sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Uma chance em mil

Tinham combinado encontrar-se uma vez por ano, na noite de S.João.Um dia por ano, um só, todos os anos, enquanto vivessem.O desafio tinha caído com um misto de graça e sarcasmo, para apaziguar a dor da separação.Porque há amores assim, feitos de eternidades e de silêncios, que podem durar toda uma vida e permanecer.Tinham-se separado mortalmente feridos, há um ano atrás, sem combinar hora nem local."Na noite de S. João encontrar-se-iam algures na cidade". Ele lembrar-se-ia?Beatriz suspirou e agarrou-se ao eco da sua esperança:Encontrá-lo-ia.Ele viria.
Caminhava devagar e atenta no meio da multidão transformada.Um mar de gente feliz e embriagada arrastava-a, empurrava-a, mas ela parecia nada sentir.Indiferente à música, às fogueiras, aos gritos das pessoas, aos balões e às danças, procurava-o silenciosamente.Começou pelo jardim onde se tinham conhecido, percorreu depois todos os locais onde costumavam ir juntos, onde se cruzavam sempre, mesmo sem encontro marcado.Calcorreou todos os cafés, restaurantes, ruas e avenidas que lhe falavam daquele amor perdido.E aos poucos, o aperto no peito foi-se instalando, primeiro devagarinho, depois mais forte e avassalador, fazendo-se audível por cima do bater do coração.E se ele não se lembrasse?E se ela estivesse ali em vão?Pela primeira vez não conseguiu afastar a dor, era já grande e ocupava todo o seu corpo, oprimia-lhe o respirar, turvava-lhe a vista e o caminhar, agora rápido.Tinha que o encontrar.Ele não podia tê-la esquecido, não se esquece um amor assim...O barulho era ensurdecedor e atordoava-a, o cheiro a queimado entontecia-a e anunciava o vacilar...Deixou que os seus sentidos a guiassem sozinhos, às cegas, desesperançada já, desesperada já.A dor escorria líquida molhando-a como chuva.Como conseguiria encontrá-lo?Como?
A resposta foi nascendo ao ritmo do adormecer da cidade.Lentamente, as pessoas recolhiam a casa, exaustas da festa e da folia, esgotadas dos excessos, mas Beatriz tinha ainda uma hora até partir o último comboio.Como fora tonta!Como julgara possível ele lembrar-se?Consciente do seu sonho despedaçado, sentou-se no banco de pedra da paragem e enquanto aguardava, já não olhava à sua volta, já nada via.Finalmente, deixava-se acometer por um choro profundo, desses que lavam a alma mas arrancam pedaços de vida.O choro da dor, do desespero.
Entre os outros sons, o apito do comboio fez-se presente, soou impertinente e Beatriz levantou-se devagar.Caminhou até à carruagem carregando nos ombros o peso dos farrapos dos seus sonhos, da sua esperança estraçalhada.Que tonta fora!Apoiou-se na pega da porta para subir e tinha já um pé no interior da carruagem quando sentiu a firmeza do puxão no seu pulso, o agarrar sereno e confiante da mão dele na sua.Voltando-se lentamente, encarou-o nos olhos felizes, com a alma aberta de par em par ao sol da manhã sorridente e dourada.Sem palavras, uniram-se na entrega de um abraço único, o abraço de quem sabe que um amor assim é raro, um desses amores que a vida reserva só para alguns, um amor que é, apenas, uma chance em mil.

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