Nas traseiras da casa da minha avó, a seguir ao quintal, havia uma série de casinhas pequeninas clandestinas a que chamavam ilha. Na última casa da ilha, morava um pintor. Ninguém sabia o seu nome, a sua idade, a sua proveniência... De estatura alta e evidente magreza, tinha o cabelo todo branco e um bigode amarelecido pelo tabaco. Vivia sozinho, não falava com ninguém e nós, as crianças, tínhamos dele um medo terrível... Ninguém se atrevia a dirigir-lhe a palavra e eu gostava de o espreitar pela janela escancarada, enquanto pintava. Com o queixo apoiado no peitoril de madeira corroída e em bicos dos pés, ficava a observá-lo, fascinada, pintando indiferente ao mundo, ao correr das horas, o cigarro eternamente pendurado nos lábios, arrastando as palavras lentamente numa melopeia estranha, incompreensível, quase inaudível. Hoje acho que ele sabia que eu ali estava mas a minha presença era para ele tão indiferente como a das dezenas de gatos vadios que encontravam guarida naquele ateliê inusitado. O universo era dentro dele. A vida acontecia num lugar a que só ele tinha acesso, onde não deixava entrar mais ninguém. Na ponta dos seus dedos, nasciam fantasticamente mares muito azuis, sóis alaranjados, ondas verdes e amarelas de uma praia que só ele via... De vez em quando assobiava... e era uma música alegre, sem escorrências de nostalgia, de saudade ou solidão alguma, uma música que estalava ao sol como fogo de artifício na pequena ilha... e eu ficava ali, seduzida pela estranha criatura, supostamente escondida na minha inocência infantil, a vê-lo criar mundos coloridos e fazer nascer sons que lhe ecoavam lá dentro...
Um dia as janelas da casinha não se abriram. Os vizinhos estranharam... Outro dia, mais outro... E depois o relato breve, feito sem pormenores pela minha avó: o pintor morrera, encontraram-no morto em casa, na sua solidão, no estranho mundo paralelo que habitara entre nós. Partira tão só como chegara...
Ninguém lhe sentiu a falta. Talvez só para mim, a ilha nunca mais foi a mesma, com as janelas da última casa encerradas para sempre, vedando-me o olhar aos quadros pintados grosseiramente, vozes e gritos de liberdade de um ser humano estranhamente só, que assobiava a felicidade em ondas de alegria pura e pintava o mar de um tom inesquecível.
8 comentários:
Fiquei muda e com um aperto no coração! Solidão,arte, morte. . .
Ahhhhhhhhhh.......Dói. Dói muito !
Bjca, M.C:
M.C.
Há pessoas que são felizes na sua solidão e nas escolhas que fazem...:)
Um Bom Ano Novo, querida amiga.
Lembro-me bem também desse pintor. Também eu recordo essa sua solidão. Mas nunca a consegui espelhar nas palavras como tu fizeste. Dir-se-ia que colocaste no papel aquilo que aquele homem viveu em frente às suas telas. Um beijo do teu mano Luís
Maravilhoso texto, a senhora também é uma artista, e pinta belos quadros com a melodia e cor das suas palavras..
Ana,
Procurando o meu blogue "FARRAPOS DE MEMÓRIA"apareceu o seu texto.Coisas que o google tece.
Gostei muito,é literatura a Jorros,as comportas da alma estavam abertas.Posso reproduzir no meu blogue?
Obrigado
Leonel Brito
Ana,
Procurando o meu blogue "FARRAPOS DE MEMÓRIA"apareceu o seu texto.Coisas que o google tece.
Gostei muito,é literatura a Jorros,as comportas da alma estavam abertas.Posso reproduzir no meu blogue?
Obrigado
Leonel Brito
Leonel,
Muito obrigada pela ternura das suas palavras... É um texto já com uns anos e lembro-me perfeitamente de o ter escrito... Na noite anterior, tinha sonhado com esse pintor, que vinha do passado mostrar-me que as coisas que guardamos no coração não morrem nunca... Escrevi-o com os olhos cheios de lágrimas e fico feliz por ter gostado dele!
Aceite-o como um presente, é seu, pode levar...
Deixo-lhe um beijo
Ana,
Acabo de publicar o seu texto.Comovido e agradecido.
Abraço
Leonel
Link:http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2013/05/farrapos-de-memoria-por-anna.html
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