quinta-feira, 26 de junho de 2014

Porque partem as aves?

 
Foi numa aula de Ciências da Natureza de um ano qualquer, talvez o 9º ano, mas já não estou certa... O professor era muito jovem, estudante ainda, e nós éramos a sua primeira turma. Lindíssimo e naturalmente inseguro, deixara crescer um bigodinho na tentativa de conseguir um ar mais velho e experiente, como nos confessou na última aula... Nós achávamo-lo ridículo mas a rigidez do sistema não admitia sequer que possibilitássemos que ele o suspeitasse. Entre nós, ficou "O Bigodinho".
A aula era sobre a migração das aves e nesse dia nasceu o meu fascínio por estes seres misteriosos. Durante algum tempo, "O Bigodinho" expôs a matéria, tentou fazer-nos entender o mais fascinante e incompreendido de todos os fenómenos da natureza... Eu ouvia-o encantada, sem pestanejar. No entanto, o professor não soube prender-me porque não tinha respostas para me dar (Ó Stor, porque partem as aves...?) e percebi que tinha que estudar sozinha. Num mundo sem internet, consultei enciclopédias e dicionários temáticos na biblioteca da cidade, vasculhei os livros do avô e passei a pente fino a estante do meu pai à procura de respostas para as minhas perguntas (Como é que as aves sabem para onde têm de ir? Como sabem que é hora de partir?)
No final do ano entreguei, com a sensação de dever cumprido, o trabalho de pesquisa obrigatório e de tema livre, a que tinha dedicado tantas horas de investigação: o meu estudo sobre a migração das aves. Uma semana depois, na aula de avaliação, "O Bigodinho" entregou e comentou o desempenho de todos os alunos, saltando o meu número. Fiquei aterrada. Gelada. Será que o tinha perdido? Será que estava assim tão mau? O professor fez uma pausa e tirou finalmente as minhas páginas (muitas!) de dentro da pasta. Chamou-me e eu levantei-me a tremer, caminhando até à secretária como se para o calvário, os olhos de todos os colegas cravados em mim como punhais... O Stor sorriu, hesitou, depois deu-me os parabéns e disse-me, humildemente, que tinha aprendido muito comigo... Que não sabia, nunca tinha visto as pinturais murais onde há mais de 4.000 anos os egípcios tinham registado o fenómeno; que desconhecia que Aristóteles defendia que as andorinhas hibernavam na lama e que no outono os Rabirruivos se transformavam em Piscos; que nunca tinha estudado as aves noturnas, viajantes solitários que utilizam a noite para viajar... Tinha aprendido comigo, repetiu-o várias vezes perante uma turma assombrada, que me conhecia apenas a predileção e as excelentes notas à disciplina de Português.
Nesse dia, também eu aprendi muito com o Stor de Ciências. Percebi que seja qual for o lado em que estivermos, só faremos as coisas bem se entregarmos o coração; se amarmos o que fazemos; se formos humildes para reconhecer a nossa ignorância e assumirmos as nossas falhas... Como "O Bigodinho" fez.
Nunca mais o vi, nunca mais ouvi falar dele, nunca me cruzei com ele em lugar ou escola alguma. Talvez hoje ele nem seja professor... De mim não terá, de certeza absoluta, qualquer memória. Mas esteja ele onde estiver, nunca o esquecerei. E é sempre ele quem evoco quando olho o céu e me pergunto (ainda): Porque partem as aves?

8 comentários:

Anónimo disse...

Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo,os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre,leve,independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência

E isso é voar?

Não.

Voar é humano
é transitório , momentâneo...

Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.

Ana Hatherly

Lídia Borges disse...


Vou "roubar" este.

Gosto tanto!...

Beijo

ORPHEU disse...

Magnífico!

Anna disse...

Hatherly... adoro :)

Anna disse...

É teu, Lídia.

Beijo :)

Anna disse...

:)

Um abraço, Orpheu.

Manuel Veiga disse...

quem me dera "voar" assim...

beijo

Anna disse...

Grata e honrada, Herético :)

Um beijo