domingo, 3 de janeiro de 2010

Filipe


Senti-lhe a presença colada a mim, vinda do nada, corporizando-se nas sombras do parque de estacionamento batido pela chuva impiedosa e gelada. Deixou-se ficar num silêncio incómodo enquanto eu arrumava as sacas com as compras na mala do carro e depois, a voz rouca atirou-me o pedido: "Dona, uma moedinha para comer uma sopa..." Não respondi. Sentia-me inquieta, só ali estávamos eu e ele, naquela chuva triste que escurecia ainda mais o parque vazio. Apressei-me o mais que pude e pegava já na chave do carro, quando a pergunta me atingiu, como um soco: "És a X... não és?" Estaquei. Ele conhecia-me... Voltei-me devagar e olhei-o finalmente nos olhos, uns olhos tristes e escorraçados como os de um cão vadio... Procurei no fundo da memória aqueles olhos, tentei ligá-los a um nome, a uma época, a uma situação... reparei atentamente no cabelo encharcado, nas mãos cheias de feridas, no rosto esquálido e na boca desdentada que me sorria agora com ternura... e algo me doeu cá dentro. O nome dançou-me finalmente nos lábios, uma dança triste como a noite que nos abraçava num súbito desmoronar de recordações: Filipe. Nunca mais o tinha visto, talvez desde o baile de finalistas no casino da cidade, há muitos, muitos anos atrás... Era dos rapazes mais populares da turma, não por ser bonito, mas pelo carácter doce e pelo fantástico sentido de humor, um humor inteligente e sensível que torna as pessoas que o possuem o centro das atenções em qualquer contexto. Filipe. Um nome querido, descolado de um passado perdido, um nome que eu repeti devagar... Filipe. O colega que dava as alcunhas aos professores, que deixava copiar nos testes de Matemática, o único que fazia com perfeição o pino de braços na aula de Educação Física, o Delegado de Turma reeleito sucessivamente... Filipe. O único rapaz da turma que adorava o meu rosto sardento. E ficámos um pouco à conversa, falámos dos colegas que perdemos no rasto dos dias, dos sonhos rasgados, da heroína que o consome numa solidão vazia, da doença que o traz de mãos dadas com a morte, das desintoxicações frustradas em Espanha e em França, dos meses passados na cadeia, do filho que ele não conhece, da família que tudo tentou para o ter de volta... Falámos. Falámos muito. E quando finalmente nos despedimos, ele tinha os olhos cheios de lágrimas e disse-me baixinho: "Se soubesses há quanto tempo não me chamavam pelo meu nome e não me perguntavam por mim..."
Filipe. Um nome bonito, um colega querido que eu talvez não veja nunca mais, um ser humano inteligente e alegre, um jovem cheio de sonhos a quem o futuro sorria e que numa encruzilhada da vida, num momento cruel, fez as escolhas erradas.
A vida não perdoa os passos em falso, Filipe.
E agora, Filipe?

10 comentários:

Flor disse...

Filipe, João, Maria, José...e tantos outros, que pela nossa vida passaram, por norma sempre os mais inteligentes. E por estarem no lugar errado, na hora errada, hoje não vivem, apenas sobrevivem.
Doi-me a alma, foste maravilhosa, a tua atitude é digna de exemplo. Por costume as pessoas viram a cara, mas os nossos Filipes merecem respeito.

BOM ANO 2010

Nicole disse...

O teu texto deixou-me os olhos marejados de lágrimas. Eu também tenho um Filipe na minha vida.
Obrigada De Profundis pela tua sensibilidade. Desejo-te um 2010 cheio de vitórias.

Lídia Borges disse...

Choro! Nem sei porquê, se todos os dias nos cruzamos com "Filipes".

Um beijo

Anna disse...

Eu sei, Flor. Mas fica a terrível sensação de que nada podemos fazer para os ajudar.Nada.
Um beijo sentido

Anna disse...

Nicole, que tudo corra bem contigo e com o teu Filipe.
Desejo-vos um 2010 com luzes ao fundo do túnel.
Um beijo

Anna disse...

Lídia, apesar de nos cruzarmos todos os dias com os Filipes, nunca o coração deve endurecer nem os olhos devem fechar-se.
Um beijo, querida.

Maria Campos disse...

Filipe,.......

Esta doeu!

Mas porque é que tem que ser assim?
Porque é que o caminho de alguns(muitos)tem que ser de derrocada e sofrimento?

PORQUÊ MEU DEUS?!

Ai deprofundis, quem me dera poder salvar os Filipes. Mas só posso rezar e... gemeeeeeeeeeeeer!

Anna disse...

Doeu sim, Maria Campos, doeu muito.
Um beijo

H. disse...

É um privilégio ler-te, Princesa.
Parabéns.

Anna disse...

Obrigada, Henrique.
Beijinho