. A folha estava em branco e eu tinha um nó na garganta e um aperto no peito a que não sabia dar nome. Na sala, eu era a única menina que não tinha um presente para fazer. E enquanto olhava a folha em branco, via o teu nome escrito, mordia os lábios e desejava que um génio qualquer, daqueles que existiam dentro das lâmpadas, me tirasse dali e me levasse para longe...
Fui crescendo, pai. Sem desenhos e sem prendas para ti. Sem o teu colo à noite, sem que nunca me tivesses aconchegado os cobertores, desinfectado os joelhos esfolados, ensinado a andar de patins ou de bicicleta. Sem que tivesses fingido ser o Pai Natal. Cresci ainda mais e não me ensinaste a nadar, não me deste a primeira semanada, não me ensinaste a dançar e não me levaste ao baile de finalistas... Não foste ver-me queimar as fitas. Não me levaste ao altar, com os olhos cheios de lágrimas felizes e não estavas no quarto do hospital quando os teus netos nasceram... Agora vou crescendo mais devagar... e passam as férias, os natais, os aniversários, escorrega o tempo devagar e eu continuo sem conseguir fazer o desenho... Às vezes, como hoje, chamo por ti baixinho, só cá dentro de mim, a ver se tu ouves... Digo o teu nome, beijo-te o rosto, aninho-me em ti, abraço-te com uma saudade infinita e recordo sempre a frase que o padre dizia às vezes quando eu andava na catequese: "Pai, porque me abandonaste?"

8 comentários:

Anónimo disse...

Ele vive em ti. E um dia o reencontrarás. E então o desenho ganhará vida. Desenharás um sorriso, um carinho, um aconchego. Darás aquele abraço. E os teus olhos não mais libertarão lágrimas.
Um beijo

Lídia Borges disse...

Colho uma cesta de ternuras queixosas... Cheias de razão, diga-se!

Escreveste-o por mim?
Este já nunca será meu...

Beijinhos e um bom fim de semana.

Anna disse...

Obrigada pelas palavras, Alquimista.
Um beijo

Anna disse...

Também já não é meu Lídia...
Um beijo e bom domingo :)

Joaquim do Carmo disse...

... queria ter Pai, além de SER mas, dizem-me ao ouvido, "nem tudo se pode ser, nem tudo se pode ter": seguir sendo, para que alguém possa TER!
Beijo

Anna disse...

É isso, Quicas...
Seguir sendo... seguir tendo... e perdendo.

Um beijo

Emoções disse...

Lindo!!
Não tenho palavras.

Anna disse...

Obrigada, Emoções.
Um beijinho