sábado, 6 de março de 2010

Estilhaços


Somos estilhaços - dizia a professora de Estudos Pessoanos. E eu parei de escrever, a mão subitamente presa ao significado da frase, e deixei de a ouvir. Sim, somos estilhaços, fragmentos, cacos de vidro espalhados por todo o lado... E às vezes não sabemos de nós. Às vezes não conseguimos encontrar todos os nossos pedacinhos que resvalaram para debaixo de uma emoção qualquer, se esconderam atrás de uma lágrima que limpámos com a ponta dos dedos trementes. Às vezes estão apenas no grito calado ou na palavra que não foi dita. Na escolha que não foi feita. E um dia, quando já não nos lembrámos, encontrámos um estilhaço pequenino ao abrir as janelas dos corredores da alma e ficámos a olhá-lo... Éramos nós? Segurámo-lo então com carinho e conseguimos sorrir... Quando nos partimos? Em que momento nos desfizemos em mil estilhaços...? Se calhar a vida vai-nos quebrando, em dois, em quatro, em oito... até não sermos mais do que muitos pedaços de espelho partido.
A esses pedaços podemos chamar máscaras - continuava a professora - ou personae. Sim, somos máscaras. Somos pessoas. Alguns de nós sabem-no, outros nunca descobrirão. Mas Fernando Pessoa, ao assumir a sua heteronímia, assumiu também as suas máscaras, as suas pessoas, os seus estilhaços. É uma atitude de coragem e de humildade e admiro-o muito por isso. É preciso que a alma seja grande para poder olhar o espelho todas as manhãs e enfrentar o estranho ser estilhaçado que nos segura firmemente o olhar. É preciso coragem para compreender os tantos que somos e nos habitam silenciosamente, uma coragem que só a vida nos pode oferecer no escorrer dos anos.
Crescer tem isto de bom. Compreender que somos muitos, afinal. Que somos máscaras. Cacos. Apenas estilhaços.

8 comentários:

mi@mara disse...

Muito tocante...talvez porque neste momento me sinto um caco, que viverá para sempre incompleto...Gosto do blogue, não o acompanho de hoje, mas foi hoje que apesar de ser caco me senti com vontade de partilhar...
Continuarei a acompanhar.
Abraço

Anna disse...

mi@mara, obrigada pela partilha de emoções tão sincera. Eu compreendo...acredite que sim. E se se identifica com as minhas palavras, volte sempre. Eu estou por aqui.

Beijinho :)

Lídia Borges disse...

Voltou em força a "veia" poética.

Pois, claro...
Fernando Pessoa e o torturante anseio de ABSOLUTO.

Gostei muito!!!!

Um beijo

Arma_Zen disse...

Um texto maravilhoso!
Abraço meu.

Anna disse...

Achas que voltou, Lídia? Há coisas que tocam bem fundo... não é?

Um beijinho e bom fds :)

Anna disse...

Obrigada Tuca :)

Um beijinho

Anónimo disse...

Gosto desta força em estilhaços.
Uma especie de Pessoano Fénix...

Beijinhos

Anna disse...

Obrigada Kleine :)
Às vezes é difícil renascer das cinzas, mas o instinto de conservação (ou a Fénix que nos habita) obriga-nos a ficar de pé. Apesar dos estilhaços.

Um beijinho, bom fds