quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Fotografias

As palavras saíram-me um pouco ríspidas, fora do que é habitual, ásperas, quase cortantes:"Sentem-se e calem-se!".E eles, estranhando o tom tão inusitado em mim, entreolharam-se espalhando olhares inquisitivos e foram pingando o silêncio e ocupando quase constrangidos os lugares residentes.Depois, enquanto escrevia a data e o número da lição, pensei na tarefa do professor.Tinha dentro da sala, vinte e oito alunos que não poderiam perceber que a cabeça me doía horrivelmente, que as marteladas de dor me rasgavam as frontes, me obrigavam a massajar constante e inconscientemente a zona dorida e a força da luz tornara-se insuportável.Disfarçadamente, enquanto liam absortos o texto indicado, tirei um comprimido da carteira e engoli-o com um pouco de água.Era já o terceiro.E a dor teimava em não me dar tréguas...
A aula começou calma e cada palavra era insuportavelmente arrastada, penosamente proferida e era imperioso que fizesse sentido, articulada com as outras, até constituir um discurso coerente.Era necessário ler, inquirir, escrever no quadro, solicitar a memória, ditar apontamentos...cativar o meu auditório, prendê-lo na teia do interesse e da atenção...Era preciso estar atenta aos mais vagarosos, aos mais agitados, aos mais sagazes, aos incompatíveis, aos mais sensíveis, aos tímidos, aos indolentes...cada aluno é um universo e é tratado como uma individualidade, como um ser único, como penso que merecemos todos ser tratados.Mas sentia-me doente e a tarefa afigurava-se-me hercúlea...
A meio da aula, à dor de cabeça somaram-se as náuseas, as tonturas, os flashes de luz, a sensação de desmaio...e sentei-me atrás da secretária, sem ter deixado nunca de falar.
Não sei como perceberam.Talvez me tivessem visto tomar o comprimido...ou talvez seja só o entendimento secreto de quem se conhece bem e estranha quando nós não somos nós...
Arrastado, o som da campainha fez-se audível, poderoso, como um grito de liberdade atirado aos muros da escola.A aula terminara.O meu suplício também.
Contrariamente ao que é habitual, as cadeiras arrastaram-se devagar, os livros e cadernos foram arrumados com serenidade e antes de desaguarem tranquilos nos corredores gelados, quase todos tinham um mimo para mim:"Vai ficar boa, stora...";"As melhoras, stora!";"Bom feriado, stora";"Espero que passe...";"Vai melhorar...".
Já melhorei.A enxaqueca cedeu finalmente e eu voltei a ser eu.O que não passa, o que nunca passa despercebido, são os gestos de carinho que nos dedicam, a ternura subtil que há nas palavras dos que nos rodeiam que quando são inesperadas, parecem raios de sol tímido a desbravar a mais dura das tempestades.Essas ternuras devem ser fotografadas pela memória e arquivadas no único lugar que lhes compete: o coração.
Assim o fiz.

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