quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Muros


Há situações inadiáveis. Urgentes. Que não podemos fazer de conta que não vemos. Hoje percebi isso ao olhar para os meus livros e rendi-me: vou ter mesmo que os arrumar. Pois é, o drama começa exactamente aqui. Eu não sei arrumar os meus livros. Nunca soube nem nunca consegui fazê-lo, porque defendo a teoria de que os livros não se arrumam... os amigos não se arrumam. Nunca sei se hei-de agrupá-los por autores, por temas, por géneros e épocas literárias, se hei-de separá-los em lidos e não lidos, etc. Quando tento pôr alguma ordem no caos, é sempre a mesma fita: sento-me no chão, limpo-os e depois viajo... Vou abrindo um ou outro para recordar alguma passagem que gravei na memória, releio as páginas que têm os cantinhos dobrados, abro-os nas folhas que exibem um amarelete, repenso os sublinhados a vermelho e a azul, tento descobrir por que motivo ficou naquela página o marcador, procuro as dedicatórias nos volumes oferecidos para voltar a saborear o amor e a amizade...e não saio disto. Dou comigo a sorrir quando entre páginas encontro migalhas, areia, bilhetes de cinema, postais, listas de compras, papéis de rebuçado, manchas de manteiga ou marcas de lágrimas... são inúmeras as testemunhas das minhas leituras. E eu respeito-as, fecho cuidadosamente a capa do livro, rezando para que nada dentro dele se perca na fúria da limpeza, para que os vestígios permaneçam adormecidos até à próxima arrumação. E durante uns tempos estranho as estantes, ando perdida à procura do que quero, desnorteada com os meus muros de papel confidente aos quais encosto a alma tantas vezes para sonhar. Claro, esta sensação dura apenas alguns dias, rapidamente recomeço a abrir, a procurar, a usar, a consultar os meus livros e tudo volta ao início. Mas eu sinto-me bem melhor ao olhar para as prateleiras e encarar os olhares confidentes nos seus velhos ninhos, abrigados pela certeza de que cá em casa, apesar de tropeçar em livros, me afogar em livros, há sempre espaço para mais um amigo. De papel, mas um amigo, mesmo assim.

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