segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Quantas...?


Hoje a Mariana veio ver-me. Já me tinha procurado na semana passada mas eu tinha aulas a tarde toda e ela não podia esperar. Hoje voltou.
Foi uma aluna difícil de conquistar. Durante um ano escorregou-me dos dedos, escapava-se a qualquer tentativa de aproximação, era impenetrável como uma rocha. Quando ia ao quadro sentia-se como peixe fora de água, desconfortável na posição de protagonista, na visibilidade absoluta que o estrado lhe concedia. Eu tentava reduzir-lhe ao máximo o tormento e quando a solicitava oralmente os seus olhos não seguravam os meus. Achava que ela não gostava de mim.
Um dia, adormeceu numa aula. Fiquei perplexa, atónita com a ousadia. Ferida na minha condição de professora. O raspanete do costume, o sermão sobre as indispensáveis horas de sono, sobre os efeitos prejudiciais da televisão em excesso, blá, blá, blá... De olhos cravados nos livros, tentando apagar-se no meio dos risos disfarçados da turma e no zunzum que se instalara, ela nada disse. Nem uma palavra. No fim da aula, timidamente, ficou para trás e explicou-me: Tinha passado a noite no hospital. Realmente estava pálida, com um ar abatido... Mas não, não era ela que estava doente. Tinha ido tomar conta do irmão bebé porque a mãe precisava de cuidados urgentes. Um acidente? Uma queda? Nada disso, apenas uma cadeira que lhe tinha partido um braço e uma garrafa vazia que lhe cortara o rosto, atiradas certeiramente pelo pai da menina. O conteúdo da garrafa, repousava no estômago do atacante e fazia os seus estragos.
Tremi de raiva. De nojo. De revolta. Depois, respirei fundo e meti mãos à obra: encaminhei a menina para os serviços de Psicologia, contactei a Assistente Social e sugeri a intervenção da Comissão de Protecção de Menores. Fiz relatórios, relatórios e relatórios. E até ao fim do ano, conversava sempre que podia com a Mariana. As nossas conversas, hesitantes ao início, tornaram-se rituais de cumplicidade que ela cumpria religiosamente.
Este ano ainda não a tinha visto. Tem agora dezanove anos, trabalha na caixa de um hipermercado e o olhar é mais doce, mais sereno. Então e a vida? As coisas estão melhores, o pai ainda bebe mas já não lhes bate. Ainda bem... nem tudo é perfeito, mas...
Nas mãos trazia um livro que ia trocar à Biblioteca. O rosto rasgou-se num sorriso quando mo mostrou - Eça de Queirós. Era já o terceiro que lia e tenciona lê-los todos! Fiquei feliz quando me disse entusiasmada: "A stora bem dizia, o Eça é o máximo!". Despedimo-nos com um beijinho e a promessa de nos vermos em breve, quando a ida à Biblioteca se impusesse.
Fiquei a olhá-la enquanto se afastava, a menina que há uns anos atrás me adormecera na aula porque passara a noite no hospital com a mãe e o irmão bebé nos braços, porque o pai encharcado em bebida tinha descarregado a ira na família.
Quantas Marianas existem por esse mundo fora, em pleno século XXI? Quantas adormecem nas aulas? E quantas sobrevivem?

3 comentários:

Anónimo disse...

Quantas setoras como tu?Quantas?

Anónimo disse...

Nenhum caminho é longo demais quando um amigo nos acompanha.

Anónimo disse...

Infelizmente, tantas!

Beijoca