segunda-feira, 29 de março de 2010

Lugares vazios


Conheço-o há algum tempo, não sei há quanto... Deve morar perto da rua da minha mãe, onde nos cruzamos muitas vezes e frequenta o mesmo café onde eu gosto de me demorar a escrever. Ele chega quase sempre primeiro e encontro-o todos os dias em que lá vou. Gostamos ambos da mesma mesa, encostada a um canto e junto a uma grande janela debruçada sobre a rua movimentada, uma janela por onde atiro o olhar quando as palavras me faltam. Ele também gosta daquele cantinho e por isso, a mesa é de quem chegar primeiro. Partilhamos ainda o jornal da casa e as palavras cruzadas que ele nunca deixa incompletas, as letras cuidadosamente desenhadas por mão firme a caneta negra. Eu só uso tinta azul e muitas vezes não descubro todas as soluções, as quadrículas rasuradas vezes sem conta, mancham a grelha incompleta e denunciam a minha desistência... É um homem bonito e discreto, com um rosto impassível que não deixa adivinhar emoções e uns olhos estranhamente tristes. Impressionam-me aqueles olhos. São uns olhos de abandono, de vazio, uns olhos desabitados. Frequentemente somos os únicos clientes do café àquela hora tardia em que a cidade anoitece e a vida se vive do lado de dentro das casas. Só nós, nas margens do mesmo silêncio, as únicas testemunhas de um dia que finda, talvez companheiros das mesmas solidões, embrulhados nas mesmas memórias. Só eu e o homem sem nome, o homem dos olhos vazios onde não mora ninguém. E se me lembro dele agora, é porque lhe notei hoje a ausência, no café deserto ao anoitecer. Uma das empregadas comentou que ele não tem aparecido, enquanto bocejava e limpava as mesas vagarosamente com um líquido transparente que cheirava a desinfectante, e disse que talvez esteja doente...
As palavras cruzadas estavam por fazer e eu deixei-as assim... porque hoje era o dia dele, hoje a mesa onde me sentei deveria estar ocupada porque ele teria chegado primeiro... E hoje eu era uma ilha mais deserta na calmaria do café vazio, um pedaço mais longe de tudo, sem a presença tranquila do homem dos olhos tristes.

7 comentários:

Escritor de Rua disse...

Otimo texto.
Estou a serguir-te.
Continue com o ótimo trabalho.

Anónimo disse...

...porque será que o que escreves me faz chorar?

Anna disse...

Obrigada Escritor. Sê bem vindo e volta sempre que queiras.

:)

Anna disse...

Obrigada pelas tuas emoções, Kleine.

Um beijinho

(Desculpa, ainda não nasceu o meu poema... Esperas por mim?)

Lídia Borges disse...

É forte o apego às rotinas e a forma como nos adaptamos a elas.

Um beijinho

Anna disse...

E as rotinas são apenas lugares seguros, Lídia. Que às vezes estão vazios.

Beijo

Anónimo disse...

Espero, sabes que sim =)

Beijinhos

Kleine